Torna-se inevitável começar pelos incêndios (im)permanentes do verão — os piro-verões de Portugal. Este neologismo que o botânico, e sábio da ecologia, Jorge Paiva há já muito cunhou como fenómeno crónico e dolente que volta e voltará a repetir-se a cada ano. É a catástrofe vinda da flagelação humana anunciada pelas suas práticas no território e que o clima vem elevar potencialmente. Práticas que vêm da ganância e da hegemonia do necro-capitalismo, que tornou grande parte de país num “Eucaliptugal”, resultado da neo-empreendedora ideia de que quem planta árvores o faz para seu lucro e proveito próprio. Será preciso evocar o que fez e sobretudo para quem, o feito de Jean Giono — O Homem que Plantava Árvores. Giono que da aridez de uma região agreste fez uma floresta, para os que hoje e amanhã dela souberem desfrutar e cuidar. Todo um propósito, como num contraponto de acaso objectivo, já que enquanto noutros tantos lugares o fogo se alastrava, na Área Protegida do Montado do Freixo do Meio, perto de Montemor-o-Novo fazia-se o rescaldo de três dias de partilhas de práticas que auguram outra realidade, sã e regenerativa. Entre os dias 13, 14 e 15 de Setembro, e como se anunciava para esta 4ª edição do evento transdisciplinar, foram dias feitos de “rituais fundamentais da vida, como comer, caminhar, escutar, desacelerar, conviver, coexistir, […] explorados através de perspectivas únicas de cada artista, cientista, agricultor, chef, filósofo, ativista, produtor e especialista local convidado.”
Partilhas vividas num biótipo resiliente, um sistema agro-silvo-pastoril milenar — aqui com uma presença humana com mais de 7.000 anos, como ensinou a ver melhor Manuel Calado, arqueólogo e historiador que guiou a caminhada “Origens” pelo montado recuando ao tempo onde se edificaram antas e ergueram cromeleques e menires. O montado como sistema de máxima resiliência ao fogo — esse devorador do tempo das coisas. Porque o equilíbrio foi mantido, a biodiversidade é elevada e estruturante. Note-se ao mapear os incêndios em Portugal, onde não arde, pois essa mancha que resiste em muito é feita do montado e nele vivem também comunidades humanas. Para Alfredo Sendim, habitante do Montado, com Ana e a filha de ambos — Glória, que dá os primeiros passeios destemidos com os seus dois anos nesta vasta herdade familiar — fez-se uma escolha, “estabeleceu-se uma área protegida, dando prioridade à Natureza, pela existência de um capital natural crescendo”. As razões são da ordem dos sonhos, sonhar mas de forma “a incrementar o capital natural”, prossegue Alfredo na sua apresentação diante dos presentes desta edição e que visitam a sua casa, tomando-a com nossa nestes dias “onde Natureza é para todos nós uma abstração mais que uma realidade”, antes “vivendo na Natureza repensando a relação com a vida e os seres em redor”. Aqui entra a propósito o relato do pensador indígena Ailton Krenak onde, na compilação de textos Futuro Ancestral, nos relata que “os humanos estão aceitando a humilhante condição de consumir a Terra. Os orixás, assim como os ancestrais indígenas e de outras tradições, instituíram mundos onde a gente pudesse experimentar a vida, cantar e dançar, mas parece que a vontade do capital é empobrecer a existência.” Para Alfredo Sendim estes dias são uma oportunidade de “partilha da nossa casa com mais gente, numa abordagem individual que cabe a cada uma das pessoas fazer. Mas há uma possibilidade de entender que há um sistema real de vida aqui, não se trata de um cenário — é real”.
