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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/11/2022

Até à última gota.

Ricardo Toscano no Hot Clube de Portugal: mistérios da alma num alto iluminado

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/11/2022

É sempre bonito ver uma “fera” no seu habitat natural. Mais incrível ainda ver três, a interagirem em total liberdade. Foi o que aconteceu na noite da passada quarta-feira, no Hot Clube, em Lisboa, com a apresentação de Chasing Contradictions, novíssimo registo de Ricardo Toscano para a Clean Feed, desta feita em trio. Apesar de ter agenda sempre carregada, o saxofonista não editava enquanto líder desde 2018, ano em que a mesma editora apresentou o Ricardo Toscano Quartet com um álbum extraordinário em que se fazia acompanhar pelo piano de João Pedro Coelho e ainda por Romeu Tristão no contrabaixo e João Lopes Pereira na bateria. Desta feita, no entanto, Toscano manteve a secção rítmica, mas prescindiu do piano, tomando o trio como ponto de partida para a exploração de outras possibilidades musicais.

O álbum foi gravado no palco do Teatro Municipal S. Luiz, sem público, e com a banda disposta de costas para a plateia, aproveitando a beleza da sala como cenário, facto que rendeu um conjunto de excelentes vídeos assinados por Rui Xavier dos quais já foi revelado “Orange Blossom” e “Chasing Contradictions”. Ponto de partida para o primeiro set da noite, com o trio a expandir o que em disco surge – em termos de duração – bem mais contido.

O concerto seguiu o alinhamento do CD que apresenta duas peças de Toscano – “Chasing Contradictions” e “Orange Blossom” –, uma de João Pereira, “Totem”, outra de Thelonious Monk, “Played Twice”, e outra ainda que é um fado tradicional, “Súplica/Vagas Paixões”. Tomando o tempo como uma expansiva tela onde é possível pintar grandes murais, o trio não se conteve e foi, pode dizer-se, por ali fora. O ambiente no Hot era de visível euforia, não apenas porque Ricardo Toscano é uma estrela que tem por hábito encher o espaço da Praça da Alegria (em Lisboa) de amigos – que obviamente acorreram em número generoso –, mas também porque, nestes tempos de nómadas de todos os géneros, um clube de jazz é uma atracção turística como outra qualquer.

A todos e todas foi oferecido um conjunto de interpretações/deambulações de enorme calibre, claro. Tristão é água que corre por todo o lado, um fluxo constante de verdade, de paixão e de subtileza, que nunca atrapalha, antes abre caminho. E Lopes Pereira um cromático gestor de tempo, faiscante nos címbalos, com toque firme, mas subtil nas peles e aros, capaz de criar as quadraturas necessárias para os círculos desenhados pelo solista, que sem a base de um instrumento harmónico pôde expor toda a elegância melódica do seu alto. E para isso há o tom de Ricardo: de uma absoluta nobreza, feito da sépia clássica que se tingiu com estudo atento dos mestres, mas que sabe que é este o seu tempo. A alma de Ricardo Toscano é tão gigante que se poderia dizer caber lá dentro toda a história, mesmo a que ainda falta escrever. Classe absoluta, arrebatamento q.b., espírito, corpo e cérebro. Tudo existe no seu som e a verdade é que Ricardo “canta” como poucos.

Solando como se confessasse amores ou chorasse mágoas e explorando todos os registos possíveis do seu instrumento, embora soasse sempre mais poético no registo médio, Ricardo brilhou ainda mais intensamente no fado com que nos deixou no fim do primeiro set: habituado à voz do enorme Camané, com quem já tocou, o saxofonista entende de forma aguda o drama da contenção e o seu fado soa muito diferente daquele que em temos assomou no saxofone de Rão Kyao. Contém fantasia e chama, mas também a beleza de quadros que não são meramente figurativos e procuram o mais fundo mistério da abstracção. Mexe mesmo com tudo cá dentro. O que justifica de forma plena os aplausos efusivos recolhidos no final. Que se percebesse que tinha a camisa encharcada quando as luzes se abriram para o intervalo foi apenas sinal de que ali se deu tudo, até à última gota. Essa intensidade, por um lado, e a pressão de um comboio para apanhar muito cedo na manhã seguinte, por outro já não deixaram que se presenciasse o segundo set. Ficará para uma próxima oportunidade. Talvez em São João da Madeira, já no próximo dia 18, quem sabe…


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