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Publicado a: 28/03/2016

O puto que pintava comboios

Publicado a: 28/03/2016

[TEXTO] Ema Rocha* [FOTO] Direitos Reservados

Ao lançarmos o segundo Festival Rimas e Batidas, dedicado ao legado e memória de J Dilla, lançámos também a Vhils o repto para que se unisse a nós e à J Dilla Foundation nesta celebração. Vhils cedeu-nos uma serigrafia, de uma série exclusiva de apenas cinco exemplares, de 50x70cm, que retrata o produtor de Detroit numa das suas mais famosas fotografias. A leilão até ao dia 18 de Abril, véspera do Festival, a serigrafia oferecerá os proveitos da sua licitação à  Associação dos Doentes com Lupus em Portugal, em nome de J Dilla, que quer continuar a mudar vidas.

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O nome Vhils quase não precisa de linhas introdutórias que façam o dispensável: apresentá-lo. Alexandre Farto, o nome por trás do tag que em 2000 aterrorizava os comboios da Margem Sul do Tejo, não escapa à aclamação das artes plásticas, quer neste cantinho à beira-mar pintado, quer no mercado internacional. Vhils saltou do vandalismo do graffiti para a street art e de lá para algumas das paredes mais cobiçadas do mundo das artes urbana e pública. A linguagem visual de Vhils tem marcado o panorama artístico português dos últimos dez anos. Conquistou um género, um estilo próprio, inventou-se e distinguiu-se dos demais. A plasticidade com que pensou a representação urbana não pára de surpreender e de nos fazer pensar, quais arqueólogos, em camadas urbanas e nos que as habitam.

Diz-se que Miguel Ângelo (1475-1564) costumava dizer que “a escultura está dentro da pedra, só tem que se tirar o que sobra”; Vhils deixa-nos nesta inquietação, de querer descamar cidades e descobrir de que são feitas.

Na altura em que empresta o seu engenho à nossa comemoração, recordemos o seu percurso artístico em 10 momentos essenciais.


[1] VSP

A VSP, Visual Street Performance, colectivo de writers que se reunia anualmente numa exposição que pretendia elevar o graffiti a experiência artística – e de que Vhils foi membro fundador – contou com a presença dos seus trabalhos em todas as edições entre os anos de 2005 e de 2010 (no Porto). Na edição de 2007, realizada excepcionalmente na Fábrica Braça de Prata, em Lisboa, ficou bastante vincada a ideia de que a carreira de Vhils haveria de se marcar pelas diferenças estéticas que trazia à linguagem urbana do graffiti. Ao retrato, tema recorrente nas hall-of-fames, o artista, então com 20 anos, acrescentou à exposição uma figura escavada na parede.

Fora da do recinto da fábrica, do outro lado da estrada, Vhils tinha executado no ano anterior uma parede para a Promontório – Sociedade de Arquitectos, no âmbito do Projecto Building 3 Steps, com o arquitecto Miguel Maurício, e com a colaboração da Galeria Vera Cortês, fazendo um jogo entre uma paisagem urbana e a descamação das paredes que viria a torná-lo famoso.

 

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Foto: Direitos Reservados

[2] 2008 e os túneis

Em 2008 decorreu o Cans Festival, em Londres. Três dias de “street party of stencil art”, lê-se na descrição do Festival, tão irónica como o seu comissário: Banksy. Nas paredes de Leak Street, entre os trabalhos de stencil mais mediáticos do momento, surgiram dois retratos escavados, naquela que foi umas das primeiras aparições da série “Scratching the Surface” do português Vhils.

No mesmo ano, Alexandre Farto foi convidado pela Lazarides Gallery a apresentar o seu trabalho num outro espaço, o túnel “228” abandonado por baixo da estação de Waterloo, não muito longe daquele que foi usado por Banksy para a sua exposição. O projecto-performance, comissariado pela própria galeria em colaboração com a Punchdrunk e o Old Vic Theatre (representado pelo actor/professor Kevin Spacey), pretendia recriar uma experiência artística subterrânea inspirada no filme Metropolis, de Fritz Lang.

 

[3] A solo

Em 2009 Alexandre Farto recebeu o convite, e a atenção mediática adjacente, para duas exposições a solo: uma em Lisboa, a outra em Londres. A capital britânica, cidade que mais o viu crescer artisticamente, recebeu a mostra Scratching the Surface, que apresentava a série homónima, na Lazarides Gallery, entre Julho e Agosto de 2009.

Em Lisboa, a exposição acontece na galeria de Vera Cortês, com quem trabalhava desde 2006. O espaço da galerista foi palco para a primeira exposição nacional a solo de Vhils. Even if you win the rat race, you’re still a rat, deixa, por momentos, a exploração do retrato, para recuperar a força da iconografia urbana, e a força da palavra cravada na parede da cidade.

 

[4] Ascensor da Bica

A estreia de Alexandre Farto na Arte Pública distingiu-se pela intervenção no emblemático Elevador da Bica, no âmbito do Programa de Promoção de Arte Pública: Carris_Arte em movimento, em 2010. Vhils foi um dos quatro artistas convidados a intervir nos elevadores e ascensores da baixa lisboeta.