Com o propósito de incluir também a comunidade local ao Montado, o Ponto d’Orvalho — criado pela Associação Ponto d’Orvalho e programado por Joana Horta — teve inicio ao anoitecer nas instalações do Convento de São Domingos em Montemor-o-Novo. O primeiro momento, neste entender, de escutar uma ancestralidade a abrir caminho ao futuro, aconteceu com Antonina Nowacka no concerto inaugural, na igreja do convento. Entrada para um espaço que convida a um interior imediato, assim como a música que esta compositora polaca tem inscrito nos trabalhos revelados. Há em todos eles uma voz experimental, seja no duo WIDT com Bogumila Piotrowska quando em 2019 lançara Mentos Gulgendo juntando um órgão tocado conjuntamente; seja em Languoria, no qual em colaboração com a dinamarquesa Sofie Birch criam um complexo sonoro feito de camadas múltiplas, num trabalho que em muito se recomenda publicado pela Mondoj em 2022. Mas, a solo, Nowacka neste 2024 trouxe, e fisicamente também alguns exemplares, o álbum Sylphine Sporifera, onde se ouve a sua voz como elemento ligante entre o ar vindo de outros instrumentos como as ocarinas de terracota de Budrio (Itália), as flautas de bambu do Nepal ou apitos de Oaxaca (México). Contudo, e comentou isso mesmo na breve conversa tida após concerto que por principio os seus discos nunca são transpostos para concerto. Ali estava perante a plateia da igreja com uma harpa e a sua voz, o instrumento que transporta invariavelmente consigo. Antonina Nowacka apresentou-se atmosférica numa paisagem sonora comprometida com o território e a espiritualidade. Primeiros momentos apenas e tanto a sua voz ascendeu e levou-nos para onde cada um e cada uma quis — longe sem sair de perto. A harpa entrou depois, sempre em modo de harmonias de amparo às vocalizações, em crescendos e descidas feitas de glissandos. Foi uma prestação toda ela que se pode intuir escutando “I Found You in the Cloud” do seu último registo. Foram vocalizações hindustanas na terra da desaceleração, num tocar até apenas só se ver, num saber depurado em que os olhos de Antonina apenas se abriram para receber os agradecimentos sonoros como resposta em forma de aplausos dos que marcaram presença no primeiro momento programado desta edição de Ponto d’Orvalho (Pd’O).
O seguinte momento da primeira noite era feito de festim gastronómico, servido nos claustros do Mosteiro de São Domingos. Num jantar comunitário, de partilha à luz das velas, mas muito feito da e para a partilha dos presentes, gastronómicos e das ideias, entre arcadas conventuais e comida disposta no centro do jardim do claustro, numa antes demais imagem de encanto, que remetia para tempos ancestrais, e que os sabores das propostas confeccionadas haveriam de confirmar — uma a uma — isso mesmo. Entre as sopas frias de pepino e meloa com óleo de agrião, à avoadinha em pickles de beldroegas, duas plantas ruderais, que alimentam e pouco devem a cuidados nos terrenos onde surgem espontâneas — alimentos sempre facilmente disponíveis numa parcela de terreno no Verão. Um miso — pasta fermentada de leguminosas e ali preparada com catacuzes —, outra planta comum nos prados e que recebe o nome de azedinhas, ou labaças noutros locais mais distantes dali. Uma degustação sensorial do palato através de alimentos obtidos por recolecção, fonte abundante de recursos que escassos sabem ver. A gastronomia alentejana ainda tem efectivos sinais dessa ancestralidade resiliente — cardinhos, beldroegas, avoadinhas, catacuzes ou os temperos de poejos, funcho e orégãos. A instalação das iguarias seduz o olhar e aguça o apetite, traduz-se num repasto para o corpo e alma. O propósito alcançado desde a prática do colectivo Pousio, de que faz parte Teresa Carvalheira, que refere à conversa sentir “uma alegria na transmissão desse passado, um orgulho”, isto na herança do saber fazer e com o que fazer esta gastronomia, também ela regenerativa. Se esse passado, não muito longínquo traz à memória tempos em que estes recursos alimentares eram um garante de sobrevivência, tempos difíceis. São as mães e as avós a exercer esse legado, mas é preciso “escavar para chegar lá, o que previne uma transmissão mais directa, mas basta abrir um bocadinho o pote e sai a sopa — as pessoas querem partilhar” comenta Teresa. “Nós [Pousio] em termos conceptuais, interessa-nos é olhar para o futuro mas com a filtragem do passado, há muita coisa boa que se esqueceu, pela ordem do progresso, da praticabilidade”. Houve ainda vinho de castas nativas — da Quinta do Olival da Murta (Cadaval) sob a influência da Serra de Montejunto — e teve no Moscatel Graúdo um dos melhores néctares fermentados naturais que se bebeu e brindou com vagar e paladar apurados.
