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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 11/05/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #57: Especial Clean Feed

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 11/05/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Space Quartet] Directions”

Este espaço não é, alertam-nos as notas de lançamento, o lugar cósmico em que Sun Ra projectava a sua liberdade (embora, também se ressalva aí, o seu espírito também habite os recantos deste “lugar”), antes o da “valorização das pausas, interstícios, uma certa medida de expressão e narrativa, uma forma de criar transparências e, principalmente, um regresso a uma dimensão humana…”. O próprio Rafael Toral, criador e líder deste quarteto, explica: “Não interromper alguém que está a falar é oferecer espaço. Posicionar-se de lado e não em frente à porta é criar espaço. Evitar julgar demasiado rápido é deixar espaço. Precisamos de espaço mais do que nunca, agora. De recuar. Tudo o que acontece em espaço aberto acontece de forma mais positiva. Mais vulnerável e desejavelmente mais centrado”.

A música aqui incluída resulta de um par de sessões registadas em Outubro de 2019 e inícios de Março de 2020, portanto antes do confinamento pandémico, época em que paradoxalmente, fomos todos por um lado forçados a ceder espaço seguindo as regras estabelecidas de distanciamento social, mas também a ter que lidar, no plano familiar, com a limitação de um espaço privado. Nessas sessões escuta-se Rafael Toral em “feedback acústico e electrónico”, Hugo Antunes no contrabaixo, Nuno Morão na bateria e percussão e Nuno Torres no saxofone alto e “instrumento electrónico”.

Uma primeira palavra para a secção rítmica (embora haja momentos em que o todo soa como uma secção rítmica…) de Antunes e Morão: a dupla soa simultaneamente solta e coesa, com o contrabaixo a impor-se sinuoso com uma ampla expressividade, sempre em busca de novos caminhos, como a água, e a bateria a seguir, assertiva, sólida e também mutante quando necessário, um caminho que se prende a e se solta de esquemas rítmicos rígidos, sendo capaz de interpretar uma cadência (como acontece a partir de metade de “Southern Grooves” ou em “Directions”) ou de implodir qualquer assomo de beat, fragmentando o tempo em partículas distintas (como em “Such a hungry yearning burning inside of me” – belo e expressivo título!).

Por cima de tudo isto, Toral e Torres pintam os seus discursos em modo livre, interligando-se ou opondo-se, quedando-se no quase silêncio ou explodindo em fascinantes jogos de exuberância cromática. “Moonlight Through the Pines” é uma delicada amostra dessas possibilidades de diálogo, uma noturna viagem de exploração melódica e harmónica que rodeia o silêncio com cuidado, como quem, na ausência de luz, tateia o caminho procurando não cair num poço.

Triunfo artístico de Rafael Toral e companhia, pois claro.



[Courvoisier, Rothenberg, Sartorius] Lockdown

A pianista Sylvie Courvoisier, o saxofonista alto Ned Rothenberg (igualmente responsável por clarinete, clarinete baixo e shakuhachi) e o baterista e percussionista Julian Sartorius gravaram Lockdown em Outubro de 2020 no estúdio Zoo, em Berna, Suíça. Courvoisier e Rothenberg já se tinham cruzado noutro trio com Mark Feldman (In Cahoots, também com selo Clean Feed), mas aqui Sartorius é o novo elemento.

O trio assume-se como unidade dispensando o papel de líder e atirando-se a material assinado por todos os elementos (a maior parte das faixas) ou pela pianista (dois temas) e pelo contrabaixista (uma peça) numa viagem entre motivos previamente desenhados e outros de livre invenção. Percebe-se que é um disco de reacção aos tempos, uma tranquila, mas funda e honesta reflexão sobre a estranheza dos tempos que rende momentos de absoluta beleza (“Requien d’um Songe”), mas também de alguma tensão (“Outlander”). As colorações pianísticas de Courvoisier são sempre ricas em detalhe, como tão bem demonstrado em “Outlander”, e nos sopros Rothenberg brilha sem se impor, como acontece em “Quarentina”, um desvio abstracto em que usa o clarinete baixo para exprimir alguma angústia, rodeando os estilhaços de melodia e ritmo que os companheiros lhe oferecem. Muito bonito!



[Hearth] Melt

“Fading Icebergs” é o primeiro dos muito expressivos seis títulos que nomeiam as peças carimbadas colectivamente por Susana Santos Silva (trompete), Mette Rasmussen (saxofone alto), Ada Rave (saxofone tenor e clarinete) e Kaja Draksler (piano), um quarteto feminino multinacional e deslocado (as notas ressalvam que nenhuma das artistas reside no seu país natal) que gravou este material ao vivo no festival de Jazz de Portalegre. Nos restantes títulos – “Tidal Phase”, “At Daybreak”, “In Oscillation”, “Diving Bells” e “Turbulent Flow” – vislumbra-se o declarado respeito pela natureza e o interesse colectivo no que se descreve como “procura da plenitude” e que resulta da equação de dois factores que lhes resolve o nome: Heart e Earth.

Nesta música livremente improvisada há uma ampla expressividade e o grupo não teme explorar o desconhecido, recorrendo a diferentes técnicas de execução dos respectivos instrumentos e acrescentando também elementos extra através de pequenos instrumentos, preparações e vozes, recursos que são cautelosamente utilizados para aumentarem a paleta tímbrica dos quadros que se apresentam. O que resulta numa música altamente envolvente, puramente abstracta mas também bastante evocativa dessas anímicas forças que nos comandam a todos.

* O catálogo da Clean Feed está disponível na Jazz Messengers.

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