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Publicado a: 29/09/2015

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Em entrevista ao Rimas e Batidas, Killer Mike e El-P esclareceram que o seu gesto de oferecer o álbum de estreia para download antes mesmo de assinarem qualquer contrato não foi um fuck you para a indústria, antes um fuck it para eles próprios. A diferença entre um “vão-se f*der” e um “que se lixe” ainda é grande e neste caso revela um sentido apurado de aventura. Porque, de facto, toda a ideia “Run The Jewels” revela um honesto gosto pelo risco: tanto Killer Mike como El-P tinham carreiras em nome próprio bem solidificadas e trocar essa segurança pela incerteza de um projecto em que as suas distintas identidades se fundiam numa coisa nova requereu dois valentes pares de nozes.

Esse gosto pelo risco volta a revelar-se agora com Meow The Jewels, uma piada levada até às últimas consequências que é mais séria do que se pensaria à partida. De um desafio lançado online e suportado por fãs a projecto com contornos de beneficência vai afinal um simples passo no maravilhoso mundo da internet. Meow The Jewels vai gerar receitas que reverterão a favor de quem é vítima de violência policial nos Estados Unidos. Gatos contra a violência policial. Gatos e rap contra a violência do sistema judicial norte-americano. A ideia é tão absurda que poderá mudar o mundo. Ou não. Mas não é esse o objectivo, seja como for.

Para a aventura de sampling mais arriscada desde que Danger Mouse se atreveu a samplar o álbum branco dos Beatles para fazer o Grey Album com os acapellas do Black Album de Jay-Z, Mike e Jaime recrutaram uns quantos amigos: Just Blaze, Zola Jesus, Geoff Barrow dos Portishead, Nick Hook, Prince Paul, Boots, Blood Diamonds, Little Shalimar, Alchemist, Dan The Automator e 3D dos Massive Attack. Uma equipa de puro luxo para cuja formação o lado solidário do projecto há-de certamente ter pesado, mas uma equipa cuja diversidade traduz igualmente a generosa amplitude de vistas de que gozam tanto Killer Mike como El-P: Run The Jewels pode ser rap em estado puro – rima pela rima e a batida a servir antes de mais nada a mensagem e a respiração dos protagonistas – mas é rap que tem consciência do vasto mundo que existe lá fora. Ainda na entrevista concedida ao ReB aquando da passagem pelo Primavera Sound, El-P garantia não temer a integração num cartaz essencialmente rock e até brincou dizendo que tinham trazido uma guitarra de dois braços para rebentar tudo lá no Porto. A prestação em palco confirmou depois que, de facto, esta é uma dupla que entende a pulsação primal e eléctrica do rock sem esquecer a vocação de dedo-enfiado-no-olho do rap mais acusatório e combativo ou a gratuitidade lúdica a que muita da melhor pop sempre aspirou. Mas isto tudo sem nunca abandonarem a clássica fórmula de dois microfones e um par de gira-discos.

Run the Jewels, felizmente, não cresceu numa redoma hiperbárica, isolada do resto do planeta musical e por isso mesmo se entende a presença neste projecto de gente como Geoff Barrow, homem dos Portishead recentemente mais comprometido com experiências de aproximação ao krautrock, Zola Jesus, protagonista de uma cena pop experimental de recorte electrónico e algo gótico (no sentido americano, neon de VHS, anos 80 do termo), Nick Hook, DJ nova-iorquino de house, Blood Diamonds, outro Boots em potência que já colaborou com Grimes e remisturou Sky Ferreira, ou ainda o obscuro Little Shalimar que afirma no Bandcamp ter crescido a fazer graffiti em Flatbush, Brooklyn, e a ir a concertos de artrock em Louisville, Kentucky.

Depois há verdadeiros guardiões da velha chama do hip hop mais boom bap, como Alchemist, Prince Paul ou Just Blaze e cartas fora do baralho convencional do género como Dan the Automator, que fez os Handsome Boy Modelling School com Prince Paul, nem mais, e 3D, homem dos Massive Attack que também começou por fazer graffiti inspirando gente como Banksy, por exemplo. E ainda Boots, o tipo que parece ter surgido no universo pop de geração espontânea pela mão de Beyoncé e que já tinha marcado presença no segundo álbum dos Run The Jewels – que por aqui repita a dose significa que os RTJ continuam apostados em quebrar regras e atalhar caminho em direcção ao futuro.

