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Fotografia: tomicornio
Publicado a: 03/08/2022

Todos saímos a ganhar com a inclusividade e diversidade na noite.

Saint Caboclo: “Nunca quis ser a pessoa que tem a chave para o sucesso e não a partilha”

Fotografia: tomicornio
Publicado a: 03/08/2022

Dengo Club, festa – “queer and black owned” – pensada e concretizada por Saint Caboclo e a sua equipa, veio abanar não só os corpos mas também as estruturas e os valores do circuito das festas na capital portuguesa, planeando estender-se a outros pontos do país e, quem sabe, do mundo. 

O próximo evento, a 13 de Agosto no LAV, vai contar com uma actuação de Titica, figura icónica do kuduro e mulher trans, um furacão da cultura queer angolana, estabelecendo-se aí, de forma involuntária, um paralelismo com a festa Dengo e o que ela representa em Portugal. A revolução já começou – tentem acompanhá-la de perto. 



Como começou a tua relação com a música no Brasil e como foi a tua transição para Portugal?

Eu vim para Portugal em 2012 e a minha adaptação não foi fácil, e isso fica muito claro na pessoa que eu sou. Hoje em dia eu estou muito bem em Portugal, gosto de Portugal, e acho que é um país com muito potencial.

Vieste viver para Lisboa?

Não, eu morei na Caparica primeiro, depois no Montijo, na Margem Sul, onde passei a minha vida quase toda desde que vim para Portugal. Mudei-me há três anos para Lisboa porque queria muito criar alguma coisa aqui. Eu ainda não sabia ao certo o quê, mas agora já sei o que que é!

A minha adaptação foi muito ruim no início porque mesmo estando na Margem Sul, e apesar de ser uma zona com muito mais imigrantes e comunidade preta, eu não tinha muita conexão com ninguém porque não conhecia muitos brasileiros. Os meus amigos não entendiam o contexto cultural em que eu cresci, não entendiam a música que eu escutava, o porquê de referenciar isso e aquilo.

Quando eu cheguei, já estudava na secundária, já não estava a lidar com crianças e os adolescentes podem ser muito cruéis com aquilo que é diferente, ou que não entendem. Depois de um tempo aceitei que eu ia ser sempre a pessoa diferente do grupo por causa da minha minha identidade, da minha sexualidade, eu já era um indivíduo de cabeça forte mesmo sendo novo – quando eu acabei a secundária, todos os meus amigos sabiam que eu era uma pessoa de opiniões muito fortes, já sabia o que queria para minha vida. Quando me mudei para Lisboa para começar a faculdade, disse à minha mãe que ia parar durante um ano – e nesse ano ia tentar fazer alguma coisa artística, fazer música, alguma coisa que fosse relacionada com música. Queria trabalhar com música e com pessoas.

Esse primeiro ano foi ok, foi meio fraco – depois começou a pandemia e tivemos todos de ficar fechados em casa durante dois anos. Nesses dois anos muita coisa aconteceu, muita coisa mudou — eu estava a trabalhar numa empresa de moderação de conteúdo, estava muito depressivo a fazer home office, a minha saúde mental estava a ser seriamente afectada.

Nessas empresas não costumam ter acompanhamento psicológico?

Sim, mas é um acompanhamento mínimo, não é para te ajudar a melhorar mas sim para te ajudar a não te revoltares contra a empresa. Só entendi isso quando fiquei de baixa, consultei uma terapeuta e comecei a entender melhor toda essa dinâmica.

Fiquei sem casa durante uns tempos, fui enganado por um conhecido, tive de ficar a viver num hostel durante uns tempos, o prédio ao lado do hostel explodiu — tinha acabado de me mudar e eu não tinha nada, só o meu telemóvel na mão. Eu estava bem, mas fiquei em pânico, pensei por momentos desistir de Lisboa e voltar para casa dos pais, voltar para a faculdade, arranjar um emprego normal e desistir de fazer algo que me deixasse realmente orgulhoso.