O ascensor da Bica, parte integrante do “postal” que é o bairro, e fiel confidente da vida dupla que este leva, viu-se forrado de espelhos em “Espectro”, o título da obra. A Bica renova-se a cada dia, com os seus habitantes, e a cada noite, com os seus visitantes; Vhils propôs-nos observar esta dicotomia, ao reflecti-la no exterior do elemento permanente, o ascensor.

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Foto: Direitos Reservados

[5] ISBN: Vhils

A primeira monografia chega em 2011, editada pela Gestalten Books, e prefaciada por Sara e Marc Schiller, os fundadores de Wooster Collective, organização dedicada à divulgação, documentação e intelectualização de experiências de arte, em particular, de street art.

Vhils – o livro, foi, na verdade, o terceiro sobre o trabalho do jovem artista, mas sem dúvida o mais completo. Tinha sido editado um catálogo por alturas da exposição a solo em Londres, pela Lazarides Gallery, e uma primeira monografia  – VHILS / Alexandre Farto 2005 – 2010da Lebowsky Publishers, em Amesterdão. A edição Gestalten representou, no entanto, a maior compilação visual de várias fases e projectos do trabalho de Farto até à data, significativa da fama crescente da sua carreira.

 

[6] Rio de Janeiro – 2012

Seu Elias, Misael, Humberto, Seu Edinho, representam um mês de trabalho da equipa de Alexandre Farto no Rio de Janeiro. Mas representam muito mais que isso: o Morro da Providência, a primeira favela a sofrer o processo de remoção dos seus habitantes no seguimento das obras de preparação da cidade para o Mundial de Futebol e Jogos Olímpicos, viu serem desalojadas cerca de 2000 pessoas. Alexandre Farto e a sua equipa gravaram nas paredes abandonadas verdadeiros monumentos-retrato àqueles que foram obrigados a sair de suas casas. Um projecto desta magnitude, a que se associa a comoção da dimensão humana, trouxe a Vhils a conotação da intervenção social e atraiu ainda mais o olhar internacional para o seu trabalho.

 

[7] Dissection

No Verão de 2014 Alexandre Farto inaugura a primeira grande exposição a solo numa instituição nacional, com trabalhos produzidos especificamente para o espaço do Museu da Electricidade. As já celebradas técnicas destrutivas e os suportes não convencionais propuseram-se a recriar, através de ruído, caos e preenchimento visual, a vivência urbana contemporânea, num processo de dissecação.

As imagens à beira-Tejo, nas imediações do Museu nos primeiros dias de exposição, traduzem bem a notoriedade que o público lisboeta, e os visitantes turistas, atribuiram ao trabalho de Alexandre Farto: filas intermináveis e uma acutilante vontade de ver Vhils a solo, e em grande. O número de visitantes comprova o feito: mais de 65 mil pessoas passaram pelo Museu da Electricidade nos três meses de Dissection.

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Foto: Fundação EDP

[8] Outras cenas

A par dos trabalhos plásticos, Alexandre Farto tem vindo a desbravar várias áreas artísticas, nomeadamente a produção da imagem de artistas musicais nacionais, transferindo a estética tão sua característica para outras realidades visuais. Há largos anos que Farto se associa à produção de vídeos musicais, VJing, design e ilustração. Talvez a mais aclamada colaboração em vídeo do artista seja “M.I.R.I.A.M.”, o consagrado single de Orelha Negra, que encena e poetiza a técnica de parede explosiva de Vhils. Mas há mais talento para ir descobrindo: os efeitos de tinta preta no vídeo “Yah!” de Buraka Som Sistema? Vhils. Capa do disco Quarenta, de Carlão? Vhils. Separadores na nova imagem comemorativa dos 59 anos da RTP? Vhils também.

 

[9] Vhils em órbita terrestre baixa

Sabemos que a carreira de alguém vai bem quando está representada no Espaço, em particular se esse alguém não for engenheiro físico, mas artista plástico. O filme O Sentido Da Vida, de Miguel Gonçalves Mendes, vai documentar, em 2017, a jornada de um jovem brasileiro que sofre de uma doença rara e incurável e que a quer confrontar com a História da humanidade e as pequenas histórias de cinco pessoas comuns, transformadas pelo realizador em ícones. Vhils foi o retratista convidado para integrar o filme, tendo já concluído dois dos retratos. Um deles, o do astronauta dinamarquês Andreas Morgensen, foi concebido como peça site-specific, para ocupar a cúpula da Estação Espacial Internacional.

 

[10] Nem sempre na pedra

No passado dia 21 de Março, Vhils inaugurou uma exposição a solo em Honk Kong, apresentada pela Hong Kong Contemporary Art Foundation (HOCA), no Cais 4. Para Debris, o título da mostra, Vhils intervencionou um eléctrico, que circulou uma semana pela cidade publicitando a abertura da exposição.

O evento surgiu no seguimento de uma residência artística feita por Vhils na cidade, e de um trabalho de preparação intenso, de quase dois anos. O artista fala das peças criadas como reflectoras da vivência desta cidade onde parou para sentir; usou, para essa reflexão em ambiente primordialmente urbano, várias peças interactivas, juntando aos materiais pelos quais tem sido mais reconhecido, caixas de neón, condizentes com a energia da grande metrópole asiática.v_taiwan

Foto: Jose Pando Lucas/Facebook Vhils

 

* Ema Rocha é licenciada em História de Arte e tem mestrado em Museologia. De vez em quando gosta de se debruçar sobre temas de graffiti e espaço público.

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