As duas jornadas finais do festival Que Jazz É Este? que animou Viseu durante cinco dias tiveram lugar neste último fim-de-semana. O que se percebe claramente neste sprint final é o espírito de missão que a Gira Sol Azul assume como elemento estruturante desta iniciativa: as múltiplas actividades do programa – os concertos de palco e de rua, as oficinas de criação, as palestras, exposições, as jam sessions, a acção social dos concertos ao domicílio… – são pensadas para a cidade, para os seus públicos, claro, mas também para os futuros criativos que nela habitam. São 10 edições a cultivar talento e os resultados de tamanho empenho começam a ter a devida visibilidade.
Em termos de concertos, o sábado passado teve como ponto de partida esse mesmo futuro, uma apresentação nos jardins do Hotel Grão Vasco da classe de 2022 que esteve a trabalhar em workshop ao longo de vários dias sob a orientação do pianista Jason Rebello e do saxofonista Xose Miguelez. Naturalmente, tratando-se de músicos ainda a viverem os primeiros capítulos da sua adolescência, o nível era desequilibrado, mas percebeu-se nitidamente que num ou dois pares de casos o potencial existe. Estas acções servem, precisamente, para estimular esse potencial. Claro que o repertório escolhido, que incluía um par de clássicos de Herbie Hancock, foi abordado pela rama, mas estes são músicos que estão a dar passos iniciais na aprendizagem de um idioma e, portanto, não seria justo esperar fluência. Mas, mais uma vez, trata-se de semear para mais tarde colher. E pelo menos uma guitarra, um trompete e um saxofone mostraram brilho suficiente para iluminar a caminhada que terão por diante.
Manuel Linhares foi o artista seguinte. Já o tínhamos visto em acção no Festival Porta-Jazz com o mesmo trio com o pianista Paulo Barros, o contrabaixista/baixista José Carlos Barbosa e o baterista João Cunha. O álbum que apresentou no palco do Teatro Viriato, Suspenso, propõe um jazz assente na tradição, pouco dado ao risco, respeitador dos dogmas. Ao vivo isso torna-se por demais evidente, não havendo nunca lugar ao rasgo, à disrupção ou a algum sinal de que esta é música a ser criada na segunda década deste novo milénio. É certo que Linhares nos revela que as suas canções nasceram, como tantas outras, da forçada inspiração do confinamento, e isso fica claro logo no título do álbum ou no de uma canção como “Sentimental Illness”. Essa literalidade passa igualmente para a música que, embora bem executada, poucos argumentos oferece para que se prenda à memória.
A noite fechou com a banda multinacional Spinifex aqui em versão Sings, ou seja com a adição de duas vozes femininas, Björk Níelsdóttir e Priya Purushothaman, artistas que trouxeram diferentes tradições de canto para o olho da tempestade, numa união improvável que terá algo de político ou pelo menos de ético (o que se calhar vai dar ao mesmo lugar…). Em palco ainda se encontravam Tobias Klein (sax alto, direção artística), Jasper Stadhouders (guitarra elétrica), o português residente na Holanda Gonçalo Almeida (baixo elétrico) e John Dikeman (sax tenor que gravou com Luís Vicente, Hamid Drake e William Parker) e Philipp Moser (bateria), todos eles músicos dotados e com vastos currículos.
A música deste colectivo poderá agradar a quem possa ter um soft spot por algum prog rock mais indulgente, mas embora entusiasme q.b. quando a atenção se foca no desempenho técnico individual, não deixa de parecer uma exibição de fogo de artifício por vezes dando a sensação de que os músicos estão tanto (ou mais…) a tocar uns para os outros como para a plateia que têm à frente. O facto de muita gente ter abandonado será um sinal disso mesmo. O outro facto de os muito mais que resistiram não terem sido tão efusivos nos aplausos finais quanto noutras ocasiões poderá igualmente indiciar alguma coisa. Não que seja a reacção do público a determinar o grau de qualidade do que se passa num palco (já todos vimos concertos que nos encheram as medidas e que deixaram boa parte do público restante indiferente, sobretudo em contexto de festival), mas isso sugere pelo menos que a música destes Spinifex poderá surtir um efeito substancialmente diferente se apresentada noutro tipo de contexto, talvez num clube onde os ecos rock do som que congeminam possam reverberar de forma diferente. Um caso claro de “sim, mas…”.
O dia final foi mais curto, com o último concerto a ter lugar às 19 horas. O primeiro, no entanto, teve lugar a meio da tarde na Pousada de Viseu, numa ampla sala formada em torno de uns claustros que em tempos terão ladeado algum jardim ao ar livre, mas que agora estão protegidos por uma espécie de redoma alta em vidro que torna o espaço demasiado problemático para a apresentação de música ao vivo tamanha a sua reverberação. Isso não ajudou a que a música tocada pelo Miguel Valente Quarteto pudesse ser fruída da melhor maneira. Deu, ainda assim, para perceber que o ensemble que o saxofonista comanda – com Rodrigo Correia no contrabaixo, Hugo Lobo no piano e Luís Possollo na bateria – pratica um som muito pouco condizente com a etiqueta sugerida pela sua entrada no site do próprio festival – de “modern jazz” este quarteto tem muito pouco. Aliás, do que nos foi dado a ouvir, chega quase a parecer estranho que um grupo com elementos tão jovens não tente sequer tocar música que aparente pertencer a este milénio, quanto mais a esta década. Talvez a experiência académica ainda pese demasiado no tipo de material que executam, mas se o grupo indicia ter sérias capacidades técnicas (o som embrulhado não permitiu aferir com exactidão), já o tipo de criações que desfilam surge desprovido de qualquer sinal de risco, de arrojo, de espírito de aventura. Nada que a experiência não possa vir a alterar, claro.
O cartaz do Que Jazz É Este? teve como momento final um concerto de Karyna Gomes, uma carta algo fora do restante baralho em termos estéticos, mas que funcionou como perfeita sobremesa do que para todos os efeitos foi um enorme banquete servido à cidade de Viseu. Acompanhada pelo enorme Milton Gulli na guitarra (que tão bem conhecemos de aventuras como Cacique’97) e pelos não menos notáveis André Moreira no baixo e irmãos Ruben Alves e Marcos Alves, em teclas e bateria, respectivamente, Karyna levou ao Parque Aquilino Ribeiro a mensagem certa – de empoderamento das mulheres e especialmente das mulheres negras, de amor e de paz – e música com alma funda, apontada ao universo afro-pop, mas sem esquecer a tradição, tão bem assumida na execução da tina – uma cabaça oca tocada em bacia com água, “instrumento inventado por mulheres”, revelou a cantora – e no crioulo guineense que soa tão familiar quando canta a saudade que a diáspora impõe. Um belíssimo ponto final para cinco dias muito bonitos numa cidade que tem gente empenhada em sonhar com um futuro diferente. Como deve ser.