Estava mesmo decidido que ia desistir, mas ao mesmo tempo estava decidido que não queria desistir. Peguei numa folha e escrevi nela todos os talentos que eu tinha, que me pudessem tirar dessa situação: sou muito bom em organização, gestão, administração, sou muito bom em comunicação e publicidade, consigo mover as pessoas… o que posso fazer com isso? Inicialmente pensei em criar uma revista ou algo assim, estava tão desesperado, não sabia o que ia fazer com a minha vida e precisava de alguma coisa que fosse exacta no momento, criar uma plataforma para uma revista demora muito tempo, mas queria criar algo que quando acontecesse criasse um impacto.

O que tiveste como referências?

Decidi que queria fazer uma festa que fosse de encontro ao que outros movimentos que já acompanhava na Internet exploravam, mas que eu sempre quis ver aqui como a Batekoo no Brasil, a Papi Juice nos EUA ou a Pxssy Palace de Inglaterra.

E eu, vendo todos esses movimentos a acontecer noutros lugares, pensei: “Portugal tem uma população negra jovem LGBTQIA+ tão grande e não tem nada que seja feito especificamente para essas pessoas”. Então, a ideia era pegar nessa intersecção, criar um espaço queer, mas com uma visão muito mais abrangente do que acontece dentro dessas intersecções, de todas as identidades que alguém pode ter. Há coisas que são muito específicas, mas que criar espaço para elas não vai prejudicar ninguém.

Ao criar esses espaços inclusivos para identidades específicas estás a enriquecer o panorama em que essas festas estão inseridas.

Sim, e foi mesmo assim que pensámos. Comecei a sair com 15 anos em Lisboa, íamos para o Bairro Alto, íamos a vários espaços para a comunidade LGBT e era bem perigoso! Eu era muito jovem, saindo nesses espaços, normalmente muito voltados para o público gay, especialmente homens com mais de 35 anos.

Ou seja, espaços para o público gay, mas que não são necessariamente queer, nem particularmente seguros ou inclusivos.

E é importante esses espaços existirem, mas eu via muito público jovem nesses espaços onde eram incrivelmente sexualizados, e eu queria criar uma festa onde pudesse tocar funk, afro, dancehall, são ritmos com um tom muito sensual, e queria criar um espaço onde se pudesse ouvir esse tipo de som e uma pessoa se expressar de forma sensual mas sem ser sexualizada ou que o seu espaço fosse invadido por isso. Então, teríamos que pensar bem em como criar, de forma brilhante, esse espaço, não pode ter aquela vibe escura, pesada e sexual mas sim ser brilhante e sensual.

Começou-me a surgir toda a ideia para a festa. Eu criei o Instagram da Dengo em Janeiro de 2021, e só em Outubro de 2021 aconteceu a primeira Dengo. Nem um ano depois, estamos aqui!

É incrível e lindo de se ver o crescimento que tem tido!

É uma prova das coisas que eu falo sempre, os meus amigos já sabiam mas, quando eu chegava para apresentar a Dengo para os espaços, a resposta era sempre “Isso é muito específico, preto e queer, acha que vai ter público suficiente?” Não acho que seja um público enorme, mas é um público que precisa muito de um espaço – então assim que surgiu a primeira coisa, eles vieram. E são um público muito leal até hoje, veêm a todas as festas, porque realmente não há nada específico e seguro a acontecer para esse público. Então, focam-se naquilo que é criado para eles. Ouvimos com frequência coisas como, “eu só saio uma vez por mês que é quando a Dengo acontece”, às vezes tem outros eventos onde as minhas pessoas costumam ir também, mas são mais pontuais.

Eu pensava para mim mesmo: se um hetero quiser sair em Lisboa, ele pode escolher mais de 20 sítios diferentes onde ir, e o meu público tem de esperar uma The Blacker The Berry ou uma Dengo acontecer. Se só fizéssemos uma vez por ano, seria essa a única vez que sairiam para um espaço onde estariam confortáveis. Então, são um público muito carente, e eu me questiono porque é que isso é socialmente aceitável.

