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Texto: Hugo Geada
Fotografia: Débora King
Publicado a: 16/04/2025

“Simples e dançáveis”.

SAMALANDRA: “Se for muito complexo ou intelectual… se calhar não é bem para aí que queremos ir”

Texto: Hugo Geada
Fotografia: Débora King
Publicado a: 16/04/2025

Estava uma tarde húmida em Ovar, daquelas em que não sabemos se devemos sair de casa de t-shirt ou com um chapéu de chuva. Tempo ideal para os anfíbios saírem dos seus esconderijos. No passado sábado, 12 de abril, foi possível ver uma SAMALANDRA em cima do palco do bar do Centro de Artes de Ovar (CAO), no âmbito do Ovar em Jazz’25.

Esta SAMALANDRA é composta por três membros, Débora King (teclas e voz), Tiago Martins (baixo e samples) e João Neves (bateria), e são naturais de Lisboa. São velhos conhecidos do Rimas e Batidas, tendo-nos conquistado enquanto uma das maiores promessas da música portuguesa e um dos principais representantes de um novo movimento jazz a que temos assistido em Portugal, onde estão também incluídos nomes como YAKUZA, Lana Gasparøtti, Bardino, Fumo Ninja, Femme Falafel, OCENPSIEA e tantos outros.

Estes jovens talentos estão a repensar o jazz através de fusões com linguagens contemporâneas — como o hip hop, eletrónica, ambient, rock psicadélico — e a criar um produto final que é diferente de tudo aquilo que já presenciámos. Se ouvirem a música de SAMALANDRA, vão perceber melhor esta explicação. Tantas foram as peles que vestiram e diferentes os sons que mostraram que, durante o concerto, chegámos a pensar que estávamos a ver um Calameão. Podem testemunhar isso mesmo já este sábado (19 de abril), quando o trio se apresentar (juntamente com os YAKUZA) na sessão de estreia do Santo Antão Jazz Clube, um evento mensal curado pelo director do Rimas e Batidas, Rui Miguel Abreu, para a nova sala do Coliseu dos Recreios — o Coliseu Club.

O grupo apresentou faixas que fazem parte do EP de estreia homónimo lançado em 2023 (e que vai ser editado ainda este ano em vinil), como “ARTIFICIÊNCIA INTELIGENCIAL” (nome real da faixa, desta vez não foi uma brincadeira do jornalista) e músicas que ainda não foram editadas, nomeadamente “Nawi” (batizada com o mesmo nome de um axolote de estimação de Débora). 

Ao longo da setlist, tivemos vontade de dançar em canções mais ágeis quando Tiago apresentava linhas de baixo com mais ginga; de abanar a cabeça e os cabelos assim que a bateria de João era espancada com mais violência; ou de fechar os olhos e deixar-nos guiar pelas paisagens que Débora criava com o sintetizador.

Depois deste momento musical, tivemos oportunidade de nos sentarmos com os artistas para uma interessante conversa sobre música, o estado do jazz em Portugal e o futuro deste estilo.



Vocês lançaram o vosso primeiro EP, há quase dois anos. Podem fazer uma retrospetiva do vosso percurso até agora? Como é que vocês acham que a SAMALANDRA está a crescer? 

[João Neves] Eu diria… estavelmente. Sinto isso porque temos tido concertos cada vez melhores.

[Tiago Martins] Acho que se sente também na expansão. Já não temos apenas concertos locais onde conseguimos desenrascar alguma coisa ali nossa zona, em Lisboa. Agora, começamos a ter estas propostas de festivais de jazz, apesar de ser um circuito que, no início, não era o que estávamos à espera de frequentar. 

[Débora King] A nossa estética também está a maturar. Quando começámos, desenvolvíamos as ideias como podíamos e com o que tínhamos. Agora sinto que estamos a consolidar tudo e a focar mais. 

[TM] Se calhar falta aqui uma amostra dos temas novos que gravámos para justificar isto [risos]. Normalmente, estou mais envolvido no processo de composição, mas sinto que a Débora e o João têm estado mais “virados” para criar canções.

[JN] Acho que também não nos preocupamos muito em colocar barreiras. Às vezes é mais desafiante, mas, normalmente, começamos a compor a partir de uma ideia muito simples. Temos uma noção do ritmo, de quem faz o quê em cada secção, mas impomos muitas limitações. No máximo, queremos manter as coisas simples e dançáveis. Se começar a ser demasiado complexo ou intelectual… se calhar não é bem para aí que queremos ir. 

Apesar de não estarem completamente casados com esta ideia, isso quer dizer que vamos ter mais canções e um foco maior nas letras no próximo registo dos SAMALANDRA?

[TM] Quando começámos a tocar, muitos dos temas tinham letra em inglês. Depois é que foram traduzidas e adaptadas. 

[DK] Saber que iria ter de escrever em português, a priori, ajuda a formular o processo e a ter outro tipo de ideias.

[JN] Este projeto era para ser completamente instrumental no início. A Débora sempre gostou de cantar e às vezes cantarolava as melodias, mas nunca tinha cantado em nenhum projeto. 

