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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/11/2023

Uma voz que deixará saudades.

Sara Tavares: “A música faz sempre parte das revoluções”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/11/2023

E por isso mesmo, respondendo à citação no título desta conversa, é preciso chamar a música. Chamá-la para perto de nós, para dentro das nossas vidas. Foi isso que Sara Tavares fez, à sua maneira muito particular e muito especial. A brilhante estrela que se revelou ao mundo num programa de imitações transformou-se, como acontece, de resto, com toda a gente, ao longo da vida numa originalíssima artista.

Esta entrevista, feita para o quarto volume da série de livros Debaixo da Língua, publicados no âmbito do festival O Sol da Caparica, foi feita há 5 anos, em 2018, mas continua perfeitamente actual. Nunca tinha sido inteiramente disponibilizada no plano digital. Fica agora aqui, para memória presente e futura de uma figura que marcou, com a sua generosidade, a história mais recente da música que mesmo sendo feita por aqui encontrou um lugar no mundo. Quem assim falava em 2018 não marcou apenas o vasto público anónimo que lhe escutou os hits e os temas mais obscuros, mas também os seus pares. Dava e recebia em igual medida, ensinava e aprendia em cada passo do seu caminho, e isso mesmo fica evidente nesta conversa, reveladora de um espírito aberto ao futuro e sedento de coisas novas.

Sara Tavares deixou-nos ontem, dia 19 de Novembro. Tinha 45 anos e uma alma do tamanho do mundo.



Começo esta conversa com algo em que reparei na entrevista que concedeste à Blitz — falavas no teu último disco como o fechar de uma porta e o abrir de uma janela, ou o encerrar de um ciclo e o início de um novo ciclo. Elaborando um bocado em cima desta ideia, o que é que termina e começa aqui no Fitxadu?

São duas leituras de uma mesma palavra. Fitxadu, literalmente, quer dizer “fechado”. Mas também significa “close” — como em “close to my heart”, perto do meu coração. É o fechar desta fase tão longa de oito ou nove anos sem gravar um disco de originais em nome próprio — tenho feito colaborações, que é algo que descobri, desenvolvi e a que tomei o gosto; compus com outras pessoas e para outras pessoas. Fiquei doente e tentei entender o porquê de ter ficado doente, porque é que tinha ficado exausta, sem argumentos para continuar a sentir-me apta para a profissão. Porque é que me sentia sem energia — mental, sobretudo, não tanto física. Tive de fazer essas renovações todas. A cada época eu renovava-me, mas depois olhava para o mundo da música e não conseguia ter a energia necessária para entrar na roda outra vez. Sentia que não tinha interesse em mover toda aquela energia que requer um disco, toda a logística, toda a exposição da minha própria pessoa. Não expomos apenas a nossa persona artística, acabamos por expor também a nossa vida privada e eu estava muito chateada com isso. Senti que não valia o preço.

Ainda bem que mudaste de ideias.

Mudei porque comecei a ouvir muita música nova. Muita dela trazida pelo Kalaf, as minhas sobrinhas, pelos putos — “Olha este gajo, as dicas dele, os beats dele.” Eu produzi alguns temas com o Andro — o Conductor — para uma miúda que é a Rita Seidi. Ele mostrava-me com cada maluco. Fosse angolano, ou cubano ou até da Linha de Sintra. O Dotorado Pro e, sei lá, tantos outros…

E tudo isso te entusiasmou?

Trouxe-me de novo aquele entusiasmo de miúda.

Já não tanto “Fitxadu”, mas mais aberta a um novo mundo.

Fechou-se aquela rabugice contra o que era e continua a ser uma chatice muito grande em relação aos dogmas e aos preconceitos, sobretudo na world music. O pessoal é muito… Com aquele conceito sobre o que é que é autêntico…

Ainda faz sentido num mundo destes, onde as fronteiras estão tão abertas? Quanto mais não seja em termos virtuais. Nada me impede de carregar aqui num botão para dar um “pulo” a Nova Iorque ou falar com um amigo que está em Berlim. Farão ainda sentido esses preconceitos sobre o que é ou não autêntico, quando está tudo tão misturado?

O que me ia tirando o entusiasmo, enquanto estava em recuperação de saúde, era ir olhando para o mercado da world music e ver que havia pessoas a forçar para serem tribais. Por exemplo, malta da Holanda ou Dinamarca com pinturas na cara e saias de palha… Estavam a forçar. Aprendiam em tempo recorde os dialectos do avô, em busca de algum jornalista antropólogo francês que lhes desse o selo de autenticidade. Isto nada mais é do que neo-colonialismo. Eu estava muito chateada com isto. Só as “Marimbas” do Dotorado Pro é que me fizeram ficar descansada.

Eu mostro sempre aos meus alunos um documentário da Red Bull Music Academy no qual tu também participas, o Lusofonia, a (R)Evolução. Tens uma frase nesse documentário que eu acho sintomática — dizes que, quando começaste a dar concertos lá fora, o público internacional ficava sempre muito espantado por haver africanos em Portugal. Olhando para a Lisboa de 2018 — e tu já aqui falaste no Dotorado Pro, no Kalaf, no Conductor — achas que vivemos numa nova Lisboa, que se resolveu finalmente? Que reconhece os talentos que vieram ou são descendentes das nossas ex-colónias?