Porque é que os programadores de Lisboa, que fazem essas festas todas, não pensam, “passamos o mês inteiro a fazer a mesma coisa, porque não fazemos algo diferente?”

Por exemplo, no Ministerium encheram o espaço numa quinta-feira, porque foi programada por nós em conjunto com outros colectivos queer. Porque não apostar em mais noites assim, variar o público de vez em quando? O que me respondem é que têm receio de variar o público, porque acham que não vão ter público suficiente e não vai ser rentável. Eu já provei por várias vezes que é rentável, que enche o espaço, mas sinto que continua a haver uma barreira.

Não sentem essa necessidade na pele, esses sítios normalmente são geridos por pessoas heteronormativas brancas, na sua maioria homens, que não conseguem entender que há uma larga fatia do público dos seus espaços que não se sente assim tão seguro dentro deles.

Não se importam muito com a diversidade. Mas eu acho que é importante, e que vai trazer outra dinâmica, outra energia ao espaço deles. Por exemplo, o espaço onde fizemos algumas festas, o RCA. Antes era um espaço de concertos de heavy metal, em Alvalade – que não tem nada a ver com o universo da Dengo. Primeiro começaram com a Enjoy, que é do Eduardo. E com a festa do Eduardo trouxe um público gay nos seus 30 anos. Começaram a apostar em festas diferentes – como o espaço só abria para os concertos, seria mais rentável se fosse também explorado noutras vertentes. Não era fácil levar um público a sair em Alvalade. Algumas coisas legais começaram a acontecer no RCA para mudar a imagem que o público tem do espaço, trazer um público diferente, mais diverso.

Passou de ser um espaço de concertos de heavy metal para um espaço que tinha festas de techno como a CØDE LX, tem a Enjoy, tinha a Dengo lá de afro e funk, vai ter outro baile funk acontecendo lá, criaram tanta diversidade de oferta que do nada estão a receber clientes a toda a hora agora. As pessoas começaram a frequentar mais aquele espaço.

É surpreendente a falta de visão que as pessoas têm para os seus próprios espaços, quando diversificar a programação vai beneficiar tanto o espaço, como o público, como artistas e criativos.

Há espaços que realmente não têm de se preocupar muito, porque estão em sítios onde o público é quase sempre garantido devido ao turismo. Não são tão voltados para o público local.

É um bocado a forma como Portugal pensa na cultura, a sua visão limita-se ao que traz lucro e visibilidade a curto prazo e não no que vai ser saudável e sustentável para o panorama cultural a longo prazo.

A partir de agora vamos fazer as coisas de forma diferente também, queremos ter a oportunidade de construir a festa do zero: alugar um espaço, ter o nosso próprio sistema de som, a luz, a programação, a decoração – para termos a noção e a sensação do que é criar um evento do zero. Acho muito interessante o trabalho que por exemplo a Fuse faz nesse sentido, apesar de não termos muito a ver em termos de conceito.



Acho muito interessante a ideia de dinamizar lugares onde normalmente não acontecem eventos, e Portugal tem imensa oferta no que toca a lugares que não estão a ser utilizados ou dinamizados para fins culturais e que poderiam perfeitamente ser com algum investimento de tempo e dinheiro.

Também acho que quando são eventos de música electrónica, tipo techno e isso, os espaços acabam por apoiar mais porque assumem à partida que basta isso para que o evento seja rentável. Acho que vindo desse background, têm outra facilidade em avançar com os eventos.

Por exemplo, se eu abordar o dono de um armazém onde já fizeram festas de techno, e propor fazer uma festa onde o som seja mais à volta de ritmos imigrantes, por exemplo, já não vou encontrar a mesma abertura. Posso apresentar todos os números que indicam o crescimento da Dengo e o seu sucesso comercial, e mesmo assim torcem o nariz. Esse é o meu maior obstáculo agora, fazer algo em grande para o meu público. Existe muito preconceito ainda.

No entanto, se fosses um produtor ou DJ português, branco e heteronormativo provavelmente os donos desses espaços estariam mais receptivos.

