Raquel Martins é um caso de estudo: rumou a Londres para se encontrar, integrou-se no turbilhão criativo local, tocou com artistas de renome como Amaarae, Biig Piig, Rina Sawayama, Mabel, Poppy Ajudha ou Loyle Carner, impressionou quem teve que impressionar, mas isso, claramente, não lhe bastou. O seu processo de construção de uma identidade autoral tem sido muito interessante de acompanhar. No EP Little Flower, de 2023, deixou claro que na sua voz e na sua guitarra se cruzava um invulgar talento para conjugar ideias musicais sérias e uma desarmante honestidade emocional com as canções a resolverem-se como retratos íntimos e exercícios terapêuticos.
Agora, mostra-nos LONDON, WHEN ARE U GONNA FEEL LIKE HOME?, um estudo de auto-observação que documenta musicalmente essa busca por um lugar no mundo através de canções com a veia experimental mais aberta. Numa ligação Zoom para Londres, Raquel conversa francamente sobre os seus processos criativos, desata (um bocadinho) alguns dos nós do álbum e levanta o véu sobre o que quer fazer em palco com este material.
Na última vez que nos encontrámos, vieste tocar ao Novembro Jazz — está praticamente a fazer dois anos. Faz-me, por favor, o “filme” do que é que aconteceu desde essa altura até este momento — os pontos altos, digamos assim.
Eu acho que gravei o meu disco em Dezembro desse ano… Não! Foi em 2024. A partir desse concerto, eu acho que parei de tocar. Eu estava no meio de digressões com outros artistas e acho que parei. Foi quando decidi: “Não, vou fazer este álbum”. Eu gostava de ter uma resposta mais longa, mas acho que foi só mesmo isso que aconteceu. O processo de produção e de escrita foi tão intenso, porque também estava a passar por muitas coisas, vinha das tours, estava a sentir uma desconexão muito grande com a cidade… Então acho que isso foi a base para começar a escrever o álbum. Foi tipo: “Ok, Londres não está nada seguro e, ao mesmo tempo, Portugal também não.” Naquela altura, perdeu-se um bocadinho aquela coisa de “vem para casa”, porque os meus amigos já estavam todos fora. Por momentos, foi um bocadinho assustador para mim. E mais o crash das tours todas… As tournées são óptimas, mas uma pessoa depois não consegue manter muitas amizades, as pessoas acham que tu estás sempre fora. Essa desconexão que aconteceu nesses últimos dois anos, e que foi a nível pessoal… Este disco foi como um motor, foi tipo o espaço seguro para ver essas coisas, porque eu não estava a perceber bem o que é que estava a passar. Era tipo: “Hoje quero viver ao pé do mar.” Ou: “Londres não está confortável. O que é que as pessoas fazem para se divertir? Vão para os copos? Tomam drogas?” Eu não faço nem percebo nada disso, nem sequer curto sair à noite. Até que fiz uma música sobre isso, que é a “NINGUÉM”. Ou seja, estava a acompanhar estes passinhos todos e estava a perceber… Porque o meu problema é que eu estava a idealizar muito as coisas. O problema das coisas todas é sempre o que nós achamos que elas devem ser. Já alguém disse isto: o que causa a infelicidade é o acharmos que as coisas não estão a correr como deviam. Porque se uma pessoa aceitar… Eu estava a sentir muito aquele lado negativo da idealização. “Eu achava que tinha sentido isto desta maneira e afinal não estou bem aqui.” Fiquei super interessada nesse processo. Então foquei-me completamente só em escrever o disco, depois fui gravar, que foi todo um processo… E depois o trazer as gravações todas para casa, editar tudo, manipular os sons todos… E este ano tive de andar a desconstruir essa idealização do primeiro álbum e isso tudo. É interessante.
São processos muito diferentes, o da escrita e depois da produção? Ouvindo o teu disco, eu fico na dúvida se não são coisas que estão a acontecer em simultâneo. Registas muita coisa na fase escrita que já fica definitiva? Como é que tu trabalhas nesse nível?