Eu acho que o pessoal não está à espera de ser reconhecido. O que estes miúdos trazem é que eles fazem as suas próprias t-shirts, as suas próprias labels, eles põem a música deles na net. Estão-se a marimbar se alguém os reconhece. Não estão à espera que os teatros os reconheçam, eles fazem os seus próprios festivais. Na Buraca, ou onde quer que seja, eles descentralizam as coisas completamente.

Não estão à espera do tal antropólogo francês.

Não. Enquanto a geração da world music ainda está à espera de um manager, uma editora ou uma promotora que acredite em si, este pessoal, com vinte e poucos anos, forma a sua própria label — eles são a própria label. Eles são um marketing andante. Tu olhas para o Loony Johnson, por exemplo, e ele está sempre com uma camisola com o nome dele. Até os músicos e o filho dele têm a camisola com o nome dele. Estes putos são atrevidos. Não estão à espera que ninguém os valide.

E isso tem contribuído para mudar a nossa própria percepção do que é uma sociedade multicultural? Tens o Anselmo Ralph como júri num programa popular de televisão, o Carlão também a dar a cara na televisão. Até há pouco tempo, estes rostos não apareciam assim para o público.

Quando eu era criança não, de todo. É por isso que nós somos sintomáticos daquilo que na nossa geração era referência. Era o hip hop e a música americana. O Anselmo é todo do r&b. O Carlão e nós todos da Margem Sul somos do hip hop. Na nossa geração a grande referência sempre foi a América, os negros americanos. Noutra geração foram os negros brasileiros. Apaixonavam-se pelas músicas do Caetano Veloso, do Djavan, a Gal Costa… Aquelas coisas que apareciam nas novelas.

A música contribui para o gosto. Achas que também contribuiu para se mudar alguma coisa na sociedade portuguesa?

Eu acho que a música contribui sempre para mudar qualquer coisa que seja dentro de uma sociedade. Para o bem e para o mal. Mesmo quando se vai para uma guerra tem-se uma banda a tocar o tambor à frente. A música faz sempre parte das revoluções. É aquela coisa que nos liga e nos faz mostrar o lado mais animal e emocional. Qualquer campanha política tem sempre música associada. A música está sempre presente.

Voltando ao teu último trabalho, tu escreves muitas das palavras que cantas. Como é que tu te posicionas dentro desse plano muito específico, das palavras às quais tu dás voz? Gostas mais de cantar o que tu própria escreves ou não tens problema em interpretar o que outros também escrevem para ti?

Durante a minha vida toda eu cantei principalmente o que eu própria escrevi, a partir da altura em que comecei a cantar originais. Até então, quando colaborava com o Rui Veloso ou a Ala dos Namorados, não me identificava com o universo que eles invocavam naquelas canções, naquelas histórias. Não eram as minhas histórias. Naturalmente, eu convocava esses compositores para escreverem para mim e não me identificava. Ficava uma coisa meio constrangedora. Tal como quando pedia a alguém que fosse de Cabo Verde ou Angola, ficava demasiado carregado pela própria realidade de lá. Eu não vivia aquela realidade. “Devias cantar aquela morna da Cesária.” Eu? Não sei quem era a Xandinha ou o que é essa “Sodade”. Fiz várias experiências ao pedir músicas a outras pessoas e nunca gostava. Era constrangedor sentir que estava a desperdiçar o tempo das pessoas. Então comecei a compor e a aprender guitarra, a muito custo. Não me acho uma grande letrista. Sou mais próxima de uma pessoa que faz hip hop, a escrever. Deu para três discos. Agora neste disco eu resolvi começar a compor com outras pessoas porque vi que me estava a repetir muito. E eu até me inspirava em muitas coisas. Traduzia do criolo ou do inglês. Livros ou frases do Martin Luther King, do Bob Marley ou do Mandela. Há uma frase do “Balancê” — “Somos livres para nos libertar” — que é do Mandela. Roubei [risos]. Samplei uma frase dele. Como compositora sou muito de retalhos, de transformar, de tirar uma coisa e virá-la ao contrário. É um bocado na onda do DJ mas com palavras.

Isso é muito curioso. É como se tivesses sido educada por um pensamento hip hop, mas aplicas isso a um outro tipo de música.

Aplico-o à canção porque eu canto. Se visses os meus colegas de escola — era o Carlão, o Virgul — nenhum deles era cantor. Eu sou daqui, da Margem Sul. Estava rodeada de malta do hip hop e do rock. Em casa é que ouvia o meu soul e r&b e adorava cantar. Depois fui para a igreja. Culminei numa mescla de música de igreja — até pela minha postura em palco, tipo mensageira. Vem muito do reggae e da igreja. Forma um cocktail.

Tu neste disco cantas muito em crioulo. Qual é a tua relação com as línguas — há sentimentos que expressas melhor numa língua do que na outra? Fazes alguma diferenciação?

