E chegou ao fim a missão do Rimas e Batidas pelo Sabura Festival. A segunda edição do certame de Sesimbra foi a primeira na qual a nossa publicação compareceu, e a experiência foi bastante positiva. Estamos perante um evento com muita margem para se vir a tornar numa referência do circuito nacional, ainda para mais dada a sua proximidade com Lisboa, onde tudo parece cada vez mais saturado e, acima de tudo, caro para a grande maioria dos portugueses.
Em jeito de balanço, destaca-se desde logo a escolha do local para fazer tudo isto acontecer. O Sesimbra Natura Park é um daqueles lugares que nos conquistam com facilidade, ao ponto de fazer equacionar um regresso ao espaço mesmo fora do âmbito do festival. A linha curatorial foi toda ela muito bem desenhada, com propostas que abrangem sonoridades de diferentes coordenadas do globo, onde é dada uma especial atenção à ligação com a tradição, mas sem deixar cair no esquecimento algumas das linguagens musicais mais “faladas” da actualidade, como o rock e o hip hop. Todo o staff foi do mais gentil com que alguma vez nos cruzamos, graças a uma equipa sempre disponível para ajudar e a tornar toda a experiência muito mais enriquecedora. É verdade que a dimensão do Sabura ainda é bem modesta em termos de número de visitantes, mas todos sabemos que isso nem sempre é sinónimo de cuidado por parte de quem faz tudo isto acontecer. Coisas tão simples como, por exemplo, o facto de nunca termos encontrado uma casa de banho de pantanas, sem papel ou sabonete em gel são sempre de aplaudir.
Há também, no entanto, um ponto que precisa urgentemente de ser limado para que o evento se possa aproximar o máximo possível da perfeição. Apesar de, no primeiro dia, praticamente tudo ter decorrido dentro dos confirmes ao nível dos espectáculos, a verdade é que os restantes dois dias estiveram envoltos numa sucessão de atrasos ao nível da programação. E se no segundo dia esses atrasos andaram sempre à volta dos 30/60 minutos, a coisa descambou ontem, no derradeiro dia, ao ponto de fazer com que as actuações começassem duas horas após o previsto.
Inicialmente agendado para as 19h30, o concerto que juntou Edgar Valente a Luizga, que em dupla formam AIÊ, já começou para lá das 21h30. Foi um incómodo para quem ainda tinha mais de uma hora de viagem até casa e a necessitar de descanso para o arranque de mais uma semana de trabalho, mas era o único espectáculo com o qual nos tínhamos comprometido a assistir antes da despedida em definitivo desta edição do Sabura. Apesar de a peripécia com os horários nos ter feito chegar ao lar já para lá da meia-noite, felizmente viemos de coração cheio graças aos encantos musicais destes dois xamãs da nova música tradicional que se funde com a modernidade sonora da época em que vivemos.
Ao início, o espectáculo até ameaçava ser um tanto caótico, dadas as dificuldades que se estavam a sentir durante o soundcheck. Mas quando o par se mostrou finalmente confortável com o que escutava e disposto a arrancar com a performance, algo de profético aconteceu. Algumas (e enormes!) traças começaram a sobrevoar os dois músicos e uma delas chegou até a pousar sobre o teclado Nord que estava aos comandos de Edgar Valente, fazendo-nos imediatamente lembrar da imagem da lesão de Cristiano Ronaldo na final do EURO 2016. Afinal, os orixás estavam com eles e a nós esperava-nos uma actuação revigorante, daquelas que nos enchem a alma e nos deixam com a esperança de que o mundo pode um dia vir a tornar-se num lugar melhor para todos os que nele habitam.
AIÊ é mais um dos maravilhosos projectos que nasceram desse conturbado período das nossas vidas que foi a pandemia de COVID-19 e, conforme explicaram em palco, nasceu por mera coincidência. O brasileiro Luizga tinha previsto passar três dias em Portugal na companhia de Edgar, mas a sua estadia calhou com o início da proibição dos voos e, por isso, viu-se obrigado a ficar pelo nosso país, aproveitando esse tempo para desenvolver a parceria com o músico e cantor português que integra projectos como Bandua ou Criatura. Com isso saiu a ganhar toda a lusofonia, que pode encontrar no disco de estreia desta dupla um importante testemunho da fusão entre o folclore de dois países irmãos, envolto numa sonoridade arrojada que vai desde as tradições indígenas da Amazónia aos sons profundos da Beira Baixa que Edgar tão bem conhece.
Perante uma audiência praticamente toda sentada no chão, o concerto arrancou com recurso ao repertório do primeiro registo discográfico do par, espalhando mantras espirituais colhidos de uma cultura ancestral ou palavras de empoderamento que fazem lembrar Zeca Afonso. Luizga esteve sempre acompanhado da sua guitarra e dividiu a tarefa de cantar com Edgar Valente, ele que em simultâneo operou um teclado e algumas percussões, como o seu habitual adufe.
Na segunda metade do espectáculo veio à tona o material mais inédito. Os dois músicos tinham estado a dar um pequeno workshop de coro algumas horas antes da performance e interpretaram um tema com a ajuda dos “alunos” que quiseram fazer parte desta experiência ao vivo. Mas o melhor foram mesmo as novas canções em que se encontram a trabalhar: a dupla adiantou que já está a preparar um segundo álbum e, desta vez, vai expandir os seus horizontes até Cabo Verde, aproveitando o momento para testar algumas das novas criações ao vivo, abraçadas imediatamente pelo público.
Embalados por toda esta mística de AIÊ, seguimos viagem até casa com um certo calor reconfortante no peito e a certeza de querermos voltar ao Sabura Festival. Está aqui um pequeno paraíso musical que deve ser estimado e ao qual deve ser dada a oportunidade de crescer. Foram três dias de perfeita comunhão entre música e natureza, ao longo dos quais tivemos a oportunidade de escutar artistas como Dino d’Santiago, Bezegol, Pongo, Orlando Santos ou Maria Reis, conforme demos conta nas reportagens do primeiro e segundo dia do evento.