[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTOS] Adriano Ferreira Borges
Foi com a interpretação de Belzebu pela moderna encarnação dos Telectu que arrancou a programação deste ano do Festival Semibreve, em Braga. Que Vítor Rua e António Duarte tenham a oportunidade de se apresentarem no cenário particular do centenário Theatro Circo só reforça a ideia avançada pelo membro original dos Telectu em entrevista ao Rimas e Batidas há um par de meses: encarar este repertório de uma perspectiva de câmara, assumindo-se o presente duo como executante da obra e do pensamento do projecto que originalmente surgiu no arranque dos anos 80.
A “moldura” nobre do Theatro Circo reforçou portanto a aura “clássica” da música dos Telectu. Depois do regresso aos concertos no Teatro Maria Matos e no terraço do Lux, em Lisboa, é seguro dizer que Rua e Duarte já sedimentaram a sua ideia e, mesmo sem a presença visível de partituras, percebe-se que ambos estão a seguir um “guião”. A interpretação é reverente, fiel à gravação original de 1983, sem espaço para qualquer tipo de interacção que possa remeter para o passado rock de Vítor Rua. Imersos em projecções originais de material visual do músico original dos Telectu e também de António Palolo, artista plástico que colaborou abundantemente com o duo, a música criada há 35 anos assume cada vez mais uma dimensão intemporal revelando-se perfeita para ditar o tom exploratório que é constante nas propostas do cartaz deste evento.
A novidade neste concerto foi a inclusão de uma peça de Off Off, o raro terceiro álbum dos Telectu que também deverá merecer reedição no selo Holuzam que se estreou, precisamente, com o relançamento de Belzebu. Em privado, Vítor Rua confessou ao Rimas e Batidas desejar que “Palolo”, tema escolhido do alinhamento do álbum de 1984, pudesse “adormecer” as pessoas, mas foi uma plateia bem acordada que aplaudiu a prestação dos Telectu, deixando desta forma bastante claro que existe um futuro para estas emissões vindas de um distante passado.
Também na sala principal do Theatro Circo apresentou-se William Basinski. O criador norte-americano subiu ao palco com look de rock star glam dos anos 70, como se em vez de um “beautiful theatre” situado numa “beautiful city”, como fez questão de referir, estivesse na Nova Iorque de 1978, prestes a apresentar-se numa qualquer galeria da Bowery…
On Time Out of Time é o título da obra apresentada, baseada na captação de ondas magnéticas resultantes da explosão causada pela colisão de dois buracos negros há 1,3 mil milhões de anos, numa qualquer galáxia distante. A energia então gerada tem viajado pelo espaço e em 2015 foi registada no centro LIGO, nos Estados Unidos. É desse material que nasce esta peça de Basinski que só deverá conhecer edição em 2019.
Como é constante no seu trabalho, estes drones de difusa matéria ambiental são essencialmente uma profunda reflexão sobre a natureza essencial do tempo, da sua lenta passagem, dos efeitos que esse devir provoca. Recortado por austero desenho de luz e de palco, com as entranhas técnicas expostas e uma série de focos laranja que pareciam remeter para a incandescente luz das estrelas, Basinski questiona conceitos de performance com um quase estático posicionamento frente ao suporte em que repousa a sua mesa de mistura o que permite que as nossas atenções se concentrem no que soa ao próprio universo a expandir-se. No final, o fechar da tampa do laptop equivale ao fechar da tampa do piano no final do ultimo andamento de 4:33 de John Cage: o sinalizar da margem última da peça que, refira-se, é de beleza profunda e mereceria apresentação imersiva em planetário, para audição de olhos postos nas estrelas em confortável posição reclinada.
O programa no Theatro Circo completou-se com a performance de Qasim Naqvi no Pequeno Auditório, sobre projecção de Belladonna, psicadélica e erótica obra de animação de 1973 da autoria de Eiichi Yamamoto. A proposta de Naqvir serve de alternativa à banda sonora original de Masahiko Sato relançada em 2015 pela Finders Keepers de Andy Votel. E a aposta de Naqvir, centrada no seu sistema modular, segue numa direcção completamente oposta à do datado charme “easy” do trabalho de Sato.
Revelando um comando bastante assertivo das potencialidades do seu sistema, Qasim Naqvi não se limitou a proporcionar um aleatório fundo electrónico para as sugestivas imagens de Yamamoto, conseguindo antes interpretar de facto as diferentes cenas, com nuances que indicam que a execução não assenta exclusivamente no improviso, com diferentes dinâmicas rítmicas e harmónicas a encaixarem na perfeição na “narrativa” de Belladonna. Belíssima surpresa.
A noite concluiu-se na Blackbox do gnration. Actress assinou uma intensa lição de desconstrução rítmica, alternando material de lavra própria com recursos alheios e variados (do clássico “West End Girls” dos Pet Shop Boys a “The Sound of Eden” dos Shades of Rhythm), confundindo passado e presente numa inteligente deriva por diversos momentos do hardcore continuum. Mais do que os temas em si, é nas zonas liminares da mistura, quando sobrepõe ritmos e texturas filtradas, que Actress revela a sua verdadeira essência, como se a sua mesa de mistura fosse um acelerador de partículas onde orquestra experiências que exponham as entranhas do funcionamento do universo.
A actuação de Actress prolongou-se para lá das 02:00 da madrugada, que era a hora prevista para a entrada de RP Boo em cena, pelo que já não foi possível acompanhar a prestação do embaixador do footwork.
Hoje o cartaz do dia propõe Caterina Barbieri, Sarah Davachi com Laetitia Morais, Grouper, Alfredo Costa Monteiro, Søs Gunver Ryberg e DJ Stingray a partir das 17:30 e até alta madrugada. Pulsares electrónicos diferenciados a marcarem a segunda jornada do Semibreve.