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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 02/12/2022

Mais uma edição Clean Feed.

Ricardo Toscano: “Sou alguém cheio de contradições. E gosto muito disso”

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 02/12/2022

Em Novembro, Ricardo Toscano lançou o seu mais recente disco, Chasing Contradictions, em que se rodeia de Romeu Tristão (no contrabaixo) e João Pereira (na bateria) para formar um sólido trio que vai à procura do seu som e do seu jazz. O álbum foi gravado no palco do Teatro Municipal S. Luiz, sem público, e com a banda disposta de costas para a plateia, aproveitando a beleza da sala como cenário.

Antes da apresentação do trabalho no Hot Clube de Portugal, em Lisboa, o saxofonista revelou-nos as diferenças de tocar com formações distintas, a necessidade da independência criativa a partir de certa altura ou da autoridade de Theolonius Monk.



Disseste-me que este disco foi gravado num teatro, sem público. Mas nessa altura o circuito dos espectáculos já tinha reaberto, não já? As pessoas já iam aos concertos.

Ele foi gravado em Março de 2021. Foi um concerto encomendado pela embaixada portuguesa em Washington para a celebração do Dia Mundial do Jazz.

Isso foi transmitido em streaming, na altura?

Não. Foi gravado para ser transmitido. Na altura, pensei logo, “já que vamos filmar isto, vou falar com uma malta muita boa”. É uma produtora de uns amigos meus, malta do cinema, cheia de prémios.

Como é que eles se chamam?

Ricochete Filmes. Eles trabalham com O Som e a Fúria, do Sandro Aguilar. O director de fotografia é o Rui Xavier, um craque daqueles. Somos amigos, brothers, há muitos anos. Ele tem uma carrada de coisas minhas gravadas e filmadas, porque ele adora som. Quando eu toquei no Irreal, ele foi lá e gravou tudo. O gajo tem muitas imagens nossas, do quarteto e do trio. Somos amigos íntimos. Já que íamos fazer isto para streaming, “epá, vamos ali para o São Luiz e partimos aquela merda toda”. Mesmo com pouca guita.

Usaste a sala como cenário.

Usei. Com umas luzes lindas, da Carolina Caramelo. Tinha três ou quatro temas e apenas um dia para fazer aquilo. A montagem roubou 90% do tempo [risos].

A parte simples é tocar, não é? [risos]

Sim. Mas quando fomos para tocar, foi tipo assim, “ok, malta, temos de ir directos porque isto fecha às 19 horas”. Foi tudo no primeiro take. Como manda a lei antiga [risos].

Lembro-me de, há uns anos, me teres falado do quão complicado é ter quartetos, por causa das salas que não têm piano, entre outras coisas. De alguma forma, a pandemia também te empurrou para este formato de trio?

Olha que não. O primeiro sítio para onde a pandemia me empurrou foi para um duo no quintal, com o Bruno Santos [risos].

Verdade.

Neste caso, já tocávamos em trio há muito tempo. Só nunca houve, assim, muitos concertos importantes. A verdade é que um quarteto… Se o João Pereira não puder tocar, eu tenho uma hipótese ou outra [para o substituir]. Se o Romeu não puder, também sou capaz de arranjar uma hipótese. Mas se o Coelho não puder, já não tenho hipóteses nenhumas. Isto, para mim, é mesmo um projecto paralelo ao quarteto. É uma coisa da qual eu gosto. A sonoridade é completamente diferente e leva-nos para outros sítios. Vamos mantendo, também, o quarteto. Mas eu quis fazer um disco assim, em trio. E já que íamos fazer esta gravação, pensei logo, “isto fica mas é já um disco”. E foi.

Foi juntar o útil ao agradável.

Foi a apontar para aí. Assim que me fizeram o convite, pensei, “ui! Grava-se já um disco.” Normalmente, nós somos procrastinadores profissionais [risos]. Falo por mim. Toda a cena de juntar tudo, marcar um estúdio… Eu gosto de aproveitar oportunidades que se proporcionam, como esta. Foi isso.

