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Fotografia: Barun Chatterjee
Publicado a: 13/09/2019

O álbum de estreia da rapper nascida na Zâmbia tem a chancela da Ninja Tune.

Sampa The Great: “A ideia por trás de The Return é iniciar um debate, não é chegar a conclusões”

Fotografia: Barun Chatterjee
Publicado a: 13/09/2019

São oito da manhã e, ao contrário do que é habitual, o telemóvel e o gravador já estão a trabalhar em comunhão. Do outro lado, e a partir da Austrália, Sampa The Great recebe-nos com um andamento próprio de quem está num fuso horário mais propício para conversas: o discurso é claro e nunca foge do cerne das questões que lhe são colocadas, confirmando a ideia pré-adquirida através da audição das suas músicas que estamos perante uma artista que sabe bem para onde quer ir e o que tem que fazer — sem subterfúgios — para lá chegar.

Criada entre a Zâmbia e o Botswana e, mais tarde, estabelecida na Austrália — ainda com direito a uma curta passagem pelos Estados Unidos da América –, a rapper estabeleceu o nome com Birds And The BEE9, mixtape que lhe garantiu uma inesperada vitória no Australian Music Prize, distinção anual que selecciona o melhor álbum e oferece 30 mil dólares ao seu autor.

The Return, o seu disco de estreia que acaba de ser lançado pela Ninja Tune, é a forma de voltar a casa e recuperar o sentimento de pertença que perdeu nos anos em que viveu e viajou por outros continentes afastando-se da base enquanto se apresentava em primeiras partes de concertos de Kendrick Lamar, Ms. Lauryn Hill, Thundercat, Joey Bada$$, Noname, Ibeyi, Little Simz ou, mais recentemente, Burna Boy.

“Casa” e “identidade” são a base para se pensar neste trabalho que mistura as línguas inglesa, bemba e algum calão sul-africano, e explora, musicalmente falando, géneros como hip hop, afrobeats, neo-soul, jazz, electrónica e r&b. Na produção, Sampa conta com as preciosas contribuições de Kwes Darko (DJ e produtor de slowthai), Silentjay (parte importante da vibrante cena musical australiana), Clever Austin (da banda Hiatus Koyote) ou Blue Lab Beats e Steam Down, duas “peças” que pertencem ao estimulante panorama do jazz londrino. Só olhando para estes nomes, e juntando-os à profundidade poética e elasticidade de flows da MC, o quadro pinta-se sozinho: estava tudo disposto para encontrarmos uma das obras mais excitantes a sair este ano.

Numa entrevista que durou cerca de 20 minutos, Sampa The Great falou os detalhes de The Return, a importância de reflectirmos sobre quem somos e a necessidade de iniciar um debate sobre o que significa “casa”.


Obrigado por teres aceite este pedido de entrevista. Quero começar pelo título do disco: que “regresso” é este?

[É sobre] regressar à tua essência original. Sendo mais concreta: foi o meu regressar a casa como Sampa The Great, o meu nome artístico. Antes de 2019, eu nunca tinha feito um espectáculo profissional na minha terra. Este ano foi a primeira vez que pude fazê-lo à frente da minha família. Foi a primeira vez que pude ter a minha família nos meus vídeos. Foi uma espécie de regresso da filha pródiga a casa.

Fala-me do artwork. Parece-me que se passa ali muita coisa…

A capa foi feita na Zâmbia. Estou sentada em frente a uma habitação que remete para “casa”, o grande tema que liga o álbum. Como já disse noutras entrevistas, eu comecei a minha carreira na Austrália e descobri que estar longe de casa cria uma sensação de deslocamento. Quando discuti isso com os meus amigos e familiares, ficou claro que muitos de nós passam por esse sentimento de nos sentirmos deslocados. Ainda mais se não puderes voltar a casa; ou até podes estar no teu sítio e não te sentires em casa. Por essas razões, o assunto “casa” tornou-se um tópico central e questões como “onde é que é a nossa casa?”, “o que é realmente casa?” e “podemos criar um sítio que sintas como casa dentro de ti próprio?” foram-se levantando durante a construção do disco. Por isso, achei que era importante pôr uma casa na capa, já que é sobre isso que fala.

