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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/11/2022

Uma série de postais musicais a chegar à caixa de correio.

Roger Eno: “A minha relação com a Deutsche Grammophon é incrível. Assinar pela editora foi como ganhar a lotaria”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/11/2022

Na primeira metade de 2022, Roger Eno lançou o seu primeiro álbum a solo, The Turning Year, pela Deutsche Grammophon, isto depois de ter se estreado pela editora em 2020 com um disco colaborativo com o seu irmão, Brian Eno. Já com uma longa carreira — desde a década de 80 que vê o seu nome em créditos de projectos –, o compositor britânico parece estar numa das fases mais felizes da sua vida, acertando em cheio aquando da assinatura do contrato com o respeitado selo de música clássica — como refere a certa altura da entrevista com o Rimas e Batidas, desde aí que não lhe faltam os meios para concretizar as suas ideias.

Prestes a apresentar-se em nome próprio em Portugal (mais logo no Museu do Oriente, em Lisboa, e amanhã no Auditório de Espinho), o músico tirou algum do seu tempo para falar sobre o seu mais recente longa-duração, os 30 anos de The Familiar ou a sua tendência para só ouvir música feita por pessoas que já não estão vivas há muitos tempo.



Por onde anda?

Estou no leste de Inglaterra. Esta é uma das salas onde trabalho, como podes ver pelas bugigangas e as coisas estranhas atrás.

Então, gostava de começar pelo The Turning Year, o álbum que lançou este ano. Pode-me falar um pouco sobre como é que abordou este disco em termos de composição e gravação?

Eu vivo numa parte particularmente bonita de Inglaterra. Estou muito agarrado a este sítio. Na verdade, uma das razões pela qual não saio de Inglaterra — que recentemente entrou numa espiral de loucura — é que eu realmente amo esta parte do mundo. Sinto-me completamente em casa. Então, muita da influência parte das voltas que dou por esta área e a atmosfera que se sente nesta área, que é bastante agrícola. Esta área era muito abastada no período medieval por causa do comércio europeu relacionado com lã. Tens as mais fabulosas igrejas aqui. Agora, elas simplesmente ficam no meio de campos. É como se a Revolução Industrial não tivesse acontecido aqui.

Voltando ao álbum, eu queria que fosse como uma série de postais. Ou pequenas pinturas de certos aspectos. Foi assim que começou. Eu tinha acabado de gravar com o meu irmão o Mixing Colours e estávamos ambos assinados pela Deutsche Grammophon ao mesmo tempo. Depois disso, a editora convidou-me para gravar o meu álbum a solo, o que foram óptimas notícias porque ofereceram-me músicos de classe mundial com quem trabalhar. Acabei a ter uma orquestra com 20 músicos à minha disposição.

Queria falar sobre isso. Como é que a Scoring Berlin e o Christian Badzura entram na equação? Pelo que me estava a dizer, foi a editora, então.

Bem, o Christian é Heading A&R New Repertoire [da DG], por isso ele tinha algum interesse nisto. Porém, ele também um incrível produtor, uma área que não domino. O que eu gosto de fazer é tocar e escrever para pessoas e isso eu sei que consigo fazer. Por isso trabalhar com o Christian, que tem uma ética de trabalho notável, foi fantástico. Quando eu estava cansado, ele pegava no trabalho e dava-lhe continuidade e depois eu voltava e continuava a trabalhar. Ele é uma pessoa com que se trabalha de uma maneira muito fácil. Na verdade, antes de entrar nesta chamada contigo, eu estava a falar com ele sobre outro trabalho para o próximo ano.

Um novo álbum?

Sim, mas ainda está no início. Pode ser uma verdadeira beleza. Mas, pronto, foi dessa forma que o The Turning Year foi acontecendo. E parecia que cada coisa que pedia me era dada. “Posso ter mais cordas?” E eles respondem-me, “sim, podes”. No outro disse-lhe que estava a pensar em usar um coro e ele garantiu-me que iria tê-lo. É fantástico. Uma relação incrível. Foi como ganhar a lotaria.

O artwork do álbum deixou-me bastante intrigado.

Foi a minha filha que fiz. A Cecily. Ela é a minha filha mais velha, tem verdadeiramente uma boa técnica e é uma pessoa muito fácil com quem se trabalhar. Não há pressas, é tudo precioso, mas não tem problemas em mudar se for necessário. Quase tudo o que me apresentou eu achei fantástico. Ela ouviu as músicas, nós falámos dos conceitos, se lhe quisermos chamar assim. Ela veio com esta ideia e eu achei absolutamente bonita. No booklet vêm muitas fotografias (eu tiro centenas). Gosto mesmo de fotografar. E usou-se imagens que eu gostava particularmente no meio — e tudo arranjado por ela e pelo departamento de arte da editora. Quer dizer, toda a gente estava a trabalhar para mim. Foi uma benção.

