Já todos a postos e em suspenso, Napoleão Mira entra em palco, curva-se sobre o gira-discos, levanta a agulha e, ao pousá-la, abre uma brecha no tempo de volta a 2002. Ano em que o seu filho, Samuel Mira — ou Sam The Kid, para quem, à época, já conhecia a sua música —, havia editado Beats Vol 1: Amor pela Loop:Recordings, disco em primeiro plano nesta primeira de duas noites esgoadas no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Vinte e três anos depois da sua publicação, tocar pela primeira vez um disco de beats acompanhado de banda e orquestra é obra. Talvez a mais importante obra na carreira de Sam The Kid, esta que hoje nos apresenta ao vivo do princípio ao fim. Uma que marcou diferentes audiências, arrebatou a crítica e perdurou por gerações até, duas décadas mais tarde, continuar a ecoar com a mesma pulsação que reveou aquando da sua edição original.
Para Samuel, a julgar pela emoção que imprime nos seus movimentos expressivos e, ainda assim, contidos, é como se fosse também a primeira vez a tocar para si próprio os seus encantadores beats. Mais do que os apontamentos decorativos que compõem o palco, entre capas de discos vinil (Isaac Hayes ao centro, como não poderia deixar de ser) e televisores onde vão passando imagens (e algumas pistas…) de cantores soul, actuações televisionadas, cinema — mais filmes, séries, telenovelas… — de décadas coincidentes, é a absoluta compenetração do rapper e produtor nascido, criado e singrado em Chelas que nos transporta para o seu quarto mágico de onde terão saído estas composições.
À sua frente tem a MPC — não a velhinha 2000 com a qual produziu este Beats Vol. 1: Amor — para mais uma dança a dois. Desta vez, há espaço para levantar o véu e estender alguns dos samples que se tornaram inconfundíveis nas suas versões corte-e-costuradas. São, além do mais, essas deixas em sucessivos momentos prolongadas que servem de sinal de arranque a Fred na bateria, Francisco Rebelo no baixo e João Gomes nos teclados — que para Orelha Negra inteira lhes falta apenas a presença de DJ Cruzfader — em primeira instância. Depois, a espaços, são as duas dezenas de músicos também presentes que intervêm a arredondar floreados propostos sobre um alinhamento intocável, uma orquestra que se divide entre violinos e violoncelos, trompetes, saxofone e clarinete, para engrandecer essa opus magnum. Todo este ensemble coordenado pelos olhares discretos e os gestos hip hopianos deste autêntico maestro, um eterno “não-músico” à frente de uma irrepreensível turma de músicos, autor de um trabalho que ao virar do milénio abriu por cá horizontes à música hip hop enquanto música propriamente dita e reconhecida.
É ele quem nos conduz todos, uma vez mais, pelas infindáveis histórias de amor que cabem nesta sala, a começar pela de Napoleão e Isabel e até chegar à de Samuel: o amor pelas notas musicadas, onde as (parcas) palavras têm significado mas pouco importam, que não só não tem fim como estará prestes a revelar um novo início. E haveria de ser com essa nota que Samuel viria a terminar em “O Amor Não Tem Fim” o que começara com “Beleza”, entre os braços dos seus pais, visivelmente emocionado a tropeçar nas suas próprias palavras — aquelas pelas quais é, fundamentalmente, aclamado enquanto o mais admirável “não-músico” português —, para sublinhar precisamente a condição infinita, nunca estanque, desse amor re-imaginado em 17 temas instrumentais. Volume 2, até breve.