Mas, indo mais fundo, é mais sobre explorares o teu eu, que é a tua primeira casa. Vê-se a casa lá, eu estou em frente à casa e também temos o dançarino Nyau, que é tradicional da Zâmbia. Diz-se que eles se conectam ao mundo espiritual e ao cosmos. É diferente em cada país africano. E eu acho bonitas essas espiritualidades africanas que trazemos connosco, mas que são muitas vezes confundidas e vistas como demoníacas ou más, e quis trazer essa interpretação para a minha jornada de regresso a casa. Se vires bem, o dançarino está entre mim e a porta, isto para dizer que aquilo que tu não percebes — e que até temes… — pode estar a bloquear o caminho para ti mesmo ou para casa. Todos esses significados e metáforas estão presentes na fotografia.

Quanto tempo é que levou a fazer este disco? Quando é que começaste a trabalhar nele?

Eu diria que comecei há um ano e meio. Algumas canções foram feitas mais cedo, e nem tinham a ver com o tópico do álbum, mas encaixaram bem na mesma. Canções como a “Heaven” ou a “Grass is Greener” foram criadas um pouco antes.

Tu assinaste inicialmente pela Big Dada, mas passaste rapidamente para a “mãe” Ninja Tune. Isso já estava previsto ou foi algo inesperado?

Logo depois de Birds And The BEE9 sair, eles perceberam o que eu queria fazer (e o que era) enquanto artista. Acharam que eu estaria melhor na Ninja Tune.

Já tive oportunidade de ouvir o disco e fiquei com uma boa primeira impressão.

Obrigado! Ouviste as 19 canções? [Risos]

Sim!

Eu quero que as pessoas percebam que é uma viagem. 19 músicas… elas têm que estar num sítio onde possam ouvi-lo sem serem interrompidas.

E qual é o teu processo criativo. Li algures que tinhas propensão para escrever primeiro e só depois pensar na música, mas como é que aconteceu para este caso em específico?

Varia. Às vezes a música vem primeiro. Alguém toca teclas e a emoção que me está a transmitir vai ser traduzida para a letra. Outras vezes, eu tenho um poema, uma melodia ou um refrão e alguém toca por cima e torna-se uma canção.

Existem muitos nomes na lista de colaboradores, mas muitos deles são, pelo menos para mim, completos desconhecidos. Como é que aparecem estas pessoas neste disco?

Apareceram naturalmente. Eu acho que nunca me sentei e pensei, “este é o feat. que quero no meu álbum”. Talvez tenha existido uma tentativa [que não deu em nada], mas habitualmente as músicas acontecem nos sítios em que estou, com quem está à minha volta e se revê na história. Estas vozes são de pessoas que conheço em Melbourne. A maioria das pessoas no álbum vivem comigo em Melbourne. São pessoas com quem falo, com quem como, que percebem de onde venho e para onde vou. A maioria das pessoas é daqui. Sabes, os feats. não foram complicados de escolher, mas tive que me sentar um bocado a pensar na ordem das músicas no alinhamento. Eu sabia que ia ser longa a caminhada que ia fazer; e descobrir a maneira como queria soar durante esse percurso foi algo em que tive de perder algum tempo a pensar. As pessoas que participam aparecem depois das canções estarem estruturadas. Eu era do tipo, “eu oiço esta voz, eu oiço aquela voz”. Quer dizer, para a “Made Us Better” liguei para as pessoas antes — Lori, Blue Lab Beats e Boadi. Os Steam Down, que estão creditados em “Summer”, também. Eu liguei-lhes antes porque estava na Europa e convidei-os para aparecerem no estúdio. Por acaso, alguns deles acabaram no disco.