Pois, tive algumas experiências problemáticas nesse sentido também. Já aconteceu contactar um espaço, apresentar a festa e a minha proposta para o espaço, pedir que me enviassem a disponibilidade de datas, etc. Quando fui eu a ligar não voltei a ouvir mais do espaço, mas quando foi uma amiga minha portuguesa a contactar nem precisou de dar grandes detalhes sobre o evento, disse só que era a Dengo – enviaram logo as datas depois do telefonema. E isto aconteceu com outros espaços, em que para a festa acontecer lá teve de ser por intermédio de alguém português. É algo com que tenho de lidar constantemente. Eu já nem levo a mal, é um obstáculo que eu já aceitei que vou ter de lidar até ao fim.

Eu acho que também o trabalho que estás a fazer vai acabar por subverter isso. A certa altura, a Dengo vai atingir proporções que a vão tornar inegável. 

E a Dengo tem coisas bem específicas que são indispensáveis. Tem sempre que haver mulheres no lineup, tem que haver sempre um tema para a festa também. Tem que ter a lista trans – porque muitas vezes têm dificuldade em arranjar trabalho e ter dinheiro para sair –, tem uma lista com código de desconto para pessoas racializadas com baixos rendimentos e não só – para pessoas queer ou racializadas também; para artistas porque sabemos que quem trabalha em campos criativos e artísticos muitas vezes passa muitas dificuldades aqui em Portugal – mas são tudo pessoas muito importantes que fazem parte da minha comunidade. Assim, as pessoas que quiserem podem entrar em contacto connosco se estiverem com dificuldades e ainda assim queiram apoiar o nosso projecto. Também já estive nesse lugar em que queria apoiar todos os meus amigos e os seus eventos, mas é impossível ter dinheiro para tudo. 

Como tentamos comunicar ao nosso público: a Dengo trabalha na base da equidade, isso é algo muito importante para nós. Existe toda uma forma de organizar isso: a lista trans por exemplo; tem x nomes ali, você assim sabe que a festa vai acontecer, pode enviar mensagem para nós e fica a fazer parte dessa lista. Pode acontecer que a lista já esteja cheia, o que ainda não aconteceu porque também o pessoal trans nem sempre sai muito à noite – quero fazer com que saiam mais pelo menos na Dengo, queremos que ocupem aquele espaço em segurança. Se eu chegar num espaço e disser que preciso de 20 bilhetes grátis para pessoas trans, não vão entender. Há ainda muita falta de sensibilidade para esses assuntos cá em Portugal, não há essa consciência social e histórica. No Brasil não há uma festa assim que não tenha lista trans, é muito importante haver esse tipo de inclusão nos espaços nocturnos.

Mesmo para a sanidade mental, física, emocional e espiritual das pessoas é importante haver esse espírito e sentido de comunidade, e conhecer pessoas que partilham das nossas lutas, das nossas experiências e dificuldades. Isso é uma forma de resistência também, esse apoio mútuo. E, mesmo assim, podes ir ter com os espaços e mostrares que isso é mesmo necessário, e como a maioria dos espaços é gerido por pessoas que não estão conscientes dessa necessidade que não os afecta pessoalmente não conseguem ver a finalidade disso. 

Acho que é um problema recorrente cá em Portugal: tudo o que é novo parece assustador. O que eu entendo, mas, por exemplo, desde que comecei a lista trans essas 15 ou 20 pessoas da lista nunca causaram qualquer tipo de prejuízo monetário, estão trazendo uma gratificação muito maior para mim porque são um pessoal tão necessário na vida cultural noturna. 

Têm um input criativo brutal e quando crias um espaço seguro para pessoas trans o espaço torna-se seguro para toda a gente, na verdade. Se as pessoas trans se sentirem livres na tua festa, toda a gente se vai sentir livre também. Isso é ser verdadeiramente inclusivo, e isso deveria ser um modelo aplicado a toda a sociedade, na verdade. E festas como a tua podem ser o ponto de partida para essas mudanças se estenderem a outros aspectos da sociedade.