Depois do álbum, tem um EP chamado The Rarities.

Quando fazes um disco, existe sempre demasiado material, mas tu não sabes isso até o terminares, quando tens de fazer o alinhamento e escolher a ordem das faixas. E acho que essa parte é bastante importante num disco: a posição em que cada faixa fica, qual é que vem a seguir a qual — pode demorar muito tempo a acertar. Se existe uma faixa que é boa mas que não encaixa, tu vais ter de sacrificá-la pelo bem do disco. Ficámos com algumas boas faixas que não encaixavam no álbum. Ah, e também existem os limites físicos do álbum.

Sim, as pessoas tendem a esquecer isso hoje em dia.

Oh yeah. Eu comprei um gira-discos no mês passado para ouvir alguns vinis antigos e tinha-me esquecido as vezes que nos temos que levantar para mudar aquilo. No computador, basta carregar num botão, sentamo-nos e acabou.



Por falar de discos antigos e da Deutsche Grammophon, quais são os seus favoritos do catálogo da editora?

Quer dizer, eles são principalmente conhecidos por serem uma editora de música clássica. E para te ser sincero, eu não costumo ouvir pessoas que estão vivas. É uma coisa minha, eu ouço apenas pessoas mortas [risos]. Bem, isso não é totalmente verdade. Quando eu era um estudante de música há muitos anos, a DG era uma das grandes editoras — e ainda é. A Decca era muito boa para a música clássica também. A Blue Note era a escolhida quando se queria jazz. Eu ouvia a Deutsche por causa da música clássica — e continuo a fazê-lo. Tenho sido introduzido às pessoas na minha nova editora, mas uma coisa que me deixa preocupado é soar igual a outros, por isso evito ouvir aqueles que me são próximos musicalmente porque não quero ser influenciado. No entanto, estou a começar a ouvi-los agora para ver se não existem coincidências. É algo difícil [soar original] porque existe tanta gente a fazer música ambiente actualmente. Há muitos a fazerem isso e não quero soar igual a outra pessoal. Por isso, e de uma forma consciente, só uso instrumentos velhos, coisas como pianos acústicos, cordas e cenas do género — é isso que me afasta dos outros. Coloca-me mais no campo da música clássica. E eu odeio as palavras “New Age”, isso é algo que tento evitar mesmo. Tento ser bastante cauteloso com as minhas influências e o resultado disso é que ouço música antigo como Guillaume de Machaut, John Dunstable, Binchois, todas estas pessoas de 1400 [risos]. Quer dizer, eles estão mesmo mortos. Não há dúvidas [risos]. É daí que tiro a minha influência, principalmente do seu uso de dissonâncias. Gosto disso porque pode criar um certo desconforto, o que é bom porque muita da música ambiente que se faz é muito fofa e doce. Gosto de meter algo na minha música que não seja assim tão meigo. Espero que tenha respondido à tua questão.

De certa forma [risos]. Também já trabalhou em bandas sonoras para filmes. Qual é a sua relação com o cinema?

Quando era um adolescente, eu ia buscar um livro de arte [vai à procura de um na prateleira]. Este é de um artista chamado Pieter Bruegel. Então, eu abria e procurava uma pintura dele e colocava à minha frente no piano e depois improvisava a partir dessa pintura. Eu fazia isto quando tinha 16 anos. Sempre tive uma paixão assolapada pela ligação entre imagens e música. Consegues mudar completamente o ambiente de algo se tocares a música errada ou a apropriada. Também podes acrescentar algo à imagem. Quando dou concertos, eu tenho um filme a passar enquanto toco. Agora, não sei se é o piano que acompanha o filme ou se é o contrário. Mas dá às pessoas algo em que se focar porque, como sabes, não acontece grande coisa na minha música-

Ah, não me parece verdade.

Mas a grande cena é que como eu mudo (não é uma grande mudança) o alinhamento todas as noites, isso significa que nunca há ligação directa entre o filme e o momento musical. Às vezes as pessoas vêm ter comigo depois e dizem-me, “meu deus, eu adorei mesmo aquela parte em que naquela parte do filme tocou aquilo”. São as pessoas a fazerem-se ligações entre aquilo que vêm e o que se está a tocar quando não existe qualquer tipo de ligação. É algo mágico. Então, é isso que eu gosto na música para filmes, não sou só eu a fazer som, também há o realizador. Adoro a escrita e o processo de criar para filmes.

