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Texto: Paulo Pena
Fotografia: João Figueiredo
Publicado a: 06/07/2023

Por amor à camisola.

Real GUNS: “A minha ideia não é ser fotocópia, é criar identidade”

Texto: Paulo Pena
Fotografia: João Figueiredo
Publicado a: 06/07/2023

Apresentou-se devidamente em Escrevo Com Sangue, mas já vinha a trilhar um caminho muito próprio desde mixtapes como Época di Camufla ou Época di Organiza. Agora, Real GUNS veste a pele de DAVIDS para uma nova temporada, desta vez já com a camisola da MAR Records ao peito neste seu segundo álbum de estúdio a solo. MikelPotter volta a ser o arquitecto de serviço num trabalho — por oposição ao antecessor — mais aberto à colaboração (que vai desde as contribuições de EU.CLIDES, Fumaxa, RICOWORLD, Venus ou Moralezz na instrumentalização à participação de rappers como Kats Xrootz, Esco Eks, General Mucuenba, Nex Supremo e Pucci Jr).

Foi sobre esse seu mais recente projecto que falámos com o rapper luso-são-tomense nos quartéis da casa editorial (sediada na CUPRA City Garage, à Baixa de Lisboa) pela qual se estreou com DAVIDS, conversa essa que se prendeu, porém, pelas motivações fundamentais que levam gente como Ovilton Santiago a fazer rap — e, neste aspecto, “rua” é a palavra-chave.



Quem pesquisa pela primeira vez “Real GUNS” na Internet dificilmente chega à tua música. De onde vem este nome?

Ya, é uma cena engraçada: fiz um som que se chamava “Real Nigga”, e os meus rapazes começaram a chamar-me Real Nigga. Então comecei a usar esse nome e ainda fiquei uns tempos. Mas, depois, criei o meu grupo GUNS, tirei o Nigga e meti os GUNS. Eu gosto da cena do Real; GUNS é a minha afiliação, o grupo que eu criei na minha zona. Mas, se calhar, nem fui eu que escolhi o meu nome — fui baptizado Real.

Isso mais ou menos em que altura?

Foi quando eu voltei de Inglaterra, por volta de 2018, 2019. 

Foi nessa altura que começaste a cantar?

Eu comecei a fazer música com os meus 16 anos. Cenas banais. Não é como hoje que temos o streaming, era só para ouvir na rua, nada na Internet.

Para ti foi importante teres esses anos de desenvolvimento, antes sequer de te mostrares ao público?

Para mim foi, porque, até chegar aqui — onde, se calhar, já tenho mais pessoas a ouvir a minha música —, ainda tenho de saber lidar com muita coisa. Quando te expões no rap, estás sujeito a muita coisa. E eu fui aprendendo que fazer rap não é uma brincadeira, fui aprendendo a gostar do que faço. Foi uma escola, fui em busca de… Quis saber mais, quis explorar, não fiquei só na cena de fazer música. É muito fácil chegares ali e fazeres só um som, mas há muita coisa por trás. Quando eu percebi que a música não é só chegar e gravar, comecei a focar-me em coisas como criar uma equipa, como estruturar um projecto, compor… são os processos que um gajo não ligava. E como eu sempre me fui envolvendo na cultura do hip hop e da street culture, comecei a aprender que as cenas têm de ser desenvolvidas de uma maneira diferente. Muita gente pensa que a música é feita tipo fast food, mas não é. 

Tiveste referências no hip hop que te levaram a desenvolver essa mentalidade?

Tive algumas referências, algumas até que não estão ligadas à cena do hip hop. No hip hop, foram vários rappers: Nas, Tupac, Wu-Tang Clan… O Nas já podia ter ganho um Grammy há bué [tempo], mas só ganhou há dois anos…

E, se calhar, com um dos álbuns que menos merecia…

Ya, se calhar não é o melhor trabalho dele. Mas ele ainda está a construir e as pessoas continuam a perceber que ele é o Nas. Tu não podes matar a personagem que criaste, tens sempre de trazer cartas novas para a mesa.

