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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 09/02/2023

Quando os detalhes contam.

Rescaldo: “Há mais pontos que unem Poly Vuduvum a Menino da Mãe do que os separa”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 09/02/2023

Entre os dias 15 e 19 de Fevereiro, Lisboa volta a ser palco para uma série de espectáculos na 13ª edição do Rescaldo, cuja programação está “entre a composição académica contemporânea e a experimentação auto-didata, entre o jazz e a electrónica, passando por miscigenações inimaginadas e colaborações únicas pensadas em exclusivo para o festival.”

De Poly Vuduvum a Menino da Mãe ou de Cândido Lima a Not Binary Code, há todo um leque de diferentes e vibrantes sonoridades na montra da cidade, que este ano se divide entre Galeria Zé dos Bois, Damas, Teatro do Bairro Alto, MAAT e Igreja de São Jorge — podem consultar a programação aqui.

Na antecâmara do arranque de um dos certames mais irreverentes da capital portuguesa, o Rimas e Batidas foi tentar perceber por que directrizes se guia um cartaz tão diverso — e ao mesmo tempo tão uniforme — como este.



Bem sei que começar por fazer balanços é o habitual nestas ocasiões e que sendo esta, se não estou em erro, a 13ª edição do Rescaldo, já hão-de ter nos ombros uns quantos balanços. Mas o presente transforma sempre o passado, por isso comecemos mesmo por aí: uma dúzia de edições nos ombros já há-de pesar alguma coisa, não?

A Física é ciência que não dominamos na sua plenitude, mas procuramos sempre um aligeirar de carga, para que não nos pese demasiado nos ombros e sobretudo nos ombros e ouvidos de quem nos tem acompanhado ao longos destes anos. Aligeirar que, para nós, é precisamente o antónimo de tornar mais leve. Ou seja, procuramos fazer um exercício que consolide os valores que definiram o Rescaldo ao longo destes anos, como o desenhar de relações entre músicos e bandas que aparentemente se encontram em campos opostos, dar prevalência a trabalhos que por uma razão ou por outra se destacaram ao longo do ano anterior e sempre que possível convidar músicos para trabalharem como um colectivo, apresentando uma peça para um concerto, num contexto de total liberdade. O facto destes vectores já estarem suficientemente consolidados aligeira-nos essa eventual carga de que falas e permite-nos, o que para nós é o mais importante, introduzir outros vectores e mecanismos de programação que nos interessa trabalhar, como por exemplo acontece na edição deste ano – convidar um músico de referência no campo da música contemporânea, Cândido Lima, se quiseres num Rescaldo de uma vida gigantesca, mas também apostar em colectivos, e não na figura de músico como pessoa singular ou em banda, como é o caso de Algorave By Not Binary Code (Quendera . Ndr0n . Violeta) e ainda promover a sempre e mais do que necessária aproximação destes estilos musicais a uma camada etária cada vez mais jovem como acontece com a workshopSHHHH… BONG! PIII, ZUUU! Vamos Fazer Música Concreta! É neste binómio, consolidado/a experimentar, que queremos continuar a trabalhar. É como um mochileiro – se a mochila se encontra bem amarrada, podes por a carga que quiseres que o caminho se faz com prazer, muito.

Qual foi o ponto de partida para o desenho da programação da edição 2023? Sentem que há alguma mudança na proposta de resumir o ano anterior e antecipar o futuro mais ou menos imediato?

Festivais como o Rescaldo não se programam, nem se materializam a partir de um único ponto de partida. Tentando não nos repetir, será mais conveniente chamar a atenção para alguns pequenos detalhes da programação. Começar pelos locais dos concertos, ao contrário da edição de 2022, iremos ter concertos no TBA e no MAAT, para além da Galeria ZDB, Damas e Igreja St. George que se mantêm. Quando temos duas estruturas tão fortes como o TBA e o MAAT, temos de pensar numa programação que reforce o papel do Rescaldo, mas que acrescente alguma coisa mais ao que habitualmente se apresenta nestes dois espaços. Restringindo-nos a um exemplo somente – Menino da Mãe + Coro, com um vincado discurso social e político e que encaixa no programa expositivo do MAAT. Outro ponto que nos ajuda a definir um programa de uma edição é o que nós chamamos os diferentes eixos de rotação, se quiseres, a rotação do próprio dia, como por exemplo com o João Carreiro + Mariana Dionísio e Bezbog que trabalham em novas interpretações de um ‘Requiem’ e de ‘uma nova ideia de música sacra’, o que não deixa de constituir uma certa ironia para o primeiro dia de festival. Há, igualmente, as elípticas longas, que permitem começar o Rescaldo com um duo na área do jazz e terminar com Carlos Bica a solo. Mais do que um ponto, são pontos – o que pretendemos manter, o que desejamos alterar/experimentar e a partir de aí desenhar todo um mecanismo de encaixes que faça sentido, na consolidação da nossa vontade e ultrapassando constrangimentos de vária índole.

Este ano, o Rescaldo espraia-se por locais como o MAAT, TBA, Damas, ZdB e Igreja de St George. Quais diriam que foram as mudanças – se é que as houve ou que as sentiram – na relação do Rescaldo com os lugares da própria cidade? Nesta Lisboa gentrificada é mais complicado fazer uma aventura destas acontecer?

