Outubro traz de volta à cidade do Barreiro o OUT.FEST para a sua 21ª edição. que arranca dia 1 e se prolonga até dia 5. Como nos conta em entrevista o programador Rui Pedro Dâmaso, o certame tem por objectivo um dia acabar por ser só um “Festival de Música(s)”, mas sem ser mais um — como nunca o foi.
Certo é que as 20 edições pedem vários classificativos para abarcar a programação que se vai fixando ano após ano. “Festival de Outras Músicas” ou “Festival de Músicas Singulares”; feito “De Música Marginal”, mas que se demonstra inclusivo; “Para Além Das Margens”, onde a expressão é composta de “Música Livre”; capaz de promover “Encontros De Vozes Musicais Dissonantes”, onde se cruzam as “Músicas Que Ainda Não Sabes Que Gostas”; um “Festival de Música Estranha” e que deixa em aberto, em jeito de desafio, a ideia de “O Que É Um Festival?”
O programa conta com uma alargada proposta de actuações musicais e de conversas, havendo, por isso, muito para escutar e descobrir ao longo destes cinco dias. Rui Pedro Dâmaso levanta um pouco o véu sobre o que podemos esperar da jornada de 2025 do OUT.FEST.
Como foi pensar nesta edição sucedendo à marca das 20 edições no ano passado, considerada como a mais ambiciosa, pelo número de dias de festival e nomes programados? Inevitável e desafiante, como deve ter sido esse acreditar que depois da primeira haveria que se fazer uma segunda vez?
Como todos os anos, na verdade. Encarar o desconforto de querer fazer mais e melhor face às possibilidades reais (que a cidade oferece e não oferece, que o dinheiro permite e não permite, que as tournées encaixam e não encaixam), discutir sobre muita música que se ouviu, imaginar uma narrativa para os dias do festival, lidar com as inevitáveis questões existenciais (mesmo que saibamos de onde vimos e para onde queremos ir, como é que se navega no mundo que temos neste momento, com tanto potencial para fazer sobressair o melhor que podemos ser mas tanta negação desse potencial a toda a nossa volta?), repensar a questão da “Música Exploratória” e dos nomes que podem ser utilizados para explicar o OUT.FEST — são tantos, e o objetivo é um dia acabar só em “Festival de Música(s)”. O nosso business as usual é tudo menos business e raramente é as usual. Idealmente, cada edição do OUT.FEST será a mais ambiciosa até à data.
No marcante livro OUT.FEST 20 anos que a OUT.RA — Associação Cultural, que organiza o festival, editou faz agora um ano, num dos primeiros textos pode ler-se em súmula irresolúvel: “Tudo pode mudar e tudo pode ficar basicamente igual ao longo de 20 anos”. Isto com respeito ao festival e à cidade do Barreiro. O que aconteceu de forma irreversível ao longo desta ligação? Pode ser reconhecido um Barreiro marcado pelo OUT.FEST?
É a sequência da resposta anterior. Dentro do festival sentimos mudanças a cada ano, ainda que a identidade do OUT.FEST permaneça a mesma — sendo que “a mesma” aqui significa “estar sempre em mudança”. Já a cidade é uma fera muito mais complexa — nós somos fruto de um certo Barreiro que já não existe (como outras cidades já não existem) mas que vai tendo ainda uns gauleses espalhados que a fazem ser “a mesma”, sem necessariamente saudosismo, só vontade de não deixar cair aquilo que sentimos que era especial no caldeirão anónimo da gentrificação. Acho que a marca no Barreiro é essa, celebrar um certo tempo que já não volta mas também contribuir para um futuro com identidade. Difícil ou facilmente tem acontecido e acreditamos que vai continuar a acontecer — há mudanças no futuro próximo da cidade que podem vir a ajudar o OUT.FEST e manter este ciclo relativamente virtuoso.
Entre muitas e boas histórias desse livro contadas na primeira pessoa está esta da passagem e estadia da Amirtha Kidambi, assim lembrando: “A minha banda Elder Ones (com Jason Nazary, St. Louis e Alfredo Colón) tocou no OUT.FEST em 2022, na nossa primeira digressão após o caos da pandemia. (…) Ficamos num apartamento no centro e todas as manhãs eu fazia uma longa corrida, passando por ruínas industriais que me faziam lembrar sítios como Detroit nos Estados Unidos. Apesar de Lisboa estar tão perto, parecíamos estar noutro lugar, na periferia, à margem do recreio capitalista dos turistas, num sítio com verdadeiros portugueses e frequentadores de festivais interessados em música e cultura experimental”. Isto acaba por reflectir uma visão que menos se procura à partida quando se programa um festival — a perspectiva dos músicos — mas que muito importa para também o conformar no final. E aponta bem a uma identidade do OUT.FEST, mesmo para alguém de passagem e vindo de fora. Estarão de acordo?
