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Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 12/05/2021

Sem rumo mas com consciência.

Rafael Toral: “A natureza do Space Quartet é estar sempre a alterar-se”

Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 12/05/2021

“É o melhor trabalho do quarteto até agora”. É desta forma que Rafael Toral, um dos homens mais livres a fazer música em Portugal, apresenta Directions, o seu mais recente álbum editado pela Clean Feed (e que já recebeu atenção na coluna Notas Azuis). Estas “direcções” são apenas indicações “mínimas” dadas por um director à sua banda — composta ainda por Hugo Antunes, Nuno Morão e Nuno Torres, músicos que, explica-nos o homem do leme, têm larga experiência de improvisação, mas que sabem igualmente ser generosos ouvintes. E é por aí que talvez se encontre a principal razão para este trabalho merecer essa distinta classificação por parte do seu autor.

Mais embrenhado na serra do que nunca, mas prestes a sair para actuar no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém a 14 de Maio e no gnration, em Braga, a 22 de Maio, Rafael Toral tirou algum do seu precioso tempo para responder a 11 perguntas do Rimas e Batidas, mostrando, mais uma vez, que não só é um vanguardista na forma de criar mas também na forma de pensar. Essa é aliás uma característica distintiva do seu posicionamento artístico: o profícuo músico não tem apenas uma carreira longa que se espraia por dezenas de edições, tem igualmente um discurso ponderado que deixa entrever que tudo o que faz resulta de muita reflexão e que não há passos dados em falso no seu percurso.

Em vésperas destas duas importantes apresentações, Toral, que nos últimos anos se tem notabilizado pela sua sui generis aproximação à electrónica, através de instrumentos que exploram interfaces pouco convencionais, levanta ainda o véu sobre a sua já declarada reaproximação à guitarra, o instrumento em que começou por se notabilizar. Tudo junto, há por aqui um claro mapa de ideias que permite que lhe sigamos as passadas de forma bem mais próxima. É aproveitar.



Rafael Toral, Hugo Antunes, Nuno Morão e Nuno Torres: podes começar por me falar da energia deste quarteto em concreto? Ao longo dos anos tocaste com muitas formações distintas, esta há-de, certamente, ter o seu próprio carácter. Podes descrevê-lo?

O que estes músicos têm em comum é uma grande fluência e domínio de vários códigos técnicos, chamemos-lhes assim. Todos são músicos de jazz muito competentes, e têm ou tiveram ligações ao rock, enquanto têm larga experiência de escuta em improvisação e em técnicas não-convencionais. Felizmente, cada um à sua maneira, têm uma personalidade ponderada e generosa, no sentido de que preferem favorecer a música do que fazer o que lhes apetece. A partir de alguns princípios de base, acabam por ir abrindo espaços novos que vão sendo integrados no som do quarteto. Acho que o núcleo dessa energia é o entusiasmo pela descoberta de espaços cada vez maiores de liberdade enquanto se constrói uma identidade sonora muito complexa mas coerente, dentro de uma ética e duma sono-filosofia peculiares.

Este material exposto em Directions tem assinatura colectiva, pelo que podemos assumir que foi composto espontaneamente. É esse o caso?

Não é bem. O Space Quartet é um conceito de forma, não é uma banda. Ou seja, pode existir com quaisquer outros músicos mas tem sempre uma identidade, estética, arquitectura e mecânica próprias. Normalmente faço um trabalho de direcção com os músicos, mas neste período — desde a entrada de Nuno Morão e Nuno Torres — decidi fazer uma direcção mínima, mais de forma global. Quis confiar na experiência de escuta que traziam, e não me enganei. Mas quando fui ponderar a assinatura da autoria destas gravações, que normalmente assumo, tornou-se evidente que os músicos deram tanto de si que a co-autoria lhes cabia por direito natural. O Under the Sun também é assim, tal como um terceiro disco gravado no mesmo período, o Freedom of Tomorrow que há-se sair mais tarde. No entanto, se esta versão “descontraída” deu resultados excelentes, também revelou fraquezas estruturais, que eu já tinha previsto e tive que assumir. O quarteto que vai dar agora estes concertos já traz uma preparação mais focada, está dotado de uma articulação mais completa e maior habilidade na gestão do arco do tempo.