Escrevo mais em crioulo quando passo muito tempo em Cabo Verde. E escrevo em variantes diferentes, porque não há só uma maneira de falar crioulo. Depende em que ilha estou. Se estiver em Portugal, depende das pessoas com quem estou. Por exemplo, se falo com a minha mãe e escrevo uma letra sobre algo que tenha nascido dessa conversa vai-me sair em crioulo de Santo Antão e São Vicente, nessa variante do Barlavento. Mas nos últimos anos foi em São Tiago que passei mais tempo. Então o Fitxadu vem daí, é “badio”, de Sotavento. O que está em crioulo no Fitxadu é quase todo em badio — só há uma excepção: a música que é escrita pelo Bilan, porque ele é de São Vicente. O “Ginga” está metade/metade. É escrito com a Nancy Vieira, que cai mais para a morna e para a coladeira.

Curioso. És como uma espécie de cata-vento, que vai apanhando os diferentes “sotaques”, as diferentes nuances das línguas, e encaixas-te para onde o vento te empurra.

Sim. Há uma miúda nova aí a cantar, que é a Lucibela. Já ouviste falar?

Não ouvi, ainda, mas vou investigar…

Ela costuma cantar em Lisboa, ali no Cais das Naus, e tocou em alguns festivais. Ela canta quase todas as variações do crioulo de Cabo Verde, porque ela viveu em quase todas as ilhas. Cada crioulo tem certas palavras. Às vezes, num determinado crioulo, uma palavra quer dizer uma coisa boa, que noutra das versões representa qualquer coisa má. Ou então nem sequer existem.

Achas que vamos chegar a um ponto, como acontece em outros países, no qual um pai e uma mãe poderão optar por inscrever o seu filho numa escola onde se ensine em português ou em crioulo?

É complicado. Eu já tenho o meu telemóvel em crioulo. Existe essa possibilidade. Só que há aquela “guerra” de existirem várias variantes do crioulo — qual é que vai ser a escolhida? No caso do telemóvel — não sei como é que isso foi definido — mas entrou aqui de surra a vertente badia. Não é justo, porque há várias. Nunca chegou a língua oficial porque há vários crioulos. A língua oficial é o português.

Há um fenómeno neste momento em que tu encontras miúdos brancos a falar crioulo.

Tipo, aquele miúdo no tema do Piruka [Mota Jr em “Ca Bu Fla Ma Nau”] a rappar, eu acho incrível. É muito bom. Se é uma língua de que ele gosta, que ele usa para falar com os amigos, faz sentido. Mais nada!

Voltando um bocadinho atrás — É um sinal de evolução da nossa sociedade?

Claro que sim. E o contrário também deve acontecer e deve ser mostrado. O pessoal de outras culturas que abraça a língua portuguesa. Gente do leste, do oriente. Que tão bem se integram em Portugal. Tenho bué amigos ali na Graça. Falam com prazer o português e aprendem muito rápido.

Para terminar, fala-me um pouco do teu futuro. Se este disco representou o final de um ciclo e o início de um novo, onde pretendes chegar a seguir? Já tens um caderno com anotações?

Eu não sei. Durante este tempo em que estive sem gravar passou-se tanta coisa… Em 2016, a meio deste disco, fui ao concerto de despedida dos Buraka Som Sistema e, por causa das luzes, tive uma crise epiléptica. Marquei uma consulta e descobri que tinha uma recidiva do meu tumor. A meio do disco eu fui operada e a minha recidiva foi muito mais grave do que da primeira vez que eu tive o tumor. Portanto, interrompi o disco e acabei de fazer a minha quimioterapia em Fevereiro. Quando fui operada em 2009 decidi que ia deixar de cantar. Era cansativo e tinha de lidar com as pessoas. Enquanto eu tiver vontade de fazer música vou estando por aqui. Se a vontade acabar… Eu posso fazer outra coisa qualquer. Eu gostava era de continuar a criar ao lado de pessoas com talento, de modo a que aprenda sempre algo.

Queres fazer-me uma lista dessas pessoas que te têm entusiasmado? Já falámos de algumas por aqui certamente — o Kalaf, o Carlão, o Toty Sa’Med, que está no teu disco…

Ainda tenho coisas para fazer com o Mia Couto. Com o Agualusa já fiz mas ainda não usei. Com o Paulo Flores só “ameaçámos” fazer, temos de fazer muitas mais coisas. O Branko não entrou neste disco, estava com a agenda cheia. O Manecas só fez um refrão. Gostava de trabalhar com tanta gente e estou neste momento a fazer uma série de canções com outras pessoas — a Selma Uamusse, Mafalda Sacchetti, Mikas Cabral… Algumas cantoras brasileiras — Anna Tréa, a Maria Gadú quando vem cá está sempre a convidar-me, é até ter disponibilidade. Com o Kalaf combinámos fazer um banco de canções. Sempre que vier alguém nós juntamos-nos e fazemos canções, canções, canções. E é isso que me dá gozo fazer. Continuar no flow e ir criando. É essa a segurança de um compositor.


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