É muito isso. Para mim, a produção e a escrita acontecem ao mesmo tempo. Aliás, houve muita experimentação neste álbum, principalmente até com processamentos de voz e isso. Tens até a intro do álbum, lembro-me perfeitamente que estava no meu quarto e pus a minha voz por um processamento todo estranho. Aquelas vozes da introdução, era isso que me estava a dar aquele spark. De repente, a minha voz parece uma coisa de percussão e eu quis experimentar isso. Acho que a nível vocal me senti super, super livre para experimentar, mas o meu processo é sempre… Ou seja, a produção guia completamente as coisas. Foi giro, porque este disco não foi escrito tipo verso-refrão-verso, foi super emotivo. Houve tensão, libertação, emoção. Aliás, no Logic, o programa que eu uso, as janelinhas de arranjo estão meio que a listar a emoção que eu quero sentir. Acho que fui um bocadinho por aquela escola mais do Frank Ocean, foi super instintivo. Era só isso que interessava. Não era a pensar em nada, não era a pensar que devia repetir uma certa secção. Eu só ia repetir uma secção se tivesse sido uma coisa que não ficou bem resolvida da primeira vez que eu a expressei e, se calhar, tivesse arranjado um ponto-de-vista diferente. Acho que a produção foi sempre uma base para filtrar as coisas. Parece claustrofóbico. Parece que uma pessoa está dentro da sua cabeça. Este disco foi muito sobre como comunicar a emoção, basicamente.
És uma compositora organizada, no sentido em que começas num tema e só passas para o seguinte quando esse tema está fechado? Ou és capaz de estar a trabalhar em várias canções ao mesmo tempo?
Este disco foi giro porque estava a trabalhar em quase todas as canções ao mesmo tempo. E sempre que eu, na vida pessoal, recolhia mais uma informaçãozinha que me era útil àquele tópico, era tipo: “Ok, já sei o que é que vai ser esta bridge.” Foi muito giro. Como eu estava a passar por isto a nível pessoal, parece que cada música discutia um bocadinho deste problema grande que eu estava a sentir. Se eu estava a falar da minha relação com Portugal, ou se eu estava a falar da minha relação com amigos de Portugal… Depois reparava: “Ah, não é esse aspecto que me incomoda. Ok, é isto.” E depois perceber: “Afinal eu sinto raiva em relação a isto, portanto é raiva que vamos comunicar.”
O programa, digamos assim, poético e emocional do teu disco fica logo muito revelado no título, não é? Já tens uma resposta para esta pergunta ou não?
Acho que a minha conclusão, que também é muito a última faixa do álbum, é que uma “não resposta” também é uma resposta. Se calhar, essa era a resposta que eu estava a precisar. Eu às vezes sou muito: “Vou explorar tudo deste tópico.” Assim quase de uma forma um bocado obsessiva. Mas temos de deixar a vida seguir o seu rumo, não é? “Casa” pode ser tanta coisa… A grande lição que eu tirei é que nós precisamos muito de pessoas e acho que qualquer uma dessas grandes perguntas da vida não nos inquieta tanto se tivermos pessoas à nossa volta e estivermos a partilhar. Se calhar eu estava mais isolada. A conexão humana é a coisa mais importante que nós temos. E a conexão pode ser com uma pessoa, pode ser com a nossa guitarra, pode ser com a nossa t-shirt preferida. Não é muito sobre o que é a conexão, mas a nossa relação com as coisas. E a cena mais fixe de fazer música é que uma pessoa escreve sobre uma coisa e agora já me estou um bocadinho a borrifar para esse tópico, parece que ficou arrumadinho.
É interessante a tradução da palavra “home” para português. Uma delas é “casa”, e nós até usamos aquela expressão “sinto-me em casa”, mas isso não quer dizer necessariamente que estamos a falar de um edifício de quatro paredes com um telhado em cima. “Casa” pode ser muitas coisas e os nossos amigos podem de facto ser a nossa casa, não é? Este é um disco que tu trabalhaste com os teus amigos?
Olha, o processo foi super solitário. Tive músicos que são muito meus amigos a tocar. Acho que tu até entrevistaste a Jas Kayser, não é?
Sim, sim.
Ela é uma das minhas melhores amigas, então tinha de estar lá. Também conheceste o Hugo Piper… Ou seja, os meus amigos participaram, mas não foi uma coisa assim muito… Teve uma pessoa muito fixe que me ajudou muito no disco, chama-se Harvey Grant, que trabalha muito com o Loyle Carner, com o Puma Blue, com a Rosie Lowe… Ele foi a última pessoa a fazer parte do processo e veio-me adicionar um bocadinho de coisas mais de síntese e também de produção adicional. Ele definiu muito a estética. Mas acho que foi um disco que foi criado mais aqui, no meu quarto.