Sinto que aqui exploras uma nova sensibilidade tua. O facto de não teres o amparo de um segundo solista ao teu lado, como no quarteto, e de assumires essa responsabilidade sozinho, é uma coisa que te liberta? Que te aponta para uma nova direcção?

Liberta-me e aponta-me para uma nova direcção. Faz-me ir mais num outro caminho. Mas esse caminho é tão amplo… Eu faço-te um breakdown da coisa: há muitos estilos de jazz, mas há um que é o meu preferido, que é o do diggin‘. Aquele momento, quando estás-

Numa busca?

Na busca, mas em tempo real. Isso só acontece quando tens o teu material em dia, quando estás em forma, quando estás a “acontecer”. Há fases em que acontecemos mais que outras, mas o trio obriga-nos a estar nessa fase. Se não, não tens game para um concerto inteiro ou para um disco inteiro. Os temas de jazz são coisas curtas. Nós é que fazemos solos longos, sempre a desenvolver e a conversar. Isso, em trio, é muito nu. Se não tiveres o teu game em dia, não consegues fazer isso.

Porque a cama harmónica do piano é um conforto que te protege?

Não. Isso é só mais uma pessoa na conversa.

Só e apenas isso?

Sim. Toda a gente, a partir de uma certa idade, tem de se tornar independente. Não é um pianista que me vai ajudar a tocar melhor um tema. Ele pode é fazer-me soar melhor. Mas não me vai ajudar. Percebes o que quero dizer? Eu não vou estar perdido numa estrutura, a precisar que me dêem a mão para atravessar a rua.

A ti pode não te ajudar, mas ajudaria os ouvintes, se calhar.

Isso é outra conversa. Talvez. Mas no caso deste disco, até acho que a coisa está bastante directa. Acho que a malta não se vai perder enquanto escuta o disco. Talvez no primeiro tema, um bocadinho, por ser um tema rápido.

O que é que significa ser compositor, neste contexto? No momento de gravar, no São Luiz, o que é que levaste aos músicos? Tinha havido ensaio prévio?

Um ensaiozinho [risos].



Como é que a informação lhes chega? É um ficheiro que envias pelo WhatsApp? Uma partitura?

Uma partitura mal escrita, provavelmente [risos]. Sempre a ser emendada no próprio dia. Mas no disco não estamos a ler. Às tantas, decoramos aquilo e pronto. Eu gosto de escrever música. Eu escrevo na forma de um lead sheet. É uma coisa concreta. “Isto não pode falhar”. Melodia, acordes e ritmo.

Indicas-lhes se é para tocar rápido ou lento?

Sim. É por aí que o tema começa na minha cabeça.

Ou seja: as baladas foram sempre baladas e os temas mais swingados também sempre foram dessa maneira, desde a sua origem?

Sim. Na verdade, o segundo tema não. Esse escrevi-o ao piano. Não sou grande pianista. Toco ao nível de um compositor [risos]. A melodia surgiu naturalmente. Pensei, “como é que isto ficava bem?” Às tantas, “vamos fazer isto de rebate uma vez ou outra. Depois, fazemos num groove meio afro”. A malta adorou. Foi daqueles temas que saíram bem. Gosto de escrever temas de acto único. Começas a escrever e acabas no dia. Ou no momento! Às vezes pegas em coisas [feitas antes] e a tua cabeça já não está nesse sítio. É quase uma regra que tenho comigo.

Já aconteceu ouvires peças tuas a serem interpretadas por outros ensembles?

O Bernardo Tinoco [risos]. Quando o gajo andou no Hot Clube, quis tocar um tema meu, do primeiro disco.

Como é que isso te faz sentir?

Fiquei bué contente. Mas eles não conseguiam tocar aquilo [risos]. O problema não era ele, era a banda. Ainda por cima, o tema é bonitinho, parece fácil. Mas é difícil de tocar. Até a mim me acontece. Às vezes stresso por não estar a conseguir tocar certo tema. Quando escrevo, não estou a pensar se vai ser fácil ou difícil de tocar.