O montado passava a ser o espaço permanente de confluência. No final da noite, o workshop “Um Soar Coletivo (Parte I, à noite)” foi a proposta programada. Para lá chegar houve que retomar o caminho que, na passagem por Foros de Vale de Figueira, revelava um pressagio certeiro, onde a Rua do Caminho do Futuro vai dar ao estradão para o Montado do Freixo do Meio. Yuri Tuma apresenta-se para ponto de programação e “como artista multidisciplinar foca-se na investigação de ecologias sonoras através da arte sonora, instalação, práticas coletivas e performance”. A reunião dos presentes no deck sobre o pequeno lago, é o ponto de partida para o exercício proposto como “experimental, [experienciando] coletivamente diferentes maneiras de incorporar uma noção expandida do humano-animal, através de ativações vocais, sessões de escuta, […] meditação e interpretação de papeis. Neste processo de cura colaborativa, podemos encontrar alegrias inesperadas que nos unem nas visualizações de futuros desejáveis.” A ideia está enquadrada no conceito da “ecologia acústica e modos do escutar”, Tuma tem centrado a sua prática e investigação em metodologias que vão do “escutar ao fazer som relacionadas com o ambiente”. Nesta proposta trazida ao Pd’O, desenvolvem-se confluências de meditação, visualização-guiada, e vocalizações em ambiente condicionado, entre olhos fechados e isolamento na escuridão da noite. Somos dali em diante seres comunicantes, mas sem o uso da palavra — apenas as proferidas por Tuma para guiar a experiência. Ficados no som em redor e deixando o corpo alcançar estados de conforto, somos guiados para um espaço meditativo, ouvem-se rumores do tempo em que fomos crianças, a ideia de conforto do tempo sem preocupações, desprovido de enredos, apenas na fruição do instante, preciso entre a inexistência do antes e do depois. Poderíamos ficar ali adormecidos em permanecia conjunta, mas avançámos para uma parcela da agrofloresta do montado. Escutámos em redor e uma vez chegados cada pessoa encontrou um refúgio, escondendo-se para que apenas houvesse uma comunicação auditiva anulando a visual. Dali em diante cada qual fez expressar através de vocalizações o que pretendeu fazer. Sucederam-se latidos, risos desbragados, miares, uivos, grasnares, gritos, chamamentos idiomáticos, zurros, onomatopeias inventadas, mas também houve bons momentos de silêncios. Foi um mistério bem sucedido afinal, que a ecoar pelo montado onde se intrometeram os mistérios sonoros da noite dos demais seres que nele habitam. Será também esta a matéria inscrita no Phonocene, de Donna Haraway e Vinciane Despret, e apresentado como “uma possível era do som, na qual a escuta é reivindicada como um veículo para aceder a novas formas de habitar o território e a atual crise ecológica.” A experiência sonora de “Um Soar Coletivo (à noite)” terminou numa roda de ombro a ombro para uma vocalização conjunta, perdurada, em crescendo, de um entoar — um humming, que terminou em estados de exaustão e intensidade esgotante, mas como pretendido foi transcendente.
O momento de alvorada repete-se a cada dia, mas assim como se repete no tempo é irrepetível no modo. A luz, a forma das nuvens, o cromatismo servido é e será único. Neste Pd’O houve uma programação dedicada a esse encontro, neste espaço e com a intenção de um certo desjejuar, com “DES JE JUAR” levado à prática pelo novo colectivo Futuros do Passado. No espaço do pomar do Freixo do Meio, “num gesto ritualizado de cuidado, propomos que estiquem o corpo no vagar do receber e possam saborear atentamente e com mais lugares que o estomago”, tal como se apresentam em mensagem-convite ao preparado. Uma aurora em crescendo a desenvolver matizes de um dia prometedor, que assim se celebra desde os primeiros momentos. Alice Artur, Joana Trindade Bento e Francisca Paiva formalizam este colectivo aqui na missão de nutrir os multi-domínios das entidades presentes. Num ritual, enquanto tal, servido em diálogo permanente entre os alvores do dia, a paisagem, o corpo e o que dessa confluência há-de vir. (Re)citam em texto entregue — as palavras voltam a escusar-se — o fundamental filósofo dos nossos dias que é Byung-Chul Han para a reflexão de que: “Hoje a alma não ora, produz-se incessantemente. Os