Na tua perspectiva, o Escrevo Com Sangue é o teu primeiro trabalho a solo oficialmente?

Sim, tenho mixtapes antes, mas o meu primeiro álbum é o Escrevo Com Sangue. Se calhar, é o álbum que eu sempre quis fazer, mas não tinha conhecido uma pessoa como o MikelPotter que me pudesse apoiar a fazer uma coisa assim tão personificada.

Fez toda a diferença ter uma pessoa como o MikelPotter a desenvolver a tua sonoridade?

Sim, em termos de som, em termos de imagem, para mim foi muito importante ter conhecido o Pietro [Biz Biasia], o Stenpie, o Mike… Porque essas pessoas, no que eu faço agora, conseguem perceber muito rapidamente a minha conversa, executar facilmente as cenas que eu tenho na minha cabeça. Com o Mike, foi fácil estar no estúdio com ele e ter ideias: aquilo que eu via ele conseguia ver igual. E a mesma cena com os fotógrafos e videógrafos. São pessoas que me entendem e que falam a mesma língua que eu. Isso, para mim, foi uma grande ajuda. 

Nas tuas músicas paira uma sensação de missão a cumprir. Que missão é essa em concreto para ti?

Eu sempre quis falar para o mundo. Por isso é que eu comecei a fazer rap — isso é certo. Sempre quis ter uma palavra e, quando era mais novo, ficava ao pé dos mais velhos e eles diziam-me cenas bué interessantes. E eu pensava: “Também gostaria de ser assim como eles, porque eles estão a abrir a minha mente”. Fui em busca de muita coisa que os mais velhos passavam, e eles tentavam proteger-me de toda a maneira, para eu perceber o mundo como ele é. E é isso que eu tento fazer: tentar explicar às pessoas qual é a melhor maneira de sobreviver no mundo e serem felizes. A minha música é protecção, é um abraço, é para te sentires seguro. O mundo está cada vez mais maluco, nada está fácil, e eu gosto de fazer a minha música para te tentar dar um amigo que te faz pensar.

E essa música tem impacto mesmo em quem, como é o meu caso, não vem do mesmo contexto social. Hoje, quando escreves uma faixa, já tens noção de que ela tem um alcance para lá do bairro?

Sim, sim. Eu também sempre convivi com muita gente, e depois, quando fui para Inglaterra, ainda convivi com mais tipos de gente. E isso foi muito importante porque me abriu um bocado a mente. Eu faço a minha cena bué limitada para as pessoas que estão perto de mim, mas da mesma maneira tento criar uma cena mais aberta, seja pelo ritmo ou pela mensagem. Se calhar, nas minhas letras fecho-me mais porque, como estavas a dizer, é a minha missão, então tento focar-me mais nas minhas ideias. Eu sei que a minha cena é muito focada para a rua, mas no meio disso eu tento trazer uma visão mais ampla.

O complemento visual também ajuda bastante à transmissão da mensagem. Essa equipa que reuniste foi escolhida pela visão de cada membro, ou foste tu que lhes passaste a tua visão artística?

Os dois. Porque eu conheci-os, eles mostraram-me o que podiam fazer por mim e juntámo-nos — isso é a cena mais importante quando queres fazer um colectivo de pessoas que querem produzir cultura, arte, conteúdos: tem que haver uma mistura.

Uma troca?

Sim, uma troca de ideias — e conciliá-las. Porque eu tive de ouvir a ideia deles, também; não só a minha. E eu acho que a ideia deles vale tanto como a minha. Nada foi sempre “eu”, foi sempre “nós”. E, quando sai, estamos todos satisfeitos porque cada um libertou uma energia naquele produto. 

E ainda sobre essa componente visual, quem vê a tua música — e digo “ver” porque ela não se resume à parte sonora — encontra um lado documental preponderante. A ideia foi essa desde o início?

Sim, a gente começou a criar uma ideia do que podíamos fazer, sempre pensámos fazer uma coisa fora-da-caixa. Nunca normal — não sei explicar…

Com aquela máxima de que a realidade supera sempre a ficção.