Sim, e queremos que mais iniciativas sejam assim. Nesses sete meses de Dengo, eu estou sentindo falta de que haja uma competição saudável entre eventos. Gostava que houvesse mais oferta para suprir as necessidades do nosso público. Além da The Blacker The Berry é raro haver eventos específicos para o nosso público. 

Por exemplo, eu estive no Brasil em Fevereiro e numa noite consegui ir a três festas maravilhosas a que eu queria ir. Se isso acontecesse aqui, nunca ninguém teria de se sentir excluído dos nossos eventos por esgotar a lotação.

A Dengo tem público muito jovem?

Daquilo que vemos na Shotgun, eu diria que a média será entre os 18 e os 29 anos, de 30 para cima é mais raro, e mais novo que isso também não. Sei que aqui em Portugal é legal as pessoas começarem a beber e a sair a partir dos 16 anos, mas na minha opinião – e eu sou um bocado pai nessas questões –, eu acho que o melhor é mesmo esperar até aos 18. Há algumas pessoas mais novas que gostariam de vir porque querem ter essa sensação de fazer parte da comunidade, quando fazemos rodas e fazemos voguing também querem estar ali no meio e presenciar isso, e eu entendo mas acho que o mais responsável é mesmo esperar até aos 18. 

Nós queremos também criar eventos durante o dia para as pessoas que são mais novas ou que os pais ainda não deixam sair à noite – para que possam sentir-se incluídas no mundo da Dengo. 

Eu acho que essa postura responsável, quase de mentor, também acaba por reforçar o sentimento de segurança que queres ter junto da tua comunidade. E com o público mais jovem acabas também por estar a dar um exemplo de sucesso que lhes vai abrir outros horizontes. Eu acabei por ter essa experiência com a Thug Unicorn, inspirou várias pessoas a criarem os seus projectos, as suas festas, as suas comunidades e esse é o melhor legado que podes deixar. E como a Dengo veio preencher um espaço que fazia falta ocupar, de certeza que vai surtir esse efeito nas pessoas jovens que frequentam a festa também.

Saudades, Thug Unicorn, não vou mentir, me diverti muito. Não vejo a hora disso acontecer, e quero mesmo que venha de dentro da nossa comunidade. 

Já fiquei sabendo que tem festas de fora vindo para cá, algumas já aconteceram. Vêm para cá porque a mão-de-obra é muito mais barata, os fundos que recebem nos seus países para investir aqui rende muito mais, não tenho nada contra isso acontecer de vez em quando, mas acho que as pessoas aqui deveriam se mobilizar e criar parcerias e se aliar com essas festas. Há muita gente aqui que merece a oportunidade de criar o seu evento e a sua cena, mas que não tem muito apoio do seu país.

Pois, se vierem para cá com uma mentalidade predatória de explorar a mão-de-obra barata, os cachês mais baixos dos DJs, sem contribuírem de alguma forma para o crescimento e fortalecimento da comunidade local, então isso vai só servir para sufocar ainda mais a cena local. 

Por isso eu digo a quem conheço: se querem fazer um evento, avancem sem medo. Comecem com algo mais pequeno, com menos investimento e menos risco de prejuízo porque ainda não construíram uma comunidade e uma plataforma. Aos poucos vão juntando pessoas, e as coisas vão crescendo. Por exemplo, as meninas da Ind1go Kids com quem trabalho começaram aos poucos com eventos mais pequenos na Plantasia ou na Crew Hassan. Assim vão juntando dinheiro e crescendo para depois investirem em algo maior e melhor. Nem todo o mundo tem essa visão de marketing e gestão, mas acho mesmo que essa é a chave. 

Vês, mais uma vez o teu perfil de mentor para a tua comunidade a surgir! Acho muito bom explicares às pessoas à tua volta como podem obter essa emancipação.

Eu diria que esse é o meu objectivo na vida. Nunca quis ser a pessoa que tem a chave para o sucesso e não a partilha. Eu não acredito nisso. Eu passo o meu dia inteiro dando conselhos para as pessoas, dizendo o que acho melhor fazerem ou não. O mundo musical em Portugal está muito estagnado e eu quero contribuir para que as coisas se movam.