Isso acontece porquê? Escreves temas complexos ou tecnicamente exigentes?

Não sei. Talvez por não estar habituado. Nós passamos muito tempo a tocar standards e a música dos outros. Quando é para tocar a nossa música, é sempre uma coisa meio exótica. Parece que um gajo não está à espera de tocar a sua própria música. É uma merda estranha [risos]. Mas faz sentido. Nós passamos muito mais tempo a discutir a linguagem que temos em comum do que a impingir a nossa própria.

Qual é a relação entre aquilo que ficou gravado e o que vai acontecer hoje [no dia 9 de Novembro, recordem a reportagem], em palco? Fizeram questão de escutar muito o disco?

Nada! Aquilo está gravado!

Está gravado, então está arrumado. É isso?

Sim. Nós só o escutámos para autorizar a mistura do som. Eu não vou ouvir. Não vou desfrutar de mim próprio há um ano atrás. Esse gajo já foi à vida [risos]. Nós vamos tocar os temas que estão no disco. Se tiver uma fila muito grande para a malta entrar, vou tocar o alinhamento do disco no primeiro set, como respeito à malta que vai para a fila. O disco tem 30 e tal minutos, mas nós vamos tocar cerca de uma hora, na boa. São cinco temas. No segundo set, se calhar toco um ou outro tema meu. Vou tocar Monk. Gosto bué.

Curioso.

O Monk é o dono desta merda toda!

Conta-me lá porquê.

O Monk mostra-te tudo aquilo que está certo na sua forma mais minimal e indiscutível de todas. Por exemplo, um tema do Monk mostra-te uma impressão perfeita da ideia do jazz. Não te sei explicar isto de outra forma. O ritmo, os acordes, a melodia, a forma como ele toca. “Queres saber o que é o jazz? É esta merda!”

Tens um disco favorito dele, ao qual estejas sempre a regressar?

Não. Gosto muito de um ao vivo no Five Spot Cafe. As cenas dele a solo matam-me. Sei lá. O Monk é o Monk. O Miles, o Coltrane, o Charlie Parker… Eu adoro essa gente toda. Mas há ali qualquer coisa de autoritária no Monk. Eles chamavam-lhe o “high priest of bebop”.

Quando escutaste o disco para autorizar a tal mistura, descobriste alguma coisa sobre ti e que te tenha surpreendido?

Ya! E, na verdade, ainda hoje estava a ouvir o primeiro tema e pensei, “está melhor do que eu achava”. Aquilo soa-me mesmo a versão de disco. É simples e sintetizado. Estou a tocar sobre o tema. Livre, mas sempre ali, na cena. O tema até dá título ao disco e fala sobre ser-se a contradição. Do tipo, “como é que consegues tocar livre, mas sempre ‘lá’?”. Eu sou [alguém] cheio de contradições. Graças a Deus. De certeza que tenho muitas coisas contraditórias em mim e gosto muito dessa cena. Gosto porque, no fim de tudo, é só isso: é uma contradição e não podes fazer nada quanto a essa merda. Embrace it and take it. É o que é.

Qual é o teu trio de referência?

Eu gosto muito do trio do Ahmad Jamal. Esse é imaculado. Mas há outros que têm mesmo aquele som – aquela arquitectura máxima — do trio. E trios de saxofone? O Rollins tocava em trio. Mas o gajo nunca tinha uma banda fixa. Ele ia tocando com malta. Ele tem um álbum com o Elvin Jones, A Night At The Village Vanguard… Mais diggin‘ que aquilo é impossível.

Antes de te deixar ir embora, diz-me só: o que é que 2023 te reserva?

Ainda antes de fechar este ano, vou ao Uruguai tocar com malta de lá! Já estou com medo. Um medo bom [risos]. Vou sozinho, ainda por cima. Vai ser giro. Ainda não sei bem com quem vou tocar. Tenho de investigar melhor a malta. Para 2023, na verdade, não sei. Quero ver o que é que consigo fazer com este disco. Mas gostava de gravar o quarteto em 2023, por exemplo.


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