O problema de gentrifcação que Lisboa vem sofrendo é grave, cujas consequências bem mais profundas ainda iremos sentir com maior veemência nos próximos anos. Infelizmente, e em relação a isto, e mesmo tendo em conta a nossa implicação política e social, o Rescaldo pouco pode fazer. No que se refere aos espaços o efeito nefasto da gentrificação sente-se no facto de ter levado ao encerramento de locais emblemáticos, ter descaracterizado associações seculares e reflecte-se, e muito, no ambiente em torno desses lugares, cujo Bairro Alto é o exemplo mais marcante. Lisboa padece de um grave deficit de espaços para concertos de média dimensão. Tem uma rede muito vibrante de pequenas associações e salas com uma programação bastante aliciante – Desterro, Bota, Prisma, Lounge, Cossoul, Cosmos, POGO, Arroz Estúdios, Planeta Manas, Appleton, SMUP, SMOP entre outros e, nunca esquecendo as Damas que são nossas companheiras nesta edição também. Acontece que para determinados concertos, pelas especificidades técnicas e de comodidade para o público, estes espaços são ‘curtos’. Daí, termos que passar para outra escala – TBA, MAAT, Igreja de St. George. Num contexto de festival funciona. O cerne do problema é que festivais como o Rescaldo são esporádicos ao longo do ano. O que os músicos têm vindo a produzir ao longo destes anos recentes exige que se olhe para esta questão de uma forma mais audaz e imaginativa.

De igual forma, no que a coordenadas musicais concerne, houve alguma mudança de rumo – subtil ou acentuada – provocada por alterações nas margens do mapa musical da cidade e do país? Cobrem hoje terrenos que não calcorreavam no início?

Impensável não acompanharmos o trabalho que os músicos portugueses e/ou residentes no nosso país andam a fazer. Seja, por uma audição exaustiva das músicas em plataformas on-line – Bandcamp, Soundcloud e Mixcloud – seja pela leitura de artigos maioritariamente em publicações como a vossa e semelhantes, vê-los inúmeras vezes ao vivo, seja sobretudo, pelo acompanhamento do trabalho de colectivos e o que eles vão fazendo. O panorama alterou-se, como bem referes. Os músicos não são apenas e somente músicos. São músicos a solo, músicos em colaborações, em bandas, organizam concertos e outros encontros, são editores. Ficar indiferentes a esta mudança seria alimentar a ignorância a caviar. Houve, nesta edição, em edições anteriores e nas que hão-de vir, alterações mais ou menos subtis. Estas subtilezas, e esperemos continuar com o traço apurado, são prementes para manter a vitalidade do Rescaldo, mas sobretudo para nos posicionar face a determinados contextos e saber de que forma podemos potenciar características que assumimos como nossas também. Estas elipses de tamanho variável é que nos ajudam a definir o rumo, estas justaposições suaves, não na lógica do ‘cruzar pelo cruzar’, antes um trabalho de cerzideira. Mas, sim – ficamos felizes que tenhas notado estas pequenas mutações de um ano para o outro.

Falemos da programação de 2023: ter uma referência incontornável da música contemporânea como Cândido Lima lado a lado com uma aventura tão recente como, por exemplo, Not Binary Code já transmite muito do pensamento em que repousa (ou que agita) a identidade Rescaldo, não?

Curioso que tenhas referido estes dois exemplos. À partida parecem campos diametralmente opostos. Mas, só uma leitura superficial e tendo como critério – idade, género de música, outros – critérios pobres, diga-se de passagem, é que se poderia pensar não ter lugar no mesmo festival. O carácter experimental de ambos os trabalhos, quer do Cândido Lima como de Not Binary Code, a procura de novas ferramentas e novos sons são exemplos maiores daquilo que os aproxima. Seria interessante poder viajar no tempo e estamos certos que encontraríamos Ndr0n, Quendera e a Violeta como companheiros de Cândido Lima nas universidades de Vincennes e Panthéon-Sorbonne, quando ele por lá andou, ou o Cândido Lima a aprender código com eles os três. Encontrar estes pontos de contacto, que ultrapassam os critérios numéricos e que nos aproximam do melhor da natureza humana é o que mais nos entusiasma enquanto programadores.

O encontro de André Gonçalves, Maria da Rocha, Violeta Azevedo e César Burago deriva de uma encomenda, certo? Falem-nos um pouco sobre a ideia de cruzar estas pessoas e também se a ideia de provocar novas colisões, dando um lado mais laboratorial à programação, é algo importante para o Rescaldo…

Três pontos estiveram subjacentes à encomenda de um trabalho específico e em exclusivo para o Rescaldo. O facto de já acompanharmos o trabalho dos músicos envolvidos há bastantes anos, tanto a solo, como em diferentes colaborações, tendo alguns deles participado em edições anteriores. Ou seja, é convite endereçado com uma base sólida de confiança. Outro factor a ter em conta é que o exercício será apresentado no TBA, pelo que faz todo sentido mostrar uma peça nova e especificamente para este momento. Por último, e talvez até o mais importante, é que os quatro músicos vão dialogar nas suas complementaridades, não necessariamente num simples somatório, quem sabe até tornar-se mais ‘invisíveis’ num ou noutro momento, para que o todo seja verdadeiramente um. Estes equilíbrios são aliciantes e fomentam ainda mais a nossa curiosidade, até porque a margem de liberdade para os músicos é total.

