CD / Digital

Sam The Kid

Um Café e a Conta

Quarto Mágico / 2021

Texto de Paulo Pena

Publicado a: 18/07/2021

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Haverá melhor maneira de acabar o dia em que se contam as voltas ao Sol do que a ver e a ouvir, em primeira mão, um novo disco de Sam The Kid ser revelado? Deste lado, a resposta é suspeita, mas não menos consensual. E consensualidade é uma palavra que, apesar da sua frequente conotação morna, insossa até, representa sobre Samuel Mira a maior das suas conquistas numa carreira com tantos degraus quanto êxitos, de alguém que se destacou a fazer o que poucos conheciam, e ainda menos faziam, para duas décadas mais tarde (a caminho das três…) continuar a fazê-lo com a mesma paixão, no mesmo “quarto mágico”, de forma incomparável. 

Foi assim que, na noite de 16 de Julho — na véspera do dia em que o próprio Sam conta as suas voltas ao Sol e, precisamente, um ano depois de editar Caixa De Ritmos —, o rapper e produtor de Chelas apresentou, em directo, o seu novo trabalho. Um Café e a Conta é, na visão do autor, uma reimaginação instrumental sob excertos a capella do rapper e amigo de longa data Valete, ele que havia prestado semelhante homenagem, em 2018, com o tema “Samuel Mira” — cuja remistura, intitulada “Obra”, fecha este recentemente estreado longa-duração —, e que ouviu este conjunto de temas desenhados à volta da sua voz, pela primeira vez (e abra-se este premente parêntesis para a pergunta que se impõe: vamos poder ver e ouvir Viris a cantar um tema ao vivo pela Primeira Vez, no novo programa de STK em parceria com a Antena 3?), durante a sessão de audição do projecto nessa noite. 

Tudo começou por um exílio criativo nas planícies do Alentejo, onde Sam desenvolveu uma boa parte de Um Café e a Conta. Nesse período de tempo, isolado e compenetrado nas suas batidas, no seu imaginário fervilhante, o “mechelas” levava uma rotina marcada pelo silêncio, que era religiosamente quebrado a horas certas com a deixa final de qualquer refeição diária, num qualquer restaurante da região: “um café e a conta”. Quantas obras intemporais foram feitas à base de café, o óleo do motor composto por massa cinzenta?

Esta foi produzida entre o drama e a cafeína. A abordagem não poderia ter sido outra, na verdade. Há uma certa responsabilidade acrescida, um peso inevitável em pegar numa série de versos (dos mais antigos aos mais recentes), alguns dos mais célebres da história do hip hop português, e reorganizá-los, desregradamente, sobre uma banda sonora totalmente diferente das que servem os temas original e isoladamente fabricados. Assim, a única forma de fazer justiça à matéria-prima e, simultaneamente, criar um trabalho independente e livre seria aquela que Sam escolheu: mergulhar na sua imaginação e trazer à tona as sensações que as palavras de Valete imprimem no seu subconsciente. Não foi por acaso que Samuel se isolou e demorou tanto tempo a moldar esta obra. Ainda que sob a alçada de uma liberdade incondicional, houve que, no entanto, respeitar um processo de redescoberta, de maturação, de reencontro — como se de um retrato impressionista se tratasse. Uma cara que Sam conhece desde sempre, mas que, para a pintar com novas cores e sentidos, teve de olhar para ela como talvez nunca tenha olhado e, mais do que reconhecer os traços da mesma, decifrar as expressões de um rosto que, aparentemente, já seria um livro aberto para si.



Essa carga emocional indispensável foi o que prevaleceu ao longo das 20 faixas que compõem o álbum. Desde a emoção à revolta, passando pela fantasia. Da alvorada do disco, pela luminosa “Dizes”, ao sumptuoso final, igualmente dramático, de “Obra”. Da nostálgica “Amigos” às lágrimas provocadas por paixão, em “A Pura Verdade”, ou por saudade, em “Mano Eduardo”. Da sedução (essa coisa muito bonita de outro tempo…) subjacente a “Obsessão” à desilusão d’”Elas” e à angústia de “O Amor É”. Entre a insurreição, em “Sorri”, “Preto Como Jesus” ou “Todos Querem Ter Poder”, e a revolta de “Mentira”, “CXV” ou “Testemunho”. Do devaneio de “Viaja No Meu Flow” ao triunfo de “Eu Lá Chegarei”. O drama e a emoção são os denominadores comuns de toda a panóplia de sentimentos que brotam em cada tema.

A distinção entre remistura ou reimaginação (ou “rimaginação”, na letra de STK, um eventual conceito codificado sobre o processo criativo em volta da rima de Keidje Lima) é, por isso, fundamental na caracterização deste disco. Em vez de montar novos instrumentais por baixo dos versos estaticamente recuperados, Sam escolheu a dedo os elementos que serviriam de base à sua estrutura, para depois realizar um trabalho de alfaiate. Começou pelo corte e costura do material de Valete (e não só…) e partiu para a nova roupagem, feita à medida para cada ocasião preparada pelo próprio. Há que ter em conta que, se para o comum ouvinte a música de Valete já está entranhada há vários anos, Sam há-de ser, certamente, das pessoas que melhor conhece o reportório do companheiro de armas. Ainda assim, esqueçam tudo o que ouviram do autor de Educação Visual Serviço Público, sem desprimor (como se tal fosse possível) para as canções originais. Mas a reinvenção que Sam The Kid levou a cabo tem, realmente, o poder de apagar, por momentos, toda essa memória estanque e de dar uma nova vida a fragmentos inseparáveis e intocáveis. É como se Sam, depois de tantos anos a ver Valete subir ao seu “sétimo céu” com as mesmas roupas, peças indissociáveis da pele de Viris, olhasse para o parceiro e visse o que mais ninguém teria capacidade para ver. E isso acontece precisamente porque Sam vestiu a pele de Valete, viu o mundo através dos olhos de Valete e sentiu as palavras de Valete como se fossem suas. É um método que vai da realização à encarnação da personagem; um cruzamento entre duas mentes que se estudam uma à outra há mais de 20 anos; um encontro unilateral mas a meio caminho.

Já em Beats vol.1: Amor conhecemos um Samuel através de uma história, que não era a sua, contada por melodias e batidas. Agora, Sam volta a mostrar-se por meio de outra história, que não é, definitivamente, a sua, e fá-lo, novamente, por intermédio da produção que tem tanto de si como as suas rimas. Se o truque mágico inicial estava em puxar o tapete a quem via a obra de Valete como património imutável, o verdadeiro prestige está na forma como olhamos para Um Café e a Conta. Numa narrativa pensada em torno de Keidje Lima revelou-se um Samuel Mira com o subir do pano e o abrir das cortinas, ainda com a personagem por despir. E, se olharmos mais uma vez, vemo-los aos dois no centro do palco, as duas maiores figuras do rap nacional viradas uma para a outra, curvadas numa vénia mútua, ambas responsáveis pelo espetáculo que dura há 20 faixas, há 20 anos. A moral da história é que Um Café e a Conta depende, exclusivamente, das histórias cruzadas de cada um. Haveria Sam The Kid sem Valete e Valete sem Sam The Kid? Nunca saberemos. Nem queremos. Só queremos mesmo Um Café e a Conta, por favor.


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