Andei a ouvir alguns dos seus discos antigos e fiquei-me por um em particular, o The Familiar, que comemora 30 anos em 2022. Do que é que se lembra desse álbum?

Eu conheci a Kate St. John porque andava à procura de trabalhar com uma vocalista feminina. Ela não altura não só música, também era alguém que arranjava pessoas para bandas. Então, fui ter com ela porque achei que me poderia arranjar uma cantora. Enquanto estávamos em casa dela, ela tinha um piano, começámos a tocar e ela cantou. E eu pensei, “bem, encontrei a vocalista”. Foi uma maneira bem diferente de trabalhar porque ela co-escreveu, de certa forma, as faixas. Se reparares, existe uma ligação entre uma linguagem pop a jogar com uma espécie de orquestração de música clássica. Sim, eu gosto de misturar as coisas e ver o que acontece. Algumas vezes resultam e quando não resultam basta termos uma semana de choro e voltamos a ficar bem. Basta chorar bastante, “ai, porque é que fiz isto?”

Qual é a sua relação com esses discos de há muitos anos? Vai ouvi-los de vez em quando ou deixa-os lá no canto?

Não costumo ouvir as minhas coisas. O que acontece é que só vais ouvir os erros daquilo. Há algumas faixas que eu ainda acho excepcionais, mas normalmente quando ouves algo que fizeste acabas sempre a criticar negativamente. Seja algo técnico, tipo o som do piano não ser tão bom como o de agora, ou algo do género, “podia ter perdido mais tempo aqui”. Eu estava a pensar no outro dia: se quiseres ser artista, tens mesmo de ter uma certa personalidade porque quando compões algo estás sempre à procura de perfeição, mas não sabes o que isso é. Maior parte das vezes estás a tentar encontrar o caminho ao mesmo tempo que estás a fazer algo especial. É uma loucura.

Estamos a ter esta conversa porque vai ter dois concertos em Portugal. É a sua primeira vez cá?

Acho que não. Penso que estive há muitos anos a tocar em Lisboa, obviamente, e no Porto. Possivelmente no início dos anos 90. Lembro-me que era um país lindíssimo e recordo-me da arquitectura. Eu gostei mesmo, e isto vai soar profundamente turístico, das lojas velhas de Lisboa, eu achei que eram realmente encantadoras. E, claro, todos os clichés: a comida, o vinho-

É a realidade.

Exactamente, não dá para evitar. Mas é disso que me recordo. Quer dizer, posso ir abrir os 180 cadernos de apontamentos que guardo e de certeza que por lá encontrarei alguns pensamentos sobre o que achei de Portugal. Está descansado, não vou buscá-los agora. Francamente, estou ansioso por ir para aí só para mudar de ares. Não quero ser derrotista, mas é difícil de se viver aqui neste momento, principalmente se tiveres alguns ideais relacionados com justiça social, por exemplo.

Não duvido, parece uma confusão visto de fora. Para finalizarmos: já me falou um pouco de como aborda os concertos, mas o que me pode revelar mais? O foco principal é o The Turning Year?

Não, não. Bem, em primeiro lugar, não vou usar um quarteto, estarei sozinho ao piano, por isso muitas das texturas que são importantes não estão lá. Vou tocar algumas dessas faixas, mas será somente o piano. A principal diferença entre o que se ouve no estúdio e o que toco ao vivo é que gosto de fazer com que as pessoas se sintam confortáveis. Por isso falo com o público. Antes falava durante o concerto, mas agora faço de forma diferente: dou as boas-vindas, converso um pouco e talvez mande uma piada ou outra sobre o que me apetecer. Depois é uma sólida hora de música contínua e nessa hora estará um longo filme a passar, como te tinha dito, e gosto que as pessoas se sintam envolvidas no momento. Normalmente, logo na introdução, eu explico o que se vai passar e peço para que quem quiser sair o faça de forma silenciosa. Se não gostarem, saiam silenciosamente, por favor. Então, tento deixar as pessoas muito confortáveis para depois elas conseguirem imergir em si mesmas durante 60 minutos. É assim que olho para isto. Acho que as pessoas provavelmente aguentarão esse tempo todo. É difícil, mas é precioso.


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