E os teus amigos não te questionam quando tu manifestas esta dúvida ou esta incerteza? LONDON, WHEN ARE U GONNA FEEL LIKE HOME? Não há ninguém que te questione: “A nossa amizade não significa nada? Nós não somos o teu sistema de suporte?” Como é que as pessoas que te rodeiam foram reagindo ao disco à medida que lhes foste mostrando o material?
É giro, porque eu acho que muita, muita, muita gente se sente assim. Se não é mesmo quase toda a gente. Até eu fiquei super surpreendida. Isto foi um disco que eu só mostrei às pessoas quando já estava feito. Foi uma coisa… Não tive muito input pelo caminho e fiquei muito surpreendida quando, se calhar, o meu amigo que se conectou mais é uma pessoa efectivamente de Londres e que esteve a fazer tour durante muito tempo e que depois voltou a Londres e Londres já não sabia a casa. E ele nasceu aqui. Esta coisa das tours, de uma pessoa ficar super deslocada… Foi super reparador para mim perceber que muita gente se sente assim. Lembro-me de, nos concertos em cidades grandes, as pessoas virem falar depois comigo e os processos serem super parecidos, que as pessoas em Berlim, por exemplo, sentem exactamente a mesma coisa. Ajuda-me imenso saber que não sou a única a sentir-me assim. Eu acho é que, na altura, estava efectivamente mais rodeada de pessoas britânicas, então acho que me sentia um bocadinho mais de fora com este sentimento. Mas a questão de partilhar, eu acho que vai ser a parte mais fixe do álbum, que é conexão entre as pessoas, não é? Eu acho que a coisa mais fixe da música é nós partilharmos mesmo, honestamente, as nossas coisinhas todas lá de dentro.
Esse sentido de não pertença será uma questão mais do que geográfica ou cultural até? Será uma questão civilizacional, geracional?
Hum, eu acho que é…
Porque a tua geração já nasceu com redes sociais, já nasceu com referências que são globais. Então eu imagino — não sei, porque não sou dessa geração e não sinto isso, mas a minha filha mais ou menos que é — que sejam perguntas que essas pessoas se colocam. “De onde é que nós somos afinal, se não temos uma referência mais forte, mais identitária?”
Sim. Na tua geração… Se calhar tu cresceste a achar que ias ficar em Portugal a vida inteira, não é?
Sim, sim.
Se calhar, nós não temos essa segurança. Ao crescer, para mim foi super óbvio ir para Londres. Isso nunca foi uma questão. Nem havia aquela coisa das pessoas dizerem: “Ah, que coragem ir para fora aos 17 anos.” Não foi coragem, foi o natural. “Queres fazer música? Tens de ir.” O futuro é um livro aberto, não tens essa segurança, e isso faz-te questionar onde é que queres ir. Depois tens essa coisa de que o sítio para onde tens de ir não é onde tu queres estar. É sempre uma pergunta tão aberta… Até eu sinto isso agora, porque não faço ideia onde é que vou estar, geograficamente, no futuro. Interrogo-me muito. Nem sei o que é que será sentir isso de “ a minha vida vai ser em Portugal” ou “a minha vida vai ser em Londres.” Não consigo imaginar. Eu pergunto muito isto a amigos meus, que até estão aí, em Lisboa, e eu não sei o que é que isso é. Por um lado, eu adoro esta maneira de viver, porque acho que uma pessoa fica super aberta ao mundo. De repente, apetece-me passar um tempo no Brasil, porque estou a adorar a música do Brasil, e vou, vivo lá uns tempos. Mas acho que é um bocadinho assustador uma pessoa não ter isso. Quando eu me mudei para Londres, não é que eu tenha rejeitado a cultura portuguesa, mas eu fui e… “Oh meu deus!” Tudo o que eu ouvia e que estava a acontecer aqui, fiquei super deslumbrada e depois caiu-me a ficha. Aí começou mais a busca do olhar para dentro. “Mas quem é que eu sou? Não, eu sou portuguesa.” Agora eu sinto-me muito mais portuguesa do que… Sei lá, eu acho que passei os primeiros cinco ou seis anos de Londres a viver londrina, até emocionalmente, a ficar muito mais “assim”. Depois não estava a resultar, não estava a encaixar. Eu sinto que, com este disco, noto muita diferença e que estou muito mais balançada. Sei lá, eu vim para aqui aos 17 anos, portanto há uma parte de mim, de adolescente, que é efectivamente inglesa. Há uma maneira de me expressar que tem isso, mas tudo o que está para trás é português. E eu acho que agora estou com as duas coisas muito mais niveladas, porque eu não sou igual a eles, mas também, se calhar, não sou 100% igual a uma pessoa portuguesa que tenha ficado em Portugal a vida toda. É ficar confortável com os meios termos.
