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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/11/2023

Saibamos honrá-la, hoje e sempre.

Sara Tavares (1978-2023)

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/11/2023

Sara Tavares nasceu em Lisboa, em 1978. Filha de pais cabo-verdianos, cresceu no caldo cultural da Margem Sul, formou-se na diversidade da música negra e na ancestralidade do seu arquipélago, onde encontrou muitas das raízes com que precipitou o futuro. Foi uma das mais importantes, inovadoras, influentes e emancipadas vozes da música portuguesa contemporânea, abrindo muitos dos caminhos por onde hoje circulam e brilham tantas gerações de afrodescendentes que cresceram com a sua música e com o seu exemplo.

No cenário musical português, Sara Tavares deu-se a conhecer em 1994, quando aos 16 anos vence o famoso concurso Chuva de Estrelas, interpretando a ícone Whitney Houston. Nesse ano, vence também o Festival da Canção, sendo até agora a única mulher negra a vencer o festival. Representou Portugal na Eurovisão, um país que nessa altura, como agora, negava o seu racismo estrutural e assistiria, no ano seguinte, ao bárbaro assassinato de Alcindo Monteiro. 

Em contraste com esse país do horror e da violência, Sara Tavares foi sempre luz e poesia, referência e um guia desse outro futuro que tínhamos urgência em construir. Começa, no final dessa década, o seu percurso discográfico, editando o seu disco de estreia Sara Tavares & Shout, em 1996, num resgate da cena gospel de que se considerava herdeira. Três anos depois segue-se Mi Ma Bô, editado em 1999, onde Sara já apresenta composições próprias, moldadas de uma sensibilidade que haveria de ser determinante no percurso que se seguiria. Nesse trabalho foi acompanhada por Lokua Kanza, músico e guitarrista congolês, que igualmente assina a produção de um álbum pioneiro nos cruzamentos da música africana, da soul e da pop negra. Mi Ma Bô foi Disco de Ouro no ano 2000 e fez com que Sara Tavares recebesse o Globo de Ouro para Melhor Intérprete. Tinha 22 anos e foi a primeira mulher negra a vencer a categoria, abrindo um espaço de reconhecimento, representatividade e visibilidade determinante para as gerações que se seguiram.



O sucesso desse segundo disco, onde além de português e inglês também já canta em crioulo, leva-a num caminho de regresso às suas origens cabo-verdianas, contactando com muitos músicos do arquipélago e da diáspora. Nessa primeira década de 2000 reconecta-se com essa sua herança, reconhecendo-se como eterna aprendiz da cultura cabo-verdiana. Participa, nessa altura, num dueto com o músico Djurumani para a opereta Crioulo, assinada por Vasco Martins, em 2002. Nessa transição para os anos 2000, Sara Tavares foi moldando influências e uma sonoridade particular, inseparável da sua história e identidade, ambas herdeiras do amor e da permanente descoberta pela diversidade da música negra, das suas raízes africanas e vivência lisboetas.

Foi de todos esses encontros, também nutridos pelas viagens de Mi Ma Bô pelo mundo, que surgiu Balancê, o terceiro álbum, editado pela holandesa World Conncetion. Enquanto gesto de religação entre a África das suas origens e a Europa onde cresceu, Sara recusou sempre rótulos, expectativas e estereótipos, numa afirmação da sua subjetividade, força-motriz permanente da construção das suas obras. O álbum haveria de chegar a Disco de Platina em Portugal, tendo Sara Tavares sido nomeada para a categoria de Artista Revelação nos World Music Awards da BBC Radio. 

O sucesso de Balancê haveria de determinar um percurso ao vivo sem precedentes, sobretudo no circuito da “worl music” na Europa, nos EUA e no Japão. “World Music”, aliás, foi a categoria em que foi rotulada e que a cantora haveria de rejeitar de forma contundente por perceber o seu lado pernicioso, moldado por uma indústria ocidental tantas vezes extrativista. Nas suas palavras: “No circuito da World Music há a tendência a ser negada a contemporaneidade de um país”. Tinha razão. E mais razão tinha quando, em entrevista a Rui Miguel Abreu, haveria declarar, sem rodeios, que o exotismo com que o mundo ocidental olha para a música africana “nada mais é do que neo-colonialismo”. 