Nas explorações improvisadas acredito que a noção de espaço tenha sido importante e sente-se isso na dinâmica de evolução dos temas, como cada um de vocês parece preocupado em ceder terreno à massa colectiva refreando o impulso individual, acomodando os restantes discursos. Houve pontos de partida previamente discutidos? Ou esta música resulta apenas do conhecimento mútuo entretanto construído e de um par de datas no estúdio?

“Explorações improvisadas” talvez não seja parte do vocabulário mais apto a descrever esta música, que se rege mais por uma lógica de composição e de consciência formal, a partir de técnicas e matérias próprias de cada músico. O que acontece — felizmente — é que as configurações geradas pela mecânica do quarteto por vezes dão em lugares tão estranhos que é o ouvinte que se encontra no papel de “explorador”, são terrenos desconcertantes e sem mapa. Mas é exacta essa observação, o uso de silêncio como parte integrante do discurso é um princípio fundamental. Não é tanto o ceder terreno aos outros, mas sim articular um discurso individual que integre o espaço no seu ADN, que não queira encher o espaço todo mas viva da respiração. E aí, a consequência é que o tecido se torna transparente, há espaço para perceber todas as camadas em profundidade. Ou seja, esse “ceder” ocorre como consequência de uma maneira intrínseca e pessoal de cada um lidar com o silêncio. Depois há certos modos de articulação de silêncios entre o saxofone e a electrónica, que são as vozes mais discursivas, e certas cumplicidades entre a bateria e o contrabaixo, que são deles e nas quais gosto de evitar interferir. Vamo-nos tornando cada vez mais próximos, mas, no tocar, o conhecimento mútuo não é um valor muito importante, porque temos todos a obrigação de não nos “pendurarmos” uns nos outros. Cada um pensa e age enquanto indivíduo e toma as suas decisões, que podem ser surpreendentes para os outros. 

E por falar em datas em estúdio: são listadas duas datas distintas. Sentiste alguma mudança digna de nota entre as sessões?

Houve algumas afinações feitas na segunda data que deram melhores resultados, só isso.

O Miles Davis impelia os músicos dele no período eléctrico mais exploratório a tocarem os espaços entre as notas, os silêncios. Partilhas algo desse espírito neste projecto, não?

Tocando instrumentos electrónicos desta maneira, nunca tive como referências Stockhausen, Tudor nem Subotnick, mas sim grandes artesãos do “espaço” como Bill Dixon ou Miles Davis, que é claramente um grande mestre do uso do silêncio inerente ao fraseado. Claro que sim, é uma visão que partilho inteiramente. Quando lemos uma palavra escrita numa folha de papel, quase sempre nos esquecemos que o que nos permite lê-la é a brancura do papel em redor do que está escrito. Com o som e o silêncio é quase exactamente a mesma coisa.

O Space Quartet lançou um álbum ao vivo o ano passado. Imagino que estas próximas actuações também possam ser gravadas. Qual é a diferença que sentes entre o palco e o estúdio no que a este projecto diz respeito: o espaço entre o palco e a audiência também representa um papel no som final?

A energia da sala, a luz, a acústica, o público, sim, tudo tem uma influência, embora eu creia que se faz sentir mais intensamente com menos pessoas em palco. Sei que quando toco a solo (com muito silêncio no discurso) essa energia está toda à minha volta, chega-me inteira e alta, é por vezes uma tensão enorme, sustentada todo o concerto. Talvez por isso o solo ao vivo seja tão exigente. Em geral parece-me que há um pouco mais de espontaneidade ao vivo, há mais acontecimentos surpreendentes, enquanto em estúdio conseguimos focar melhor e ter resultados mais controlados, mas a diferença é pouca. É como aquela pergunta de Cage, “o que é mais musical, um camião a passar por uma fábrica ou por uma escola de música?”. O Space Quartet é como um veículo que não se altera muito por se encontrar em sítios diferentes. Talvez porque a sua natureza é estar sempre a alterar-se.

Mencionas, quase a título de enquadramento conceptual ou talvez até espiritual, os diferentes tipos de espaço: o silêncio que devemos fazer quando outra pessoa fala, a distância que devemos manter para que outra pessoa possa passar, etc. Acreditas que neste tempo que vivemos agora esses espaços se voltaram a abrir por necessidade?