Este tipo de colaborações sempre foi uma imagem de marca do Rescaldo. Mesmo este ano seria injusto não destacar a colaboração entre o Tiago Sousa + Joana de Sá, convite baseado no conhecimento do trabalho que temos de cada um deles, do facto de termos já organizado concertos a solo de ambos, mas pelas tais linhas invisíveis, no caso do Tiago e da Joana que adjectivaríamos como uma força pura de final de tarde, se quiseres uma caracterização mais poética. O Menino da Mãe, vai-se apresentar com coro e com uma surpresa, pelo que também aqui são outras colaborações que vão surgindo ao longo do processo. Podem ser de diferente índole, por convite expresso, por sugestão da organização, por sugestão dos próprios músicos. No entanto, uma premissa tem de ser inabalável, eles têm de se sentir confortáveis ao fazê-la, caso contrário já sabemos no que é que resulta.

Quem tenha porventura estofo para assistir a todas as apresentações – e são mais de uma dezena, as que estão programadas – que imagem leva da música que por cá se cria?

Esperemos que haja estofo. Seria bom sinal. É uma pergunta muito difícil de responder, porque nos coloca no papel incómodo de criação de uma imagem. Nós sabemos o quanto esse exercício é limitador e facilmente se cristaliza em falsas e redutoras realidades. Mais importante do que levar essa imagem geral de que falas, é obrigatório observar as pequenas subtilezas que temos vindo a referir desde o início da nossa conversa. Apesar de uma aparente bipolaridade há mais pontos que unem Poly Vuduvum a Menino da Mãe do que os separa, como também a Vasco Mendonça & Drumming GP a Raw Forest, por exemplo. É urgente acompanhar o trabalho de cada um dos músicos ao longo dos tempos. Seria muita presunção da nossa parte pensar que o Rescaldo pode alguma vez vir a ser a imagem do que é o panorama da música nacional. Por um lado, não abarcamos todos os géneros musicais e onde se têm produzindo excelentes trabalhos, por outro, há vicissitudes várias que nos impedem de programar músicos cujo a obra consideramos enormemente, e o quanto isso nos custa, e por último porque um concerto no Rescaldo pode ser totalmente diferente noutro contexto, veja-se por exemplo Poly Vuduvum na Appleton e no Out.fest. As mesmas pessoas, dois espaços e contextos diferentes, dois concertos distintos. E como será no Rescaldo?

Ainda temos todos bem presente a súbita e dramática paragem da cultura aquando dos confinamentos. O que mudou desde então? O acesso a apoios para levar a cabo estas programações mais “difíceis” é hoje mais facilitado? Ou nem por isso?

Muito sinceramente temos muita dificuldade em responder a esta pergunta, porque simplesmente não estamos na posse de todos os dados, daí que o que dizermos possa vir a ter algum impacto e seja relevante. No entanto, e se nos permites, gostaríamos de nos colocar um pouco a montante dessa discussão. Seria interessante começar a criar espaço para reflectir sobre o que é a música e a música ao vivo. Perguntar-nos, o que nos atrai para determinado concerto em detrimento de outro? Será que tudo é passível de ser analisado segundo a matriz oficial? Como incorporar determinadas preocupações numa programação sem que os mesmos percam a sua força e o seu carácter mais visceral? Como criar o contexto adequado para que determinado músico possa expor o seu trabalho em todas as dimensões? Estas são algumas das questões, entre tantas outras, que seria interessante colocar. E se a conversa for inconclusiva, tanto melhor.

O presente ano há-de, certamente, apresentar muitos momentos musicais – entre novos discos e concertos – que serão levados em linha de conta na hora de programar 2024, mas o futuro já começou há um bom bocado e como o Rescaldo também cuida de o antecipar em que já pensam para o cartaz do ano que vem?

Partilhamos da tua visão optimista. Estamos certos que o ano de 2024 trará excelentes edições, concertos, festivais que mais não são do que o reflexo da efervescência que se vive actualmente. Na tal elipse larga, sabemos o que queremos manter em 2024 – as colaborações sempre que possível, o cruzamento de linguagens aparentemente dissonantes, alargar a ideia de Rescaldo que não se restringe somente ao ano anterior, mas também dar mais espaço aos diferentes colectivos, como acontece este ano com Algorave By Not Binary Code, criar de alguma forma uma articulação entre instalações e concertos, ideia muito debatida entre nós, ou mesmo trabalhar com músicos estrangeiros a residir em Portugal, que já são uns quantos e com excelentes trabalhos. Mas como portugueses que somos projectarmos demasiado 2024 é descurar todos os detalhes, agora de produção, da edição de 2023. E como se costuma dizer – é tudo uma questão de detalhes, e os detalhes contam.


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