São aliados impressionantes, de facto, mas que parece que se curvam perante a tal ideia absurda que serviu de pontapé de saída conceptual a Meow The Jewels: um álbum de remixes de material do segundo longa duração da dupla efectuadas tendo por base samples de… gatinhos. Apesar de bastante diferentes um dos outros, estes produtores soam estranhamente coesos na hora de arranjar novos argumentos sonoros para as rimas de Producto e Mike e o disco parece carregar uma única assinatura. O mérito de tal proeza pode e deve ser imputado primeiramente aos próprios Run The Jewels que construíram um universo estético de contornos muito definidos, tanto em termos poéticos como sonoros de que nenhum dos remisturadores convocados quis ou conseguiu fugir. E claro a tal ideia absurda também tem o seu peso no aspecto unitário de Meow The Jewels.

Entenda-se, no entanto, que não vão ouvir um disco com samples de gatinhos como aqueles que todos os anos surgem vestidos de pai natal. Meow The Jewels é um disco abrasivo, duro, e o ruído continua a representar um papel importante no drama que a dupla encena em cada canção. Just Blaze, por exemplo, injecta nitro no carburador da sua MPC e usa os gatos como vírgulas no discurso vocal da dupla. Já Zola Jesus opta por uma atmosfera densa e negra com o beat quase reduzido a um drone por onde circulam ruídos envoltos em reverb, quase pintando o quadro de uma cidade perdida na noite. O homem dos Portishead e dos beak> não é completamente estranho a hip hop mais directo – coordenou o projecto Quakers para a Stones Throw, por exemplo – mas a sua faixa é das mais experimentais por aqui: um rumble fundo como um canyon e o som percussivo de um martelo que acerta numa cavilha a garantir a quadratura do ritmo. Nick Hook entrega à dupla o que ameaça ser um monstro de clubes, apesar de só no último minuto o tema cumprir a sua promessa. Prince Paul pode ter garantido o psicadélico e multicolorido arranque de carreira dos De La Soul, mas ele mesmo não é alheio a mergulhos no lado mais obscuro da alma, como bem o prova a sua estreia a solo Psychoanalysis (What is It?) lançada há quase 20 anos na Wordsound de S.H. Fernando, Jr.. Aqui, o produtor stetsasónico assina um beat convencional, mas pintado com fantasmagóricos samples de gatos, distorcidos e transformados, como as inocentes bonecas de porcelana que povoam os cenários dos filmes de terror. Boots e Blood Diamonds seguem ambos as regras da produção corrente dentro dos domínios da R&B mais aventureira, misto de Terry Riley e Aphex Twin ou algo que o valha, como se todos trabalhassem com Macbooks assombrados, embora Blood Diamonds injecte um pouco mais de luz no seu cocktail digital. Little Shalimar pega num dos mais fortes temas de Run The Jewels II, “Love Again”, o tema em que participa Gangsta Boo. A bolinha vermelha no canto superior do ecrã mantem-se na revisão de Little Shalimar, mas a densidade é maior, com um beat profundamente paranóico. Surpresa é a entrada de Alchemist, cuja remistura soa de facto algo próxima dos tais exercícios de gatinhos no natal, quase prescindindo das baterias cortantemente boom bap que são a sua marca registada. Dan the Automator soa igualmente esquinado, entregando um beat que também foge do óbvio e investe mais no efeito what the fuck. 3D remata o álbum com a sua revisão de “Crown”, com os graves a lembrarem, curiosamente, “Machine Gun” dos Portishead.

Se depois de lerem a ideia no papel esperavam terminar a audição do álbum com um largo sorriso na cara, desenganem-se. Quanto muito um esgar: os Run The Jewels pegam aqui nos gatinhos que até podem poluir a internet de uma fofura ilusória e usam-nos para pintar um quadro negro, abrasivo, de quase total paranóia. Algodão doce temperado com ácido. Ou algo do género. E com todos os aliados convocados a saberem marchar ao ritmo de uma mesma ideia. Nem os gatos, nem a quantidade diversa de estrelas presentes conseguem apagar os Run The Jewels da equação. E isso diz tudo da força da sua visão.

 

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