rituais podem definir-se como técnicas simbólicas de instalação num lugar. Tornam habitável o tempo.” A construção de um sentido de comunidade está ali presente. Uma roda para os comensais é proposta no chão, feita de tapetes de serapilheira, ao centro estão Chica, Joana e Alice, e no centro delas o núcleo desta célula — o pote das papas de arroz. Dai é servido, à vez num ritual que se repete por cada uma delas o preparado alimento servido, juntam-lhe ervas aromáticas e sementes que ligam o fruto da terra ao perfume da hortelã cortada a cada gesto dócil e perfumado. A cada um que se junta recebe, como que num lânguido espreguiçar, uma porção do preparado revitalizante. Há ainda em redor fardos de palha que suportam complementos, que vão desde entrançados de duas massas de pão — de trigo e de bolota —, a tiborna de azeite temperado, massa de doce de tomate e pasta de húmus. Um dos outros fardos contém rectângulos de omelete verde, feita de ervas espontâneas, e uns misteriosos embrulhos de folhas de figueira; dentro há um figo colhido em verde e preparado em calda que contem sumac e fava tonka, um exotismo estimulante, que faz viajar com os primeiros raios desenhados com cores mutantes vindas do nascente. Futuros do Passado propõem “um ritual suave partilhado pelas bocas de cada um e íntimo no despertar do próprio corpo que habita mais um dia.” Entendemos o chamamento em tornar especial e impactante o que se apresenta diariamente como apenas mais um, como tantos outros rituais, o da primeira refeição do dia. Aqui estimula-se que o seja interventivo, para este colectivo de mulheres guerreiras da alimentação é a “fusão celular com a paisagem — de va gar — permitamos a transformação”. Em conversa com duas destas destemidas artistas — Joana e Alice vêm das Artes Plásticas mas estão em campo de intervenção alimentar, através de práticas criativas autorais que dão de comer com a dimensão que tanta falta nos faz. “Existe qualquer coisa no passado e na tradição que nos interessa recuperar para um tempo por uma questão humana e emocional” comenta em discurso directo Alice Artur, na conversa tida conjuntamente com Joana Trindade Bento, duas das três vozes pensantes de Futuros do Passado. “Interessa-nos recuperar esse passado para projectar o futuro”, isto para justificar em contraponto uma perda humanizada do quotidiano e das práticas ancestrais. “Estamos a aproximar-nos mais das máquinas e os gestos humanos perdem o seu espaço, fica inviabilizados, dentro de uma amalgama de rapidez”. Retoma Alice, na sua explicação do fazer, que: “A tradição permanece porque foi experimentada e testada milhares de milhões vezes, interessa-nos usar essa informação que já está disponível e como se aplica hoje em dia.” Joana realça a importância acrescida da saúde mental que advém de uma alimentação com estas práticas “da agricultura e que estão ligadas a um tempo diferente que obviamente temos de adaptar, mas [sendo] lentas ajudam-nos a desligar do stress”, da tensão dos dias. Há hoje a ideia latente nestes campos de acção de um desacelerar, da prática da redução e da diminuição, que vem do conjunto de propostas, como conceito politico, económico de reflexo social “Décroissance” ou “Degrowth”. Está assente na ideia radical de diminuição da produtividade. Tem vindo, desde os anos 70 a afirmar-se como inevitável para estabelecer parâmetros de convencia sustentáveis com os recursos e ritmos de consumo da humanidade no planeta. François Schneider, entre outros, é desde 2002 uma das vozes sonantes desse movimento que reivindica esse inevitável travão para evitar o colapso da humanidade no planeta, o que é bem distinto do discurso descuidado que o que está em risco é o planta Terra — erro crasso nessa visão conciliadora da presença humana, logo em si transportando todo o antropocentrismo. Para Alice Artur “há uma capitalização sobre isso do desacelerar — não é o desacelerar, é estar presente! Seja a que ritmo for, ao ritmo do drum’n’bass ou do techno mais pesado.” Reforça e posiciona o papel enquanto Futuros do Passado em: “O que nos interessa nisto do ritual, do servir e do estar para o outro, é evocar essa presença.” Reside, porém, na estratégia para levar a cabo o desafio maior, partilha Alice, “como