Nunca perder a nossa realidade, porque isso, para mim, é uma das coisas mais importantes. Quem te vê de fora pode julgar-te de várias maneiras: há bué gente que não acredita que um gajo tem um trabalho. Se calhar pensam que ando a fazer vida de artista, mas sou uma pessoa normal. Acho que é importante o people conhecer-te como artista e como pessoa — e tu nunca seres uma pessoa diferente. Como artista sou o Real GUNS, como pessoa sou o Santiago, que é uma pessoa normal, tem um filho, uma esposa, uma casa, contas para pagar… O Will Smith e o Brad Pitt podem ser várias personagens, eu não [risos]. Quando as pessoas me conhecem, o Real GUNS tem de ser o Ovilton. Acho que isso é uma desilusão para muita gente que tem afecto pelos artistas e depois, quando os conhecem, não são como eles pensavam que eram.

É, também, por aí que passa o “drill consciente” que cantas? Como é que criaste essa identidade paralela ao drill mais comum? Principalmente no Reino Unido, onde ainda estiveste alguns anos.

Isso, por acaso, é muito interessante porque eu curto bué do drill de Inglaterra, mesmo sabendo que é super violento — gosto da estética. Mas claro que eu não me posso comparar com eles, não tenho o mesmo estilo de vida deles. E tu nunca te podes iludir: a música é música, a tua vida real é a tua vida real. E muita gente se perde aí, porque as pessoas curtem de ouvir e tentam fazer o mesmo. Não é por aí. Eu fiz a minha cena mais no drill porque, como te estava a dizer, eu curto da estética. Mas achei que devia trazer uma cena mais minha. Eu sempre fiz rap consciente. Tu, quando és criador, absorves as cenas para criares a tua própria. A minha ideia não é ser fotocópia, é criar identidade. Por isso, aprendi a fazer, mas fiz da minha maneira.



E o que pensas da responsabilização do drill sobre o crescimento da criminalidade organizada, que tem vindo a ser feita nos media?

Eu acho que é o rap em si…

Que continua a ser visto dessa forma?

O rap em si já é assim uma coisa um bocado posta de parte. Toda a gente sabe que as pessoas no rap falam muito de criminalidade. A indústria tentou mudar muito o rap, tentou trazer outros temas, mas, para te ser sincero, eu também me identifico com esse drill mais violento porque, apesar de não o fazer, eu também já vivi isso. O verdadeiro rap é criminalidade, não dá para fugir. Acho que um rapper não precisa de se focar na criminalidade, mas o rap é rua. E mesmo que ele não queira falar daquilo, vai ter que falar. É inevitável um rapper falar de certas cenas porque, se ele está a passar a mensagem da rua, vai ter de tocar em certos pontos — porque a rua não é um mar de rosas; a rua é rua. Há vários contextos ali dentro, mas o rap nunca vai deixar de ser rua, criminalidade, violência, polícia, violência policial, assaltos, balas, pistolas, drogas, essas coisas todas. E relatam-se muitas coisas que as pessoas não percebem porque não estão ali. Não é por falar que tu fazes crime, é saberes que na rua há criminalidade. Tu não podes fugir da realidade, e acho que o rap em si não devia ser lavado — o Chullage já dizia isso, que o rap ia ser um bocado lavado. Eu cresci a ouvir Mobb Deep, Nas, Tupac, Notorious B.I.G., Busta Rhymes, Ice Cube, Snoop Dogg, Eazy-E, e esses gajos só falam de crime — mas eles falam de vários sentidos, e tu como pessoa, chegado à tua idade, é que tens de perceber o que é certo ou errado.

Mas por uns pagam todos.