Hmmm… tenho dúvidas. Acho que neste tempo há muito mais ruído, tudo é menos real, há menos experiência real do mundo. Há mais alucinação colectiva, ignorância e grosseria, uma boa parte da civilização está a regredir. Embora haja metade do mundo que continua a avançar positivamente, das maneiras mais belas e tocantes. Mas duvido que seja por haver menos gente na rua que as pessoas entendem melhor o valor dessas dimensões do espaço, embora talvez isso tenha mesmo acontecido, com a experiência de ouvir o silêncio na cidade…

O quarteto seguirá para Braga depois da apresentação em Lisboa: sentes falta dessa vida de estrada, das datas sucessivas, dos esquemas mentais e criativos que se afinam quando há essa regularidade de trabalho?

Estou a gostar muito de não ter digressões e de ter muito tempo de estúdio. Estou a gostar de não ter que apanhar aviões às cinco da manhã, ou de passar dias inteiros de comboio com uma sandes. Também já não tenho a mesma energia de quando tinha menos 10 ou 20 anos. Sinto alguma falta sim, a magia máxima em que se toca as estrelas dá-se em palco, mas neste tempo preciso e prefiro estar sossegado a estudar e a trabalhar. Já nas últimas digressões saí daqui a custo, a pensar “que seca, lá vou eu aturar os aeroportos e fazer este esforço todo sozinho, estava aqui tão bem”. Mas depois de sair do aeroporto em Nova Iorque a adrenalina volta, claro — porém já não é a mesma coisa, e as cidades também mudaram muito. Enfim, tocar ao vivo é uma maravilha e sinto sempre no fim que valeu a pena, mas é muito menos divertido e romântico do que pode parecer. É um esforço enorme. Quando as condições dão algum conforto é muito menos difícil, como no caso destes dois concertos.

Já levas uns bons anos de exploração das possibilidades discursivas da tua electrónica muito específica. Já atingiste o pináculo dessas possibilidades ou continua a existir espaço para mais descobertas?

Oh, não, claro que não, isso é trabalho para uma vida! É o “santo graal” para mim — a capacidade de tomar sempre as melhores decisões. A decisão certa, no momento certo, pelas razões certas. Uma das capacidades que mais admiro é a de saber escolher como parar de tocar, entrando numa pausa longa, e depois escolher o ponto exacto, e o modo, para voltar a entrar. Um grande mestre nisso é o Evan Parker, ele faz isso com uma precisão impressionante. Tem mais 23 anos do que eu. Costumo pensar: “quando chegar à idade do Evan Parker, já devo conseguir tocar o silêncio um bocadinho melhor”.

Imagino que a tua vida no campo te dê todo o espaço que procuras: como é um dia típico lá na montanha?

Dá-me espaço para decidir o que fazer em cada dia, e normalmente uma grande parte do dia passa-se a responder ao que vai acontecendo ou ao que tem que acontecer. Posso ter que ir colocar uma estaca para amparar uma árvore que vergou demasiado com a tempestade da véspera, ou ir fixar telhas que voaram com a mesma, ou corrigir um curso de água porque desmoronou um muro ou porque os javalis o desviaram, ou limpar o mato com dois metros de altura, abater árvores queimadas pelo último incêndio que ainda estão de pé, cortar e rachar lenha, regar as árvores de fruto, etc… Não há muito tempo para contemplação, nem há um dia aborrecido. Aqui não se nota o confinamento, há sempre muito que fazer. Quando não estou a fazer isso, estou no estúdio a estudar ou a gravar. Neste momento, como estou a responder às tuas questões, até posso ouvir música.

Finalmente, como está a correr o teu reatamento com a guitarra?

Muito bem, estou ansioso por voltar a mergulhar nisso. Estou a usar métodos novos de trabalho, como estou a estudar harmonia tenho usado o sampler com o teclado, o que torna os processos muito mais maleáveis. Também estou a recuperar contacto com a sensibilidade que desenvolvi no passado com a guitarra, em parte porque sinto que neste tempo faz mesmo falta desacelerar um bom bocado. Curiosamente tive que me confrontar com paradigmas contraditórios, como por exemplo no Space Program tudo era gesto, não havia nada de mecânico ou automático, como loops, programação ou gravações pré-existentes. No trabalho recente com a guitarra tenho usado loops e outros métodos que pertencem a um paradigma diferente. O trabalho desta “terceira fase” é integrar esses paradigmas numa paisagem nova. Está a ser intenso e estou entusiasmado, estou a gravar três discos ao mesmo tempo.


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