não impondo esse ritmo desejado, se convoca a atenção para a presença”, e socorre-se, na sua argumentação, na ideia de Nietzsche, para quem uma boa métrica estéticas são as fisiológicas. “Para nós, a melhor forma de confirmar a nossa performance [“DES JE JUAR”] foi ter mais de metade da plateia a dormir no final”. Joana reforça a ideia de que “uma das premissas era que cada participante fosse no seu ritmo a este ritual”, houve quem fosse e não comesse, ou apenas fruta — havia melancias ao dispor. Para Joana e Alice, enquanto artistas plásticas, “a comida é muito mais coisas, multiplicadora, não tem só a função de alimentar — é intelectual, emocional, social, psicológica; há todas essas dimensões na comida e no comermos em conjunto”. Há nesta acção uma procura constante, que não se esgotará e motiva o continuar, sendo feita de questionamentos que deixam explícitos: “Em que estado de espirito é que nós comemos? Como é que decidimos comer uns com os outros? O que é que nos leva até ao alimento? O que é que está para além do alimento, para além do nosso estômago? E o que estamos a procurar sem saber? Enquanto artistas têm uma actividade profissional que contacta com vários mundos, chegam ao Pd’O dentro desse caminho, não como uma intervenção ocasional ou fortuita, antes como uma consequência, a tal palavra entusiasmante da confluência. “Somos o olhar de três pessoas muito atentas em vários mundos diferentes”, resume Joana, e complementa Alice: “Interessa-nos saber como as pessoas comem e como se apresentam perante o alimento… É muito isso, nesse olhar abrangente”. Somos muito feitos daquilo que comemos, com quem comemos e como comemos.
“Origens” enuncia por si o que seguiu neste Pd’O. Num passeio matinal, escaldado pelo solarengo dia que ia impondo, foi momento de seguir viagem pelo espaço do montado e sobretudo seguir na ancestralidade, até ao tempo do Neolítico de onde há registos da primeira ocupação humana neste vasto território a que hoje chamamos Alentejo Central. Manuel Calado, que em nada condiz com o apelido que o apresenta, falou e muito para contar a pré-história. Quando Alfredo Sendim, relativamente à nossa inquietude em saber há quanto tempo tinha começado a sua família a habitar no Freixo do Meio, respondia sabiamente com um esclarecido número de sete mil anos, referia-se que vem desde então a presença humana neste lugar. E Manuel pergunta, mais adiante no passeio, entre as sombras funcionais dos sobreiros e azinheiras de vetusta idade: “Quando as populações nómadas começaram a migrar desde o os locais mais litorais, porque haveriam de ter escolhido lugares como este para se fixarem?” A reposta vamos construindo ao longo da caminhada de leitura reflectiva da paisagem pontuada de vestígios de permanência humana. Também o local da aldeia neolítica do Freixo coincide com uma escolha que outros do nosso tempo escolheram. Vem ao encontro do futuro que é ancestral. O arqueólogo revela que “uma procura do sitio ideal para fazer uma sessão de meditação foi o mesmo que mais tarde foi escolhido para a escavação arqueológica” e que veio a confirmar a presença humana ancestral no montado. “É uma estória que nos mostra que, provavelmente, o mesmo critério na cabeça deles, e que os levou à escolha deste lugar, esteve na cabeça de quem achou — olha que lugar tão bonito para fazermos uma sessão de meditação”. Também Krenak, entre outros interlocutores indígenas nossos contemporâneos, nos falam de um cosmos orientador na disposição dos elementos intervencionando o território. Ao cosmos acresce o clima e Calado, nas suas eloquentes explanações, refere “que este lugar escolhido está orientado para nascente-sul, que são claramente as direcções do sol”, tal como tinha explicado o anteriormente em relação à orientação dos cromeleques — recintos megalíticos “com um conjuntos de menires organizados de forma a definir um espaço”. A disposição é em forma de ferradura, que é “típica do Alentejo, assim como na Bretanha francesa”. A presença isolada de menires remete, como explica o guia do passeio, para “um ser singular evocado”, contudo quando ocorrem conjuntos — como no caso dos cromeleques — “em que a forma de ferradura evoca o parlamento, o dispositivo em que um fala e outros ouvem”.