O novo formato da Dengo vai ser com concertos ao vivo, que é muito mais desafiante de se fazer, exige outra logística e outra estrutura. Se começar a surgir mais eventos assim, vai criar uma competição saudável entre a gente. Por exemplo, dos meus amigos que fazem as festas no Rio de Janeiro, estavam todas as festas acontecendo no mesmo final de semana, e todas elas com esquemas diferentes, todas elas competem de forma saudável para atrair o público e aí fazem promoções super interessantes, tem iniciativas com o pessoal da comunidade, colaborações com artistas, maquilhadores, estilistas, fazem giveaways com esta ou aquela marca – nesse dia dessa festa tem colaboração com essa marca de bebida que foi criada por essas pessoas da favela para dar a conhecer ao público da festa. Duas dessas festas em breve vão fazer um evento juntas, em vez de estarem competindo — e é disso que sinto falta em Lisboa. 

Já foi um bocado isso que fizeste no evento de warmup do Pride da Dengo com mais uma série de coletivos de festas queer de Lisboa no Ministerium, que foi um sucesso!

Foi uma ideia um bocado louca, mas deu certo! Eu não me atribuo o título de activista, ou de mentor – acho as palavras muito importantes. A minha comunidade em Portugal é também um grupo de pessoas muito fragilizada e muito carente, sendo pessoa queer e sendo preta é uma experiência muito violenta aqui em Portugal. Então, eu tento usar sempre comunicação muito positiva, nós passamos muito tempo pensando nos textos que vamos escrever porque queremos ser assertivos para que as coisas funcionem bem, mas não queremos ferir susceptibilidades de ninguém na nossa comunidade. Mas o que eu digo sempre, e é das ideias mais importantes para mim, é: tenham paciência connosco e deem-nos espaço para errar. Porque só fazendo as coisas e possivelmente errando é que aprendemos e corrigimos o que está errado, e para isso precisamos desse espaço de manobra e dessa liberdade. Pedestais são muito perigosos, e não queremos que a Dengo seja colocada num pedestal porque assim perdemos essa possibilidade de errar, aprender e crescer. Aqui todo o mundo é igual, toda a gente pode dançar no palco do lado do DJ, ninguém é intocável. Tem backstage para os artistas poderem descansar e guardar as suas coisas, mas de resto tudo é acessível ao público.

Muitas vezes surgem críticas muito específicas que não contribuem muito para a festa, não são construtivas. Na minha vida, eu precisei de errar muito para aprender tudo o que sei hoje, e me tornar na pessoa que sou hoje e da qual me orgulho. 



É importante também para vocês distinguirem as críticas úteis e construtivas, e as críticas que são quase um reacção por reflexo, que é normal haver num público que já passou por muitos tipos de violência e que valoriza muito o seu espaço seguro – porque muitas vezes não têm acesso a outros meios para curarem essa dor e a terapia possível é mesmo estar nesses espaços com a sua comunidade. As pessoas querem sentir que estes espaços estão ali para acolhê-las. Então, se alguma coisa corre mal, sentem que é quase um ataque pessoal, mas na verdade é algo que pode acontecer até no lugar mais seguro. 

É um alívio para elas. Eu tenho um carinho muito grande pelo meu público, muito mesmo. E há muito cuidado entre nós, passamos tempo juntos, vamos jantar – nem tudo é festa. 

Quando surgiu a situação do comentário que alguém fez sobre o público da Dengo… Eu já sofri muita xenofobia e muito racismo, então hoje em dia é muito difícil um comentário desses me afectar, mas esse comentário como foi sobre a comunidade da minha festa mexeu comigo porque senti que estava a machucar algo com que me importo muito. Eu tentei não me envolver na polémica, mas a comunidade respondeu antes que eu tivesse oportunidade de o fazer, e de uma forma que realmente reflectia os valores que nós tentamos passar na nossa comunicação e nas nossas festas. Senti-me muito orgulhoso da nossa comunidade, eles foram maravilhosos. 