Estamos de acordo quanto a “apesar de Lisboa estar tão perto, parecíamos estar noutro lugar” — é mesmo outro lugar, por incrível que pareça. Também isso é aquilo que informa as respostas anteriores e a nossa identidade (enquanto pessoas e enquanto festival). Já os “verdadeiros portugueses” estão em todo o lado, acho é que temos a sorte de conseguir juntar tantos e tão interessados aqui neste outro lugar, uma vez por ano. Mas quanto à perspetiva dos artistas, não nos passou pela cabeça não as incluir no livro dos 20 anos; é incrivelmente gratificante viver a empatia que tantas vezes se gera em segundos, ao fim das primeiras frases trocadas — mesmo que o ritmo dos dias do festival seja um obstáculo grande a conseguir criar tantos laços como desejaríamos. Mas o impacto que o OUT.FEST possa ter para eles varia enormemente de pessoa para pessoa: alguns encontram aqui uma certa genuinidade que lhes faz falta, outros encontrarão na face mais “dura” da cidade algum desconforto ou desconfiança. No fim, o que esperamos que todos encontrem por igual é gente interessada em ouvi-los e gente empenhada em fazer com que se sintam em casa.
Poderia o OUT.FEST ter lugar num outro espaço fora deste? Ou haverá antes uma identidade programática que se relaciona sendo indissociável deste lugar marginal à beira de um sonho? Um Barreiro que resiste em tornar-se cópia das cidades p’ra turista ver. Que estando precisamente na outra margem (do Tejo) se vê e sente marginal no lado cultural também. Há aqui mais lugar para a exploração (boa) da cultura e desta música em particular?
Por um lado, não poderia, porque a identidade programática/problemática já leva mais de 20 anos em construção e relação com este lugar, por muito que a identidade mude e o lugar também. Por outro lado, talvez (!) — as sensibilidades podem ser transportadas, e a adaptabilidade a diferentes contextos também faz parte do que somos. Também um dia o Barreiro há de ser cidade para turista ver, e um dia todas essas cidades cansarão a vista ao turista. Mas isto é sério: estamos em 2025 e quase ninguém acredita num mundo melhor, quase ninguém acredita que as coisas ainda vão piorar antes de podermos voltar a sonhar; não sabemos como posicionar-nos perante isto se não continuar a tentar agregar gente interessada, humana e diversa em volta destas músicas, destes artistas generosos, intrigantes, fascinantes, que para grande sorte nossa continuam a atrair muita gente que nunca os ouviu antes mas que está cá para ter a experiência de os conhecer — não é isto uma metáfora boa para coisas melhores no mundo?
Haverá também que continuar a questionar — como que em retórica — como esta mesma distância para a outra banda (Lisboa) teima em ser barreira para públicos. Basta pensar na quantidade de concertos marcantes no OUT.FEST que seriam de maior afluência se acontecessem na outra margem, entre estreias e nomes de grande relevo, mesmo que entre minorias. Um caso flagrante o ano passado com Armand Hammer. Sem que seja (esperemos) um problema para quem programa, como reflexionam sobre isto?
Não temos a menor dúvida — nunca tivemos — que o público do nosso festival seria tremendamente maior em Lisboa. Mas o festival não seria o mesmo se tivesse crescido na capital, não sabemos que tipo de trajectória e concessões poderiam ter acontecido. A verdade é que continua a haver mais gente que de ano para ano parece disposta a quebrar essa barreira.
Pode ser expectável que nas vossas cabeças tenha havido vontade de que muitos concertos destas edições dessem lugar a discos. Aconteceu de facto com alguns casos. Do OUT.FEST 2015 fica o registo Indústria dos AMM com Eddie Prévost e John Tilbury, lançado pela Matchless Recordings. Que outros registos sabem que ficaram disponíveis entretanto? E que gravações (das muitas que o Rafael Toral esteve envolvido como membro da equipa) poderiam vir a dar belas edições?
O Rafael já editou pelo menos dois concertos, um de 2010 (chama-se mesmo Live at OUT.FEST e outro em 2021, o The Last Set. O triplo-CD dos Variable Geometry Orchestra, Stills, tem o concerto integral no OUT.FEST 2007, e circula há muitos anos um bootleg do concerto dos The Fall em 2013. O concerto do Rhodri Davies, também de 2013, foi editado o ano passado. Saiu já este ano o concerto dos ΔIII / XIII em 2023, Abysminal, e o épico concerto do Tiago Sousa no órgão da Igreja do Rosário. Há mais, de certeza.
Largando esse passado imutável e encarando este presente inquieto, quais apontariam como os concertos que poderão marcar esta edição prestes a começar?
É inevitável que as estreias e colaborações inéditas sejam aquelas que antecipamos como mais marcantes — este ano os Wolf Eyes com o DJ Nigga Fox, a Matilde Meireles com o nosso arquivo sonoro do Barreiro, e o Erik Dæhlin com o Grupo de Percussão da Orquestra de Câmara Portuguesa, o Coral TAB e a Banda Municipal do Barreiro (e com o coração industrial da cidade, o mausoléu de Alfredo da Silva e toda uma história de cidade que é escrita de forma diferente todos os dias por quem a descobre e revisita). Mas este ano também vai haver muita “jarda” e muita música delicada, de certeza que daí virão concertos inesquecíveis.