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Fotografia: Bafic
Publicado a: 13/04/2024

Viajar às escuras.

Autechre na Culturgest: serenidade vanguardista que dá primazia à audição

Fotografia: Bafic
Publicado a: 13/04/2024

“No concerto de hoje, todas as luzes da sala estarão desligadas, exceto as de emergência.”

Em forma de comunicado, junto com outras indicações e pequenas regras de comportamento cujo objetivo seria incomodar o menos possível artistas e ouvintes, esta foi a mensagem deixada pela Culturgest e Autechre antes do concerto, a aguçar ainda mais a expectativa que já era alta. À chegada à sala lisboeta, esta foi a primeira comunicação de Autechre com o seu público. Talvez o intuito fosse apenas o de passar a informação escrita, mas ler aquele pequeno texto antes do espetáculo também serviu para criar algum imaginário: a nave espacial estava ali, íamos entrar, rumar sem destino e diziam-nos para apertar os cintos. A 12 de Abril, o duo de Rob Brown e Sean Booth apresentou-se em duas sessões na mesma noite. O Rimas e Batidas foi ouvir a primeira. 

Autechre é uma dupla britânica de música eletrónica formada em finais da década de 80, mas que ganhou maior destaque nos anos 90. Absorveu tudo o que havia de contracultura num momento em que Margareth Thatcher imperava com a sua mão de ferro, mas que também gerou muitas reações e manifestações artísticas de vanguarda. Oriundos de Rochdale, na região metropolitana de Manchester, a história de Autechre interliga-se com o nascimento de raves na periferia desta cidade e é também influenciada pela cultura hip hop e pelo mundo underground e vanguardista que se vivia aí. Não esquecendo que Manchester é uma cidade com uma ligação histórica ao surgimento da indústria têxtil, com papel muito ativo na revolução industrial. Todo este ambiente foi propício ao surgimento de nomes importantes na música britânica como, por exemplo, Joy Division.  

Autechre atingiu maior reconhecimento através de uma compilação da Wrap Records em 92, Artificial Intelligence, tendo logo no ano seguinte lançado o seu primeiro disco, Incunabula, pelas mãos da mesma editora com a qual criaria um vínculo até aos dias de hoje. Numa fase inicial, a banda tinha uma estética um pouco mais melódica, com efeitos gerados por sintetizadores que se fundiam com ritmos quaternários que permitiam libertar o corpo e dançar sob esse som. Ao longo do seu percurso, e na virada do milénio, a dupla melhorou os seus equipamentos e o software, o que permitiu enveredar por um lado mais experimental e também minimalista. Autechre é uma referência na música eletrónica, os seus álbuns são considerados importantes obras dentro deste género, tendo influenciado muitos outros artistas ao longo de quase quatro décadas. Após vários anos de espera, chegou finalmente o momento de Portugal escutar a dupla britânica ao vivo.  

Depois de um processo evolutivo de milhões de anos, a espécie humana tem o privilégio de possuir cinco sentidos bem apurados e que fornecem preciosas informações ao cérebro. Os cinco querem estar ativos, mas temos tendência a nos esquecermos deles, ou a misturá-los de forma inconsciente nesta comunicação entre corpo e pensamento. Várias vezes surge a necessidade de olhar a música através dos seus executantes para a sentir, quando poderíamos apenas escutá-la. Querer tocar a onda de frequência que gera o som e que nos dá vontade de dançar, que faz a música soar doce ou amarga, e que até nos pode trazer um leve cheiro a poeira quando se toca um som grave. No campo da escrita, tudo é permitido para que os sentidos potenciem a imaginação. No mundo da música, pode ser uma opção deixar que a nave espacial nos leve para onde quiser levar e permitir sentir até ao último arrepio. A porta aberta para a experiência sensorial está ali e ontem, numa noite quente para um mês de Abril lisboeta, Autechre soube abri-la. 

Ao entrar no átrio da Culturgest, o espaço fazia jus ao carimbo de esgotado que há vários dias aparecia a quem acedesse à bilheteira online. A sala estava cheia e a dupla britânica fez questão de não atrasar muito o início, apesar de existir ainda movimentação. Sentia-se um público nervoso, por alguma ansiedade gerada pela expectativa. Afinal, eram os Autechre! No palco estava instalada uma parafernália por trás de grandes colunas, mas não se sabe ao certo que material era, provavelmente propositado para que os ouvintes se centrassem apenas no som. As luzes de sala apagaram-se gradualmente e à experiência dos sentidos restou a iluminação de emergência e as pequenas luzes que davam visibilidade aos músicos para poderem tocar e a sua música (à parte o público que naqueles minutos iniciais ainda ligava as luzes dos telefones para encontrar os lugares). A viagem auditiva tinha começado e prolongou-se num concerto de cerca de 1 hora e 15 minutos. Aos primeiros instantes houve alguma estranheza ao olhar uma sala às escuras e um palco com uma luz ínfima, distante. A escuridão estava ali e nós, público, continuávamos a olhar para um palco onde não havia nada a acrescentar para se ver. Custa-nos, a nós humanos, fechar os olhos. Mas era isso que Autechre pretendia, que deixássemos de controlar qual o primeiro sentido a estar ativo naquele espetáculo e permitíssemos total liberdade à audição, que os ouvidos assimilassem o que havia para assimilar, enviassem os estímulos nervosos adequados ao cérebro para, depois, apenas deixar o corpo vibrar e desembocar em diferentes emoções. Foi uma viagem calma, sem grande turbulência, mas sentida. Sabemos que houve fases mais recentes em que a dupla britânica enveredou por algum experimentalismo, e para quem tenha ido na expetativa de o escutar, talvez tenha saído com vontade de uma maior ousadia no som, mas isso não quer dizer que o que foi apresentado não tenha sido de uma excelente qualidade. Foi uma opção estética da dupla britânica que também resultou muito bem. A iniciar com uma base dentro de ritmos quaternários, que perdurou durante muito tempo, a música foi fluindo mais ou menos por três fases: uma mais calma, ponderada; outra onde surgiram efeitos novos, melódicos e também intricados, com ritmos variados sob a mesma base; e outra ainda mais misturada e, consequentemente, um pouco mais intensa. Apesar destas nuances, o registo de todo o concerto não teve grandes oscilações, num crescendo suave, onde tudo fluiu de forma graciosa. Em determinados momentos foi bastante percetível a presença de linguagens, samplers ou ritmos, usados no hip hop, na house, no transe e até drum and bass. 

Na apresentação da tour de 2024, Autechre parece demonstrar um caminho sereno de presente que não esquece o passado e busca também naqueles anos 90 muitas das suas referências. É quase uma balada eletrónica que gera sensações incríveis e que dá aso às viagens imaginárias que o pensamento assim decidir e vai às entranhas da mente buscar a imagem que melhor descreve o que o estímulo que o ouvido recebe. E Autechre tem razão, só no escuro essas viagens são possíveis.


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