Se o rap nasceu para resistir e lutar, não há força da natureza que o extinga. Aqui o bicho só se manifesta nas rimas e batidas, e os nossos soldados não baixam canetas nem no pior dos cenários.
De semana em semana, há novas linhas por decifrar, novos sons por escutar, novas dicas (*) para encaixar. Seja em português ou em crioulo, do masculino ao feminino, desde as maiores estrelas nacionais aos mais anónimos rappers de sótão, do trap ao drill, há espaço para tudo o que nos faça abanar a cabeça, por dentro e por fora.
[The Real Dogs] “CYPHER FAMALICÃO”
Descentralização e formatos menos comuns são factores que cativam mais facilmente o concorrido clique. Nesse sentido, a descoberta do “CYPHER FAMALICÃO” foi acidental, mas feliz. E sobre o que aparenta ser um colectivo de rap formado a Norte, The Real Dogs viu-se representado por Fdji, Fat X, Thc, Pipes, Snack, Stonaka, Big D, Key, Pazzo e Anper em mais um sólido e sempre bem-vindo registo de boom bap nortenho.
[M.A.C.] “Não os deixes”
Nova investida dos M.A.C. a confirmar que “Carga Nisso” não foi ameaça. A longevidade é o verdadeiro sucesso do artista, e no caso desta Missão A Cumprir, TNT e Kulpado podem dá-la por cumprida — ao fim de mais de duas décadas continuam relevantes e a deixar marca naqueles que nunca os esqueceram. O juramento mantém-se: “Não os deixes”, que eles também não.
[MGDRV] “SÓ POR SER” ft. Kruss
Extraída do álbum Guelras, “SÓ POR SER” traz de novo à agenda semanal o disco que marcou o regresso dos MGDRV aos projectos, lançado ao mar na última época balnear. Kruss veio na mesma onda e o tema volta a dar à costa através de um videoclipe, com realização caseira, que deu a cor e textura que faltavam neste tema de viveiro.
[SCORP X ORATO] “MAIS LONGE”
Apesar da veia de punchliner reconhecida em Scorp, o rapper das Caldas da Rainha facilmente vai (ainda) “Mais Longe”. O tema produzido por Orato é mais uma love song, dentro dos moldes previsíveis neste tipo de canção, mas a abordagem de Scorp marca a diferença pelo ângulo escolhido (ou inevitável…) sobre situações tão semelhantes e simultaneamente distintas nas relações amorosas. Até o tom é outro — quase irreconhecível.
[E.se] “reflexos, surf e tantas outras coisas”
As ligações que E.se tem estabelecido continuam a surpreender, sobretudo se tivermos em conta que entrou no mundo da música há pouco mais de um ano. A determinação tem sido o combustível da sua evolução, e em tão pouco tempo já colaborou com Johnny Virtus (o seu companheiro mais próximo na produção), Wake Up Sleep, João Tamura, Trafulha, Queragura, Patel Rebelo, Chikolaev, entre outros. Agora conecta-se com o produtor AZAR AZAR (com Beiro e Filetes metidos ao barulho) para “reflexos, surf e tantas outras coisas”. E são essas “tantas outras coisas” que vestem a música deste artista em permanente desconstrução.
[Conjunto Corona] “Mãe birei Gandim”
“Sabes o que é que são os gunas, não sabes?”
Como um cão que não sabe que é cão, e que ao ver-se ao espelho não reconhece a própria figura, também o protagonista — melhor amigo do Beijas — do excerto do documentário E tudo o Guna levou, quando confrontado com a sua espécie, não sabe que é guna, acrescentando: “Eu sou uma pessoa normal, oblá”.
Essa espécie que, ao virar do século, marcou a noite nas zonas industriais do Porto, dominada por ritmos latinos igualmente industriais, parou no tempo, e a inspiração para G de Gandim — o próximo álbum do Conjunto Corona, a ser revelado na próxima sexta-feira — partiu não só dessa memória, mas também de exemplares contemporâneos, espalhados pelas ruas de Gaia e arredores.
Gandim, espécie da ordem primata, é a figura central do renascimento do Conjunto, a partir do habitual revivalismo do grupo, alimentado pelo arquivo audiovisual curado por David Bruno. Retratos dos primeiros anos do século XXI, essa época sui generis e, em muitos aspectos, surreal que merece nunca ser esquecida. Será que a diversificada fanbase do Conjunto Corona se vai misturar com a comunidade “gandina”?
[AZART] “I Know”
Era um segredo guardado há demasiado tempo. Quem teve a sorte de tropeçar nos poucos registos divulgados por AZART nos últimos anos certamente não há-de ter ficado com grandes reticências acerca do potencial que o rapper de Lisboa demonstrava ter na altura.
Entretanto a maior parte desses já escassos registos foi retirada do canal do cantor, ele que se juntou à Sony Music Portugal para um recomeço mais estruturado e ambicioso. E ambição é coisa que não lhe falta, muito menos pernas para andar no ringue do rap.
Agora sem falsas partidas, “I Know”, o primeiro avanço do seu álbum de estreia, é uma reapresentação, preparada para chegar a todos os cantos, deste talentoso e versátil artista. Depois de algumas espreitadelas concedidas em showcases promovidos pela Tranquilow, os restantes segredos ainda estão por revelar; porém, o primeiro single oficial chegou para confirmar os rumores que até então corriam de boca em boca — e o complemento visual da Culture Burger elevou esta estreia a um patamar esmerado.
Tudo o que AZART almeja e promete em “I Know” está a uns quantos golpes de distância. Preparem-se, que o knockout está para breve. E aos que cá voltarem quando isso acontecer deixo a confirmação da previsão: I knew.
(*O título da nossa coluna, Dicas da Semana, inspira-se num clássico de Biru)