“Escolhiam para morar lugares marcados pela imponência dos rochedos e construíram lugares culturais, santuários em que as pedras são os elementos fundamentais. Existiria uma relação com as pedras que nós hoje temos dificuldade [a entender].” A relação destes dispositivos monumentais e o céu merece uma demorada reflexão para Manuel Calado. A observação de que, e tendo como referência a linha do horizonte, o sol nasce num ponto extremo mais a norte e vai mudando até atingir um ponto máximo a sul, que depois inverte o nascer até ao ponto cada mais a norte, permitiu identificar os extremos anuais que hoje sabemos como solstícios — de Inverno e de Verão — e que marcam o ciclo anual cosmológico. “As direcções extremas desse movimento aparente do sol no horizonte” comenta que foram aproveitadas “para fazerem disso uma festa, as festividades do começo do Inverno — hoje as comemorações do Natal são disso uma apropriação e as festas joaninas e dos santos populares, retomando as comemorações ancestrais do começo do Verão”. Esses primeiros povoados de comunidades sedentárias fizeram-no num espaço que potenciava as práticas de domesticação de plantas e animais, o pro-montado, abrindo clareiras para o cultivo do solo e cercando animais — começando pelas ovelhas e cabras, que no entender de Calado o fizeram para a obtenção de leite, um alimento inalcançável como recurso baseado na caça. No entanto o alimento sempre foi muito mais baseado nos recursos colectados que os caçados, que implicariam muito mais gasto energético e com resultados mal sucedidos na maior parte dos intentos, como facilmente se imaginará. Mas Manuel, como anfitrião e cicerone da manhã, hábil comunicador, havia começado com uma ideia em forma de aforismo. “Com a invenção da agricultura, inventámos o trabalho também. Os caçadores-recolectores não trabalham… caçam, pescam, [colhem], dormem a sesta, conversam, visitam amigos. Trabalhar mais do que o necessário foi uma invenção dos primeiros agricultores há cerca de 7.000 anos. O Freixo do Meio tem essa acumulação de legados, natural e cultural, a agricultura por um lado e a floresta por outro, onde as “as origens aqui abordadas respeitam a um passado, mas também a origens de um futuro melhor” como enfatizou Manuel no arranque do passeio.
O almoço que se seguiu foi servido na cantina da herdade e no pátio de alpendre sombrio e refrescante. As paredes exibem uma exposição do Grupo do Risco como registo para memória futura da passagem, acompanhando um ciclo anual, para fazer um levantamento — em desenhos, aguarelas e fotografias — da biodiversidade deste montado. Há um livro editado e este mostra a ver e a rever, que em muito se recomenda. Mas a comida essa ia chegando às mesas — corridas —, para em modo de partilha, uma vez mais, se degustarem os sabores dos produtos deste sistema agro-pastoril. Convidado para a cozinha foi Francesco Ogliari como “chef italiano que se tornou uma figura de destaque na cena gastronómica Alentejana” e a equipa que trouxe do restaurante Tua Madre. Assim apresentado, elevava-se a fasquia da surpresa. Os pratos servidos, e os que provámos, entre saladas de tomate, pimentos e cebola, ou um tabbouleh que na vez de bulgur se apresentava com quinoa, levaram a uma recompensa energética e fisiológica honesta. Faltaria no entanto outro alcance que os pratos da noite anterior foram capazes de oferecer, o que mais difícil é de comensurar. No entanto a dimensão do com quem comemos suplantava essa aparente e absolutamente pessoal percepção, afinal havia um prato de toucinho com crostas crocantes de pele e quem sabe seria essa a iguaria suprema do serviço oferecido. Gostos e opções à parte, a partilha à mesa era real e de grande proveito. Avizinhava-se uma extenuante com o programa a apontar para a segunda parte dos exercícios de Yuri Tuma com “Um Soar Colectivo” ou uma ida aos saberes do fazer construir em terra com os mestres do Cru Atelier para “Possibilidades Construtivas da Terra”. Duas propostas de sobejo interesse, ou não teriam ali lugar de programa, mas confessamos que a vontade de um recanto e o pôr o corpo a jeito de uma desejada sesta prevaleceu.
Há o calor, o corpo pesado e dolente, mas há um instalação artística fundamental para ser vivida aqui — “Lugares de Sesta”, uma proposta pensada e preparada pelo colectivo Pousio. Estes lugares estão situados entre linhas da agrofloresta, e são pontos para uma folguinha — como chamam lá para os algarves à funcional pausa depois de almoço. Aqui esse lugar é corporizado por grandes