Se o rap nasceu para resistir e lutar, não há força da natureza que o extinga. Aqui o bicho só se manifesta nas rimas e batidas, e os nossos soldados não baixam canetas nem no pior dos cenários.
De semana em semana, há novas linhas por decifrar, novos sons por escutar, novas dicas (*) para encaixar. Seja em português ou em crioulo, do masculino ao feminino, desde as maiores estrelas nacionais aos mais anónimos rappers de sótão, do trap ao drill, há espaço para tudo o que nos faça abanar a cabeça, por dentro e por fora.
[Bambino] “Rap de Gente Grande”
Um vídeo perdido no tempo foi reencontrado e serviu de alavanca para um novo tema de Bambino. “Rap de Gente Grande” é uma faixa escrita, produzida e interpretada pelo histórico rapper e produtor da Margem Sul que se distingue pelos seus flows e estilo inconfundíveis; um registo que poderia cair na excessiva americanização, mas que em Bambino é do mais natural que se pode pedir (e exigir) no rap. Desta forma, o MC que “não sabe nadar” apresentou o single do seu próximo projecto, e mostrou-se numa forma imaculada, sobretudo no pujante refrão – daqueles que só Bambino sabe fazer. Por isso, já sabem: “Se o beat justifica, ouve e passa a dica…” da semana.
[BISPO X D’AY] “Certezas”
Se há “Certezas” que podemos ter nesta vida imprevisível é que, enquanto cá estivermos, há todos os anos um dia em que contamos as nossas próprias voltas ao Sol. Para Bispo esse dia foi (e é, pois claro) 12 de Abril. O rapper de Mem Martins aproveitou a data especial para revelar mais um avanço de Mudanças, o EP produzido por D’ay que estará para breve. Neste single, Pedro, ao completar 29 primaveras, reflecte sobre a passagem do tempo, sozinho, entre as suas certezas e incertezas. E isso também é “rap de gente grande”.
[Ícaro SDR] “Ruínas Romanas”
“Ruínas Romanas” é o ponto de partida para Volta ao Sol, o EP de Ícaro SDR – um rapper do “underground da Lisa” – que será editado no decorrer deste ano. O instrumental de Lawless fez Ícaro “dar a volta à alma à procura das palavras certas” numa faixa com marca da Sharp Records.
“Dizem que eu ‘tou muito cru
Q’a minha escrita não reluz”
Quem se atreve? Não é isso que transparece…
[João Pestana] “Grilo da Malvadez”
João Pestana plantou nos nossos cérebros um “Grilo da Malvadez” com os seus versos cheios de traumas e cicatrizes de quem “chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. E nas batidas também tivemos direito a poesia por Uno, reconhecido poeta nas rimas.
[João Tamura x Beiro] “Qvimera” (com Keso)
Ossos de Prata, o disco de João Tamura e Beiro editado pela Paga-lhe O Quarto Records, foi desenterrado no passado dia 15, trazendo com ele alguns tesouros que há muito se esperavam encontrar. “Qvimera” é um deles por juntar Tamura a Keso, dois poetas que encontram no rap a via principal da extracção de versos – do “externo” para o papel; do papel para o microfone. No confronto de quimeras, encabeçadas por Tamura e KSXaval nas rimas, e por Beiro e Holly nas batidas, a maior delas ficou por desvendar: quem cravou “chagas de amor” nos “ossos de prata”? Nunca saberemos – “Desarrumá-las incomoda”…
[Mura] “A Verdade Nunca Foge” ft Visco
Mura mostrou mais um tema do EP v2.0, um projecto que antecede o seu álbum de estreia, e contou novamente com a produção de saraiva, que deu nova roupagem à célebre canção de Little Ann, “Deep Shadows”. Aos versos juntou-se ainda Visco para dar o seu ponto de vista e reforçar que neste rap genuíno “A Verdade Nunca Foge”.
[b a s k i a t] “penitência”
Conhecido por misturar português com inglês na hora de rimar, e por dar ares dos incomparáveis Cult Of The Damned, b a s k i a t voltou a aniquilar um beat, desta vez de Madkutz, sem “penitência” – o título desta faixa pertencente ao projecto 50/50, cuja mistura e masterização foi levada a cabo pelo já mencionado Beiro. E as perspectivas são tudo menos comedidas:
“Matar o game
Eu ’tou cá p’ra dizimá-lo”
[Fizz Escobarra] “Digo Eu Faço”
À semelhança da faixa acima destacada, também “Digo eu Faço” começa com um sample de voz que fala sobre as vicissitudes da vida nas ruas, e, quando os adlibs introduzem o instrumental, por momentos, fica a sensação de que A$AP Rocky vai entrar de súbito para atirar uns quantos versos ao estilo do drill de “Dior”, a concretizar a frase “New York like I’m Pop Smoke” (retirada da faixa “MAZZA”, com slowthai). Mas rapidamente voltamos à cena londrina com Fizz Escobarra no domínio das batidas mais cobiçadas por esta altura. E no que ao rap diz respeito, a certeza que fica é que Fizz nunca desilude – ele diz e faz. Mesmo.
[Mirai x Domi] “Toque”
Ter o “Toque” não está ao alcance de qualquer artista. O talento é necessário, o trabalho é indispensável, mas o “Toque” é um elemento extra que não tem explicação, nem é propriamente definível. Trabalhar todos podem, talento muitos têm, mas o “Toque” é condição rara no interior de um artista, e a sua manifestação é subtil, como o ar que respiramos – está lá, mas não se vê.
No entanto, o “Toque”, ainda que discreto, não resiste a dar sinais da sua presença pelos meios misteriosos sob os quais se revela. E para passar do abstracto ao concreto (coisa que o “Toque” nunca se permite), Mirai (não confundir com a banda checa) e Domi uniram os seus “toques” num tema a rebentar de banger pelas costuras. A eles juntaram-se ainda dois outros iluminados, Lazuli na produção e Cheezy Ramalho na realização; e com os esforços unidos, os “toques” invisíveis de cada um materializaram-se num só “Toque”, patente e inequívoco. Não acreditam em “toques”? Ora ponham o “Toque” a tocar e depois dêem-me um toque.
[GSON] “3,14” Ft. SLOW J & SAM THE KID
Se “3,14” é uma aproximação de um número cujas casas decimais tendem para o infinito, o tema que junta, ineditamente, Sam The Kid a Gson e Slow J (com produção de Charlie Beats) é também ele uma aproximação de três legados que tendem a ficar “para sempre”.
No dia do seu aniversário, Gerson convidou João, Samuel e Tiago para um encontro surreal e inesperado – para nós –, que resultou numa concretização que supera a própria ficção de algo já por si perfeito no nosso imaginário. O incrivelmente talentoso membro dos galácticos Wet Bed Gang deu o mote para uma certeza que sobre ele é promessa escrita e assegurada, mas ainda em vias de desenvolvimento pleno, e que para os seus parceiros tem tanto de passado como de presente e, seguramente, de futuro. Para sempre é muito tempo? Se estivermos na companhia certa, não. E com estes três não há que ter pressa para decifrar cada palavra que cantam – sem “pis”.
(*O título da nossa coluna, Dicas da Semana, inspira-se num clássico de Biru)