A operar de modo intenso nas últimas três décadas, o artista japonês tem vindo a explorar uma relação quase umbilical entre a expressão sonora e a componente visual. Entre álbuns, instalações, publicações escritas e outros formatos, o seu trabalho atingiu um zénite artístico (tão complexo e multifacetado quanto possível) que facilmente extravasa o circuito meramente musical. Daí a sequência de presenças em galerias, auditórios e grandes certames internacionais, o que, inevitavelmente, tornam os seus espetáculos em acontecimentos mais raros ou esporádicos — mas sempre obrigatórios para um público que busca alguma espécie de desafio sensorial.
Nesta recente passagem pelo Auditório Emílio Rui Vilar, na Culturgest, Ryoji Ikeda demonstrou porque ainda hoje a sua obra se assume tão transversal e futurista como quando surgiram os primeiros discos em meados dos anos 90. Perante uma sala esgotada, a figura solitária do artista em palco, diante do PC e com uma enorme tela de projeção atrás de si, formou a matéria cénica minimalista de uma atuação símil de um ritual distópico. Este retrato insular de Ikeda rapidamente faz esquecer o criador, para definitivamente dar espaço a uma vertiginosa cascata de gotas micro rítmicas por entre a espuma de ruído e a meticulosa gestão de silêncios e samples diversos. Indutora de estados psicológicos de uma certa natureza além dos limites da realidade, a componente visual surge neste formato como estrutura essencial e não como mero anexo ou acessório; tudo parece fazer parte de um todo, em que cada detalhe é uma peça-chave num enorme e complexo puzzle que se cria diante de nós. De resto, as potencialidades (infinitas?) dessa fonte de efeitos sensoriais toma de completo assalto os primeiros segundos da sua entrada no auditório. A experiência física — da sensação milimétrica dos graves que saem da coluna até à embriaguez da luz strobe — leva, pela mão, cada espectador para um terreno incógnito. Ainda que o universo da IDM seja sobrepovoado, e até cada vez mais familiar, certo é que paira em Ikeda uma aura sónica que tanto permite, e abre portas, à energia bruta estática como à convulsão mecânica. Saturação de informação e delírio transcendental, ideias que se cruzam e emergem.
ultratronics é o disco de 2022 em que esta performance se centrou. O acto de o escutar, em casa ou em qualquer outro contexto quotidiano, reflete naturalmente uma experiência mais cómoda e utilitária que, ao vivo, atinge um estatuto experiencial, de imersão e entrega. E é um pouco disto do que de facto se trata: um puro festim dos sentidos. As sequências furiosas e caleidoscópicas de formas abstratas em padrões monocromáticos acompanharam, com primor, as composições de breaks, frequências e meta-melodias. Uma excelsa viagem a esse panteão dourado coabitado por outros ilustres como Alva Noto, Vladislav Delay ou Autechre (que semanas antes se apresentaram neste mesmo espaço).
Hipnótico e imprevisível, parece ser no limbo e na penumbra das coisas que a magia de Ikeda irradia e contamina. A composição algorítmica com que tem vindo a laborar assume-se hoje tão relevante como nunca — num espelho do mundo atual. Vale a pena recordar que estas peças remontam a material bruto concebido há mais de trinta anos, o que atribuiu igualmente um contexto histórico a esta atuação. Ao longo dos sessenta minutos de travessia de mundos subterrâneos e universos paralelos, os visuais tomam cor e outras linearidades. Já perto do final, surgem na tela nebulosas, equações e demais fantasias extraterrestres, no que trouxe à imaginação um cruzamento imagético possível entre a contemplação metafísica de Terrence Malick e o psicadelismo fantasmagórico de Gaspar Noé por via de Enter the Void. Pontos meramente alusivos, na busca de tradução de um efeito complexo de transpor nas palavras, porém instintivo no testemunho de um concerto magistral. Para memória futura.