Segue-se, então, Xinti, álbum editado em 2009, aclamado pela crítica e pelo público que, no seu caso, cruzava e desafiava todas as fronteiras. “Ponto de Luz”, em particular, foi e continua a ser um hino à beleza, à sensibilidade e à poesia. É nessa altura que se vê obrigada a fazer uma pausa dos palcos, devido a um problema de saúde que a afetou física e mentalmente.



Mesmo longe dos holofotes, a que ganhou alguma aversão, foi sempre uma presença luminosa e permanente, já que as suas músicas nunca desapareceram do nosso imaginário, continuando a inspirar quem nesses anos construía os seus trabalhos e lutava por um país com mais cores, ideias, corpos, línguas e sotaques. Desde logo nas periferias da cidade, onde a sua música sempre encontrou casa, sendo uma referência para diversas gerações de afrodescendentes e não só. Com o seu exemplo contribui, inegavelmente, para que as periferias se transformassem em verdadeiros centros, embriões da produção de imaginários e de uma poesia capaz de estilhaçar as relações hierárquicas e desiguais em que se estruturou a sociedade portuguesa, o seus poderes e as suas políticas.

Foi também esse percurso que desaguou em Fitxadu, editado em 2017, inegavelmente um dos mais importantes, inovadores e influentes álbuns da música portuguesa contemporânea. O disco nasceu espontaneamente, longe da expectativa da indústria e dos fãs. Sara estava cansada, procurou o seu tempo e a liberdade dos encontros, das relações e das viagens onde nasceria nova poesia, sons, imagens e narrativas. Nesse caminho seria fundamental Kalaf, amigo que nesses anos a desafiou para novas descobertas e possibilidades. Com o músico na pré-produção, Sara juntou-se a compositores como Virgílio Varela, Edu Mundo, João Pires, Toty Sa’med, Aline Frazão, Paulo Flores ou Princezito, a produtores como Loony Johnson ou Boddhi Satva, ou músicos e instrumentistas como N’Du ou Manecas Costa. De estúdio em estúdio, entre Lisboa e Cabo Verde, e com paragens por outros países africanos, nascera um som realmente distinto, devedor da música cabo-verdiana, mas com os olhos postos num futuro que recusava ver congelada a sua própria imaginação. Sara cresceu na Margem Sul, onde desde nova se cruzava com os pioneiros do hip hop, desde logo os Black Company, Family ou com os Da Weasel. Também dessa herança se fez um álbum que sintetizou uma sonoridade determinante para a história que seguiria, fundindo sons, imagens e poéticas em busca das histórias que falava narrar. Foi nomeada para um Grammy Latino, escutada pelo mundo fora e determinante para a geração de músicos que se seguiria.

Para além deste percurso, Sara foi sempre uma colaboradora, trabalhando ao longo dos anos com nomes tão diferentes como Júlio Pereira, Slow J, Moullinex, António Chainho, Branko, Paulo Flores, Rui Veloso, Fogo Fogo, Ala dos Namorados, Silk Nobre, Ivan Lins, Conductor, Dotorado Pro, Aline Frazão, Boy Gé Mendes, Luiz Caracol Bilan, entre tantas e tantos outros. 

Mais recentemente vinha construindo um novo reportório onde irrompia um olhar vibrante sobre a nova cena eletrónica, a que acrescentava uma sensibilidade só sua. Deixou-nos com “Grog d’Pilha“, onde se aliou BeBeDera; com “Presensa“, acompanhada por Ivan Gomes e Jasper Pinto; com “Momentu“, ombreada por Fumaxa, Migz e Ariel; e em setembro deste ano com “Kurtidu, com o cúmplice Berlok. 

Triste mundo este, onde a merda da doença consegue vencer um brilho tão radioso. Sara Tavares foi uma luz imensa que passou por nós e mudou o mundo em que vivemos. Saibamos honrá-la, hoje e sempre. Obrigado, Sara.


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