Foi caso para dizer “finalmente”. Dois EPs e um álbum de estreia depois, a cidade de Lisboa recebeu Raquel Martins pela primeira vez num concerto em nome próprio. Motivo suficientemente grande para sair de casa e enfrentar o frio de uma noite de quinta-feira (20 de Novembro) e ir em direcção ao Lux Frágil, essa instituição máxima do clubbing em Portugal que serve também de montra para muitos e interessantes concertos de forma regular.
À chegada, salta desde logo à vista o vasto arsenal musical disposto de forma peculiar em cima de uma mesa coberta com uma toalha de cozinha. Percebe-se a ideia imediatamente: mais do que um concerto, esta ía ser uma oportunidade para ver e ouvir a artista portuense, há vários anos radicada em Londres, num registo íntimo e próximo daquele que tem em sua casa, que é simultaneamente o habitual laboratório para a formulação das suas canções. É, por norma, destes ambientes que nascem as melhores criações artísticas, longe do glamour dos estúdios apetrechados, em processos mais caseiros e mundanos que permitem passar para os temas o que os autores realmente sentem no preciso momento em que as ideias nascem, dada a facilidade com que, em casa, um músico pode rapidamente passar da cama para a secretária, de uma sessão de Netflix and chill para uma nova instância no Ableton Live ou Logic Pro, ou simplesmente gravar uma demo em voice memo enquanto tem um refogado ao lume.
“Talvez o problema não seja o mundo. Talvez o problema seja o facto de eu pensar de mais,” deixa escapar Raquel Martins a meio desta que foi a primeira — e, para já, a única — apresentação ao vivo em Portugal do álbum de estreia LONDON, WHEN ARE U GONNA FEEL LIKE HOME?, editado há um par de meses. É dessa proximidade entre o seu turbilhão de ideias e as suas ferramentas de trabalho que se fazem os temas que tem vindo a editar desde que se deu a conhecer ao mundo com o single “Real” em 2020, permitindo fazer brotar nas suas músicas todos aqueles sentimentos que lhe vão surgindo à flor da pele. É um acto de criação com muito poucos filtros e que recusa quaisquer purpurinas ou fogos de artifício sonoros para mascarar as reais intenções dos versos que também escreve. Filtragem essa que se tornou ainda mais escassa nesta sua estreia no formato de LP, que parece uma colecção de gravações em bruto, sem aquela preocupação de tornar as faixas “redondinhas” como nos primeiros dois EPs — não por desleixo, mas sim como forma de conseguir que elas sejam ainda mais fieis a esse tal caos que lhe habita o pensamento de forma recorrente.
Ainda assim, LONDON, WHEN ARE U GONNA FEEL LIKE HOME? não chega a ser uma volta de 180 graus face ao que vinha de antes. Apesar da sonoridade mais crua e bagunçada, tem sempre aquele abraço reconfortante dos ritmos e harmonias que aprendeu ao estudar os grandes mestres da música brasileira, uma manta quente que nos aconchega por entre a frieza emanada pelas camadas glitch com que satura cada canção, pelos laivos indie rock com que pauta os momentos mais catárticos da narrativa ou pelos poemas que contam histórias sobre a urgência do escapismo, a inquietação inerente à sensação de não pertença em relação ao sítio onde está e àquele de onde veio, ou a afirmação da sua própria identidade mesmo quando esta vai contra a opinião alheia.
Em palco, esta intrincada teia de ideias musicais resolve-se apenas a três. E são três que quase valem por seis: Raquel Martins segura os temas com voz e guitarra acústica, espinhas dorsais do seu processo criativo, e dispara samples a partir de uma Roland SP-404; Christos Stylianides dá profundidade adicional às canções com hipnóticos apontamentos de trompete, complementa a vertente rítmica com baixo eléctrico e ainda adiciona efeitos com recurso a alguma electrónica; Tomás Parada, português que Raquel confessa ter sido a primeira pessoa que conheceu após a sua chegada à capital britânica, foi o baterista de serviço, acompanhando na perfeição — tanto em percussão real como na electrónica — as exigências rítmicas de cada momento da música — dos grooves mais familiares às batidas mais selváticas que permeiam as alturas de maior mutação e experimentalismo sónico.
LONDON, WHEN ARE U GONNA FEEL LIKE HOME? foi a principal coordenada na qual o concerto se manteve ancorado, mas não impediu que a embarcação fizesse alguns desvios até Empty Flower de 2023 — “Mountains” e “Fragile Eyes” foram os temas invocados desse segundo EP, aqui reimaginados já no contexto sonoro do álbum de estreia para não destoarem desta nova fase em que a sua arte se encontra. Dessa sua mais recente mostra de canções, sobressaíram “LITTLE BOY” e “IF I GAVE YOU MY DREAM”, ambas exemplos perfeitos desse sabor agridoce que a cantautora portuense alcançou nesta renovada versão de si mesma — com o açúcar do jazz e da MPB a contrabalançar o acre dos devaneios electrónicos.
Não deixa de ser estranho pensarmos como uma criadora tão prendada não está neste momento a dar a volta ao mundo com o seu próprio repertório, mas sim a acompanhar outros artistas nas suas respectivas digressões. Loyle Carner é o mais recente sortudo a poder contar com os talentos de Raquel Martins nas suas fileiras e é precisamente nas folgas da tour do MC inglês que a portuguesa vai encontrando espaço aqui e ali para se apresentar em nome próprio. Foi, por isso, uma sorte imensa apanhámo-la por Lisboa, em vias de partir para a Austrália e para os Estados Unidos da América na senda da sua labuta. Se Martins já faz magia tão avançada com tão poucos recursos e tempo disponível, só podemos desejar que as temporadas vindouras lhe dêem as oportunidades e recursos necessários para que se possa atirar aos palcos com o seu próprio projecto por mais vezes e com uma banda mais alargada. Já causa arrepios só de pensar em tamanha possibilidade.