Vamos falar da estética. O disco surpreende-me com esse lado mais glitchy, mais experimental. As canções parece que foram sendo esculpidas em diferentes camadas de pós-produção e, nesse sentido, tendo em conta o material anterior, eu penso que representa aqui uma grande mudança. Sentes essa mudança em relação ao que apresentaste antes?
Não sei. Eu sinto que descobri esta maneira de fazer música, que é um bocadinho diferente de antes. Sinto que é muito fiel à minha cabeça, super hiperactiva, com muitos estímulos, aberta a surpresas, novidades, elementos… Acho que encontrei uma maneira muito mais fiel de fazer música. Uma pessoa cresce, não é? E cresce muito à medida que vai fazendo mais música. Acho que foi uma coisa que foi, tipo: “Ok, isto é 100% eu.” Não consigo ter muito essa perspectiva do que dizes, porque acho que a música reflecte sempre onde é que nós estamos. Quando eu fiz os outros discos, até estava efectivamente numa fase um bocadinho mais estruturada. Depois tive uma coisa que me desestruturou e é normal que a música também assim o seja, não é? Acho que vai sempre ser fiel ao que nós estamos a sentir e eu tive uma mudança grande pessoal, portanto faz sentido isso.
Da última vez que conversámos, lembro-me de teres dito que te estava a interessar muito investigar a música brasileira. Onde é que ficam as tuas raízes ou referências jazz neste novo mapa?
O jazz, para mim, sempre foi mais uma mentalidade do que propriamente uma estética. De o ter estudado tanto, acho que é isso que retiro. O Milton Nascimento, por exemplo, acho que é o meu artista preferido de sempre. O que eu queria muito com este disco era encontrar o meu pocket no som, essas pecinhas todas. Eu acho que a música brasileira e o jazz estão presentes de muitas maneiras. Por exemplo, nós a gravar, até com a Jas e com o Hugo, foi muito do tipo: “Eu não quero um groove de bateria aqui. A bateria vai representar agressividade neste disco.” Disse à Jas para ser super free, mas o approach foi sempre muito jazzístico. Houve aquela questão da improvisação no gravar flauta, gravar trompetes, tudo muito livre. Depois eu trazia as coisas para o meu computador e reorganizava e processava. Eu acho que o jazz está e vai sempre estar na minha música, porque é esse o meu background, mas eu estava interessada em estética, em ter uma palete de sons e ter uma coisa que seja eu. Portanto é uma misturazinha. Eu acho que a influência do Brasil está presente de alguma maneira, até porque guitarra e voz são os elementos principais deste disco. Está tudo um bocadinho à volta.
Quantas vezes por semana é que ouves o Clube Da Esquina?
Sabes que, por acaso, o Clube Da Esquina não é o meu favorito. Eu adoro mesmo o Milton de ’76 e também estou a adorar o Minas. Acho que são os que eu gosto mais.
Com o disco a ser editado, já pensaste em como é que vais resolver isto nos palcos? Vais ter uma banda diferente para tocar pela Europa fora e outra em Portugal? Vais ter uma banda fixa? Como é que a coisa vai funcionar?
Pois, eu estou um bocadinho lixada com a parte do ao vivo, porque eu não pensei… Sabes que há pessoas que dizem: “Ah, fiz um disco a pensar em tocar ao vivo”. Isto foi o contrário. Tem camadas, camadas, camadas. Eu estou mais interessada em estar com a mesma banda sempre. Continua a ser o Tomás, que eu acho que conheces também. É um setup de trio, que sou eu, o Tomás e o Christos, que toca trompete. Estou interessada num approach um bocadinho mais electrónico, mas com cada pessoa a ter vários papéis ao mesmo tempo. Eu posso estar a tocar guitarra, se calhar keys, um sampler… Se calhar o trompetista vem muito da escola do Sam Wilkes e é incrível, adoro mesmo. Tem baixo também. Vamos dividir assim por papéis. Mas está-se a fixe explorar isso agora. Começámos os ensaios há pouco tempo.
E já há datas para tocar ao vivo?
Em Londres tem o lançamento agora dia 28, e Lisboa tem dia 20 de Novembro no Lux.