Como é que surgiu a ideia de cantar em português?

[JN] O Tiago é a pessoa que às vezes nos dá confirmações deste estilo. Ele costuma dar a opinião do que é “fixe” ou não. 

[TM] Eu não diria que dou a confirmação, mas… Eu puxo um bocadinho da experiência que vou tendo de outros circuitos e de outras bandas [Tiago toca baixo em projetos como os Expresso Transatlântico ou Femme Falafel]. Isto de começar a escrever em português foi algo que me pareceu fazer mais sentido. Era mais um fator diferenciador. 

[DK] E foi a melhor coisa que fizemos. Era um território novo para ser explorado. 

É algo que faz todo sentido com a vossa identidade e humor. 

[JN] O nome também foi um caso desses. A Débora mandou a ideia para o ar e ficámos a achar que era um bocado parvo. Quando contámos ao Tiago ele disse logo que era o nome perfeito para a banda. Nós ficámos um bocado desconfiados, mas depois confiámos nele. Aconteceu o mesmo quando sugerimos “ARTIFICIÊNCIA INTELIGENCIAL” como título para uma canção.

[TM] Não quero que pensem que eu sou um “ditador” [risos]. Era algo que fazia todo o sentido com o que estamos a fazer. A nossa música tem muitas rasteiras sonoras. 

Tendo em conta o vosso som e como ele tem evoluído, às vezes sentem que estão a trair as instituições que vos ensinaram a tocar jazz? 

[TM] Podemos estar a trair o que é a tradição do ensino do jazz em Portugal e certos cânones que são válidos, mas o objetivo devia ser sempre conseguir consolidar um vocabulário que nos permite expressar como pretendemos. Por exemplo, as nossas prioridades não são improvisar à colcheia quando estamos a fazer música. Não é sobre prestar tributo ao fraseado do Charlie Parker. 

[DK] Acho que começa a tratar-se de tocarmos e criarmos algo que nos faça sentir que é genuíno. Portanto, temos de abraçar e aceitar o que estamos a fazer. Há regras a serem quebradas.

Sinto que isso devia ser o mais natural num estilo como o jazz. No entanto, parece que existem instituições que se afastam de grupos que procuram fugir à norma.

[TM] Às vezes é só porque é o método mais quantificável. É mais fácil dizer que uma pessoa cumpriu requisitos académicos ou que domina uma certa técnica quando esta está dividida por parâmetros. Isto aqui é música que não conta para a nota.

Acham que o EP de SAMALANDRA teria uma boa nota na faculdade? 

[Risos]

[TM] Talvez. Se fosse apresentado num recital final com estes arranjos ia ter a sua validade, mas ia depender do professor. Eu cheguei a tocar James Blake e tive um professor que, nas aulas, trazia temas do Jeff Buckley ou de Soundgarden.

Vocês sentem que são mais Primavera Sound ou Porta-Jazz?

[DK] Primavera Sound. Estamos mais ligados a este lado mais alternativo do que ao jazz. 

E achas que era mais fácil irem lá tocar?

[DK] Acho que sim. Apesar de existirem questões que não são exclusivamente estéticas.

Sentem que pode ser um problema para bandas do vosso estilo não haver mais abertura e dinâmica para receber estes projetos? 

[DK] Nós temos a vantagem de nos conseguirmos adaptar a qualquer tipo de festival. Podemos tanto estar num festival de jazz, como num festival de indie ou eletrónica. Mas, ao mesmo tempo, não somos nenhum destes estilos. Isso pode dificultar caso os programadores estejam à procura de algo mais em concreto.

Conseguem ver este paradigma a mudar? Acham que, por exemplo, as instituições onde estudaram um dia vão estar a ensinar música de grupos como os A Tribe Called Quest ou de alguém como o Floating Points? 

[TM] Há a possibilidade. Tens iniciativas como o Jazzopa [oficina anual de composição para estilos como o jazz, hip hop e spoken word desenvolvida pela Associação Sons da Lusofonia (ASL) com a OPA – Oficina Portátil de Artes] que procuram criar pontes entre estilos. 

[DK] Existem também casos de pessoas como o Mané Fernandes que já são nossos mentores e estão a trazer este som para a discussão. É graças a figuras como ele que isso vai começar a introduzir-se. 

Que vantagens existe ao estudar estes estilos fora do jazz? 

[TM] Para já, abre muito mais o espectro sonoro e tímbrico. Deixas de contar apenas com a instrumentação clássica do jazz – de contrabaixo, instrumento de sopro, solista, piano acústico, bateria. Quando adicionas elementos como sintetizadores ou percussão eletrónica, começas a ter gamas de frequências diferentes e formas diferentes de sentir a música, de a misturar, de a apreciar. Isto é uma riqueza que pode ser aproveitada para qualquer estilo musical, incluindo o jazz. Isto é algo que já tens a acontecer na pop. Se há 20, 30 anos, era muito à base de guitarras elétricas, hoje tens um foco maior na eletrónica. A EDM deixou de ser algo de nicho, da Internet e das discotecas. 

Na mesma lógica, temos o rap a voltar a aproximar-se cada vez mais do jazz. 