Por uns pagam todos, isso é verdade. Acho que o rap underground é bué desvalorizado porque traz essa bagagem do crime. Mas tens o exemplo do Halloween, que é super underground e sempre falou da rua. As pessoas têm que entender que, quando falas daquilo e és um rapper, é porque sabes o que é que aquilo é, mas não quer dizer que sejas uma má pessoa. É aí que têm de te conhecer para saberem que esta é mensagem que mandas para a rua, onde cresceste e de onde não podes fugir. Se eu crescesse nas Caraíbas e não vivesse nada daquilo que eu faço agora, eu ia estar a ser uma pessoa falsa comigo. Tu vês o Kendrick Lamar, ele fala dessas cenas. Ele não diz que está a fazer, ele diz que vê — ele sabe. Ou, se calhar, ele já fez, mas ele tem de falar sobre isso porque ele tem a cultura da rua. Se tu fizeres um kizomba, não falas de armas — falas de amor, porque é a cultura da música de amor, de encantar as mulheres, de dançar. O r&b, também. O sentimento é diferente. 

Falando agora do teu novo álbum, porquê o [Edgar] Davids?

Sempre foi um jogador com quem me identifiquei, mesmo pela maneira de ele ser, diferente de todos os jogadores. Era um jogador icónico. E sempre curti, também, da cultura da Holanda, com bué pessoas vindas ali das ilhas, do Suriname…

Como foi o caso do Davids.

… e aquela cena da rasta e de ouvir reggae e todo aquele estilo. Influenciei-me no Davids pela ideia que ele transmitia no campo: ele era um gajo único — não havia ninguém parecido com o Davids, mesmo na maneira de jogar, e ele conseguiu mostrar a sua identidade. E a cena do DAVIDS é eu mostrar que sou um rapper que criei a minha linha — não é que sou o melhor ou o pior, mas se quiseres ouvir o Real GUNS, vais ter de ouvir o Real GUNS; se quiseres ver o Davids a jogar, vai ter de ser o Davids: aquele gajo de rasta, óculos; é um trinco, mas tem técnica — e corre bué e não se cansa. E eu também sou um rapper diferente. Para encontrares rap crioulo da minha maneira, vai ser muito difícil encontrares um gajo parecido comigo. 

Sendo o teu segundo álbum de estúdio, qual foi a abordagem que procuraste trazer para este trabalho?

Foi explorar mais um bocado o que não faço muito. Porque o Escrevo Com Sangue é uma cena bué minha — é aquilo que eu sempre quis fazer e não estive com muita gente em estúdio. No DAVIDS eu já me juntei no estúdio com mais pessoas — com mais producers, amigos, rappers… porque eu queria absorver mais as ideias dos outros, e não fazer uma cena outra vez “eu”. Por isso é que neste tenho participações de rappers.

Demorou muito tempo entre um e outro? Quando é que o DAVIDS começou a ser feito?

Depois de acabar o Escrevo Com Sangue. Depois, supostamente, era para preparar o Escrevo Com Sangue 2, mas dei uma pausa para tentar criar cenas novas. Então, tive uma temporada para conhecer producers, rappers…

Até para desenjoar da mesma linha.

Exacto, mais isso. Até porque eu também sempre quis fazer um projecto mais drill. Porque, se vires bem, o Escrevo Com Sangue não é assim tão drill. 

Tu és daqueles artistas que criam muito, e só depois é que fazem uma selecção?

Ya, pergunta ao gajo [aponta para Stenpie], eu tenho bués sons gravados [risos]. 

Tudo na gaveta.

Ya, às vezes um gajo vai gravar um som e pergunta: “O que é que eu ‘tou aqui a fazer?” [risos] O DAVIDS era para ter só quatro faixas, mas depois achámos que podia ser uma coisa mais…

Ambiciosa?

Sim, ambiciosa. 

Com o Escrevo Com Sangue ainda conseguiste fazer algumas datas — como foi o caso do Festival Iminente, por exemplo. Este novo álbum vai servir, também, para voltares à estrada?

A ideia é essa, se Deus quiser. Quanto mais longe, melhor.


https://open.spotify.com/intl-pt/album/36MqYkY4lJy9EPDxbNnIQq?si=juyjdtYzSHGplLa78cgxRg

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