Apesar de já se sentir isso em músicas dos teus projectos anteriores, parece-me que aqui estavas realmente à procura de uma espiritualidade e de um groove muito particular. O Kamasi Washington dizia numa entrevista contigo que só se apercebeu tarde que existia uma divisão entre géneros musicais e o Ambrose Akinmusire entrou pelos mesmos caminhos numa conversa connosco este ano. A ideia de canalizar aquilo a que chamam “música negra” (e que inclui jazz, r&b, gospel, rap ou soul) estava no teu pensamento quando conceptualizaste este trabalho?

São ramos da mesma árvore. Música negra não é complexa, é construída em cima de experiências e emoções fortes, por isso é uma das mais honestas. Eu faço questão de não me manter presa a um género. Esse poderá ser o meu único problema. Eu adoro ir buscar inspiração a sítios diferentes para colocar na minha música, basta que não limite a minha forma de expressar. Adoro aprender sobre algo que não sei para incluí-lo nas minhas criações.

Estava a ouvir a tua entrevista com o Ebro na Beats 1 e falavas da música como “linguagem unificadora” da diáspora africana. Viajar pelo mundo foi mais uma forma de perceber para onde ias e o que querias?

Eu acho que o que liga a diáspora africana é a nossa cultura, e essa cultura está cravada na minha música. Eu sei que essa conexão está lá. Estando ligados pela música e cultura, nós, os africanos, vamos reagir a isso onde quer que estejamos no mundo. Temos o exemplo do género afrobeats, que vem da cultura nigeriana, mas que é abraçada por todos. Eu acho que viajar ajudou a isso porque estive em diferentes sítios e vi que a diáspora dança a mesma música que dançamos em casa. No fundo, ajudou-me a perceber que essa ligação existe a um nível global.

Estamos a viver um belo momento no hip hop e na música em geral: vários artistas de diferentes partes do globo têm conseguido saltar a difícil barreira comercial dos Estados Unidos da América e as mulheres no hip hop em particular estão a ter um momento — tens Rapsody, Cardi B, Megan Thee Stallion, Noname, Rico Nasty, Little Simz, Sho Madjozi, Dope Saint Jude, Yugen Blakrok, entre muitas outras. Ouvi recentemente um escritor português, Valter Hugo Mãe, a dizer que o século XXI era o século das mulheres. O século em que deixaram de ter paciência para serem disciplinadas. Tenho duas perguntas a partir daqui: primeiro, concordas com o escritor português? Segundo, pela tua experiência na estrada, na indústria e em conversas com outras artistas mulheres, achas que estamos a chegar a um ponto em que questões como a misoginia e o machismo, falando mais concretamente do hip hop, começarão a ser seriamente debatidas e resolvidas?

Eu acho que se é um problema na sociedade, então vai ser um problema no mundo das artes. Para mim, a arte reflecte/imita a vida. Nós continuamos a lidar com sexismo, racismo… Mas falando de hip hop, e é algo que realmente tem prevalecido, ele [o Valter Hugo Mãe], mesmo não estando a pensar concretamente nisso, até poderá estar certo: nós, as mulheres, chegámos a um ponto em que nos cansámos e não vamos pedir mais licença. E basta ver o idiotismo em situações como a do Jermaine Dupri, em que ficas, “tu tiveste mesmo coragem de dizer esta estupidez em voz alta…”

Mas eu falo por mim: sempre estive cansada desse tipo de tratamento. Ao vermos mais representação, a nossa confiança vai continuar a aumentar — e isto é só o início.

Depois de uma série de projectos bem recebido, chegas ao sempre exigente álbum de estreia. Quais são as tuas expectativas?

Para mim, só me interessa o nível da ligação [com quem ouve]. Porque “casa” é um tópico profundo. A minha conclusão no álbum não é a mesma conclusão para toda a gente — e nem há uma conclusão, na verdade [risos]. A ideia é iniciar um debate, não é chegar a conclusões. Identidade também é um tópico importante. Eu espero que as pessoas se sentem e comecem a ter essa conversa com elas mesmas sobre o que é “casa”. E porque é que descrevem o sítio onde estão como “a minha casa”. Para além disso, só mais uma coisa: não tem problema se não gostarem do disco! [Risos]


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