Depois, na festa a seguir, tivemos o prazer de ter a Shirley [Van-Dúnem] e a Fvbricia no microfone a noite toda. A Fvbricia é uma pessoa bastante introvertida e no final disse que se sentiu muito livre e à-vontade de se expressar ali, isso também me deixa com muito orgulho. Estou maravilhado com o meu público. Mas vamos continuar a insistir para que não nos coloquem num pedestal – somos humanos e precisamos de espaço para errar.

Sim, é mesmo importante haver essa flexibilidade também para poderem evoluir.

E é muito recente tudo isto. Estava a falar com o Jesualdo de The Blacker the Berry sobre isso há tempos, mas nunca encontrei registo de que tenham havido festas queer pretas até agora em Portugal. O que é uma loucura, porque há festas assim no Brasil já com muitos anos, e sempre foram um elemento muito importante da História queer noutros países. Eu espero que tenha acontecido alguma coisa, mesmo que pequena, e que não tenha ficado registado, porque acho muito importante. A Dengo é considerada a primeira festa queer preta de Lisboa.

E eu espero que se estenda pelo resto do país também!

Já fizemos a festa no Porto, no Passos Manuel, que correu super bem. Tínhamos umas 12 pessoas que vinham sempre do Porto de propósito para as Dengo, então decidimos fazer uma lá e foi das melhores deste ano. Foi a Dengo na sua pura essência, como quando fizemos a primeira festa. A próxima no Porto vai ser dia 20 de Agosto.

Eu sinto que no Porto, apesar de às vezes ser difícil de prever se algo vindo de fora vai correr bem lá porque a comunidade é um bocado particular nessas coisas, géneros musicais como o funk brasileiro, por exemplo, já vão tendo algum espaço como nos eventos que o Farofa tem criado. Mas não é um espaço especificamente criado para a comunidade preta e queer no Porto, porque na minha percepção das coisas, pelo menos, ainda parece não haver uma sensação de segurança suficiente para uma integração plena dessa comunidade na maioria dos espaços nocturnos do Porto, que são maioritariamente brancos. 

Isso é normal, e é um assunto muito complexo. O conceito da Dengo também é complexo, mas é preciso que as pessoas entendam que a Dengo também não é um espaço exclusivo para a comunidade preta, queer e imigrante, há espaço para todas as pessoas, mas o foco é dado a essa intersecção que as pessoas esquecem. Todo o mundo que ama a gente, e em Portugal há muitas relações interraciais, interculturais, pessoas de várias culturas e backgrounds diferentes se misturando, queremos incluir toda a gente mas com maior atenção a essa intersecção. Diversidade é das coisas mais importantes, porque assim quem não é da nossa comunidade pode ver e entender que todos saímos a ganhar e que toda a gente está confortável nesse espaço. 

Eu falei isso por exemplo das raves de Lisboa, tem muito público preto que provavelmente gostaria de ir numa rave, ouvir house ou techno e não vão porque não se sentem confortáveis num espaço desses. Por exemplo, a Violet quando tocou no evento do Ministerium, tinha muita gente preta que eu conhecia a ouvindo e dançando com o set dela. Eu quero ver se agora no Verão organizamos uma rave comunitária, só preciso do espaço perfeito – é o maior obstáculo agora. Quero que o valor de entrada seja baixo e que possa ser complementado com um donativo de alimento não-perecível para podermos doar para a Casa T e outros espaços que precisem desse tipo de apoio. 

Para isso acontecer, tenho de educar o meu público e outros públicos, porque querendo ou não o trabalho de um DJ é também educar as pessoas musicalmente. 

Para nós, existem DJs e existem “music players“, há sítios e DJs que escolhem a música que o público quer ouvir e o público se diverte, e está tudo bem. Mas não são sets que demonstrem a personalidade do DJ, não se consegue perceber quem está tocando pela vibe do set que fizeram, não estão mostrando nada que me deixe curioso ou que seja novo. Eu quando vou ver algum DJ que acompanho vou com a intenção de me enriquecer musicalmente e culturalmente. Para mim, a genialidade de um DJ não está no facto de te fazer dançar ou não, mas sim o que consegue expressar e comunicar com a sua seleção musical. Na Dengo, apesar de nos focarmos mais em afro e funk, mas tocamos de tudo também, é o que fizer sentido no ambiente que estamos a criar, na narrativa que queremos criar. 