[DK] Sim. Por exemplo, o Common é um rapper que é muito fã de jazz e isso nota-se pela maneira como canta. Até mesmo o Kendrick Lamar, ele explora a voz e o rap como se fosse um instrumento de jazz. 

[TM] Mesmo em termos rítmicos, sempre existiu um contacto muito próximo, especialmente nos primeiros discos de hip hop. O sampling era muito à base dos discos de jazz, porque tens muito espaço entre o som de cada instrumento, é mais fácil cortar uma parte do beat que é só a bateria ou apenas um acorde.

[DK] A Tribe Called Quest, por exemplo, é das melhores referências que eu conheço de fazer sampling de jazz.

É impressionante como todas estas possibilidades acabam por criar uma nova linguagem. Uma das minhas coisas preferidas na vossa música é como a voz está tão alterada por efeitos que, a certa altura, já nem é possível distinguir se é um homem ou uma mulher a cantar, criando um efeito polimórfico. Isso era um objetivo do grupo?

[DK] Nunca tinha pensado nisso dessa maneira. Mas é curioso dizeres isto. Percebo que, por exemplo, na “ARTIFICIÊNCIA INTELIGENCIAL”, o uso do vocoder suscite essa dúvida. Diria que é uma boa descrição da nossa música.

Sentem que a nova geração de músicos de jazz tem a mente mais aberta ou mais fechada? 

[DK] Existe uma abertura para tudo ao mesmo tempo. Temos cada vez mais músicos a sair das universidades, a assumirem-se como autodidatas e isso faz com que haja cada vez mais diversidade. Isto traz mais abertura, mas sei lá, acho que sim. Agora, no caso dos músicos que passam por academias é uma história diferente. À partida, vai haver alguma doutrina sobre o que deve ser jazz ou não.

O que é que para vocês é jazz? 

[TM] O jazz mais legitimado do nosso quotidiano é tido às vezes como uma coisa mais leviana e que tem pontos de contacto com outros elementos. 

[JN] No meu primeiro ano da faculdade, deram-me um artigo que explicava o que é que era o jazz e o que é que o identificava. Tinha vários fatores, como a existência ou não da improvisação… só por aí já negava a música das orquestras do Glenn Miller. A conclusão do artigo é que é impossível responder a isto. Nunca vai existir uma resposta consensual.

[DK] O Nicholas Payton, um trombetista norte-americano, fala muito sobre esta questão. Ele diz que, para ele, o jazz não é nada. É apenas uma palavra que inventaram para descrever a música que surgiu da música afro-americana. Há muitas questões que ele coloca sobre esta questão, se foi só uma palavra que arranjaram para descrever algo ou se servia para separar e fazer uma distinção. 

Existe espaço e palco para todas estas diferentes visões do que é este estilo de música?

[DK] Sim, acho que sim. Desde que a música seja feita de forma genuína, acho que merece ser ouvida.

[JN] Existem pessoas que adoram a tradição do jazz e gostam de fazer isso. Para nós, está tudo bem. Nós próprios gostamos desse som, mas também gostamos de explorar as coisas que queremos fazer. Acho que há que respeitar essa decisão.

[TM] Ninguém diz: “Pessoal, vamos fazer uma banda de jazz”. Acho que há mais uma causalidade direta do que necessariamente uma preconceção para este estilo. Nós, por exemplo, nunca tivemos uma discussão sobre qual deveria ser o tempo da música ou algo deste estilo.

[JN] Quem sabe, daqui a 10 anos, até podemos estar a tocar jazz tradicional. Mas tudo vai depender da nossa evolução e dos nossos interesses. 

[DK] Aliás, nem sequer imaginava, há cinco anos, estar a explorar este tipo de sons e, de alguma forma, dizer que isso está associado ao jazz. Para mim, as minhas ambições eram tocar piano e tocar bem. Isso é só uma questão de técnica muscular, de ouvido, de ter todos esses parâmetros bem dominados. Agora, quando os sintetizadores entraram na minha vida, foi começar a usar estes parâmetros aplicados a toda uma realidade diferente.

Acham que este novo jazz também é uma boa forma de ajudar pessoas que normalmente não estão representadas no jazz tradicional a chegarem-se à frente e a mostrarem o seu talento?

[DK] Sim, completamente. Há a questão do género e da pouca representatividade em Portugal de mulheres a tocar jazz, especialmente instrumentos. Tanto que isso nem inspira as novas gerações a fazer música. Não existem figuras femininas para olhar e dizer: “Eu quero ser assim”. Esta nova vertente já tem mais representatividade, não só lá fora, mas também aqui. Já é algo que possa dizer uns quantos nomes e dizer que esses são os meus modelos e são mulheres.  

Existe inclusive uma série de mulheres a e liderar os seus próprios projetos, como a Lana Gasparøtti, a Femme Falafel…

[DK] Ou a Margarida Campelo. Nos Estados Unidos, tens também a Rachel Eckroth, teclista da St. Vincent, que também domina o instrumento, o sound design, domina fazer isto tudo ao mesmo tempo. É toda uma arte.


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