Quais são os objetivos futuros para a Dengo?

Eu gostava que a Dengo viesse a ter uma care team, quero encontrar espaços com acessibilidade para pessoas em cadeira de rodas também quando começarmos a fazer os concertos ao vivo, gostava de ter tradutor de linguagem gestual, queria que a festa se tornasse cada vez mais inclusiva porque não vejo muito a ser feito em Portugal nesse sentido. Gostava muito de ter uma identidade visual e efeitos visuais em luz LED – com aviso para pessoas fotossensíveis – para que as pessoas com dificuldades auditivas possam também experienciar a música e a festa dessa forma. Vai enriquecer a experiência tanto para quem tenha essa dificuldade ou não – resulta para todos. Preciso de encontrar os espaços certos!

Quando incluis as pessoas mais excluídas de tudo, estás a criar um espaço que vai ser inclusivo para toda a gente. 

A Batekoo no Brasil – eu sou muito fã deles, vi um vídeo deles numa festa em que uma pessoa de cadeira de rodas estava no público e todo mundo estava cuidando da pessoa, acho maravilhoso esse tipo de coisa, para mim aquele vídeo passava uma mensagem de união tão forte. Queria que isso fosse uma realidade mais frequente em Portugal. Queria que as pessoas começassem a ter isso mais em conta. Só falta mesmo espaço e oportunidade para o fazer.

Não tenho dúvidas que se alguém o vai conseguir, és tu! A Dengo ainda não tem nem um ano e têm crescido imenso e têm alcançado tanto nesse curto espaço de tempo.

Só prova que viemos preencher essa necessidade que a nossa comunidade sentia. 

Tenho acompanhado a Dengo, e tem sido lindo acompanhar esse crescimento. É um público super especial, a energia que se cria ali nas vossas festas é tão única, é felicidade e alegria como forma de resistência social. E tu estás a proporcionar esse espaço. 

Fico mesmo muito feliz por poder criar isso. 

E o teu público deve estar igualmente feliz!

Só quero que corra tudo bem, depois de acompanhar festas como a Batekoo tantos anos só quero que as coisas cá sigam o mesmo rumo. Eu acho que Portugal tem potencial para que isso aconteça. 

Há coisas que eu brinco que gostava de incluir na Dengo, mas até acho que teria piada – fazer algo como numa festa em Nova Iorque onde pessoas minhas conhecidas foram: para te deixarem entrar tinhas de dizer qual era a definição de consentimento. Achei maravilhoso! É uma coisa tão simples…

E tão importante, especialmente em espaços de diversão nocturna, às vezes as pessoas perdem muito a noção desses conceitos.

Também estive a falar com quem fez o design gráfico para os materiais destas festas [Ricardo T. de Carvalho] e ele fez coisas bem fofas e relevantes para ter: as regras da comunidade para todas as festas, sobre espaço pessoal, respeitar os espaços das outras pessoas é importante. Outra coisa, navegação: as pessoas queer que estão mais habituados a esses espaços já entendem, mas há pessoas que ainda não sabem bem como navegar os espaços queer, então acho importante ter informação acessível a todas as pessoas da festa para que possam aprender coisas simples como perguntar os pronomes, não questionar os pronomes e identidades das pessoas, falar sobre espaços partilhados como as casas de banho; temos um ponto sobre discriminação, sobre como estar em palco…

Em tudo o que vocês fazem na Dengo dá para perceber o carinho e o cuidado que têm pelo vosso público. Estão a criar uma família!

E não poderia ser de outra forma. Fico muito orgulhoso, sou muito apaixonado pelo nosso conceito, me sinto a pessoa mais feliz do mundo. Finalmente sinto que encontrei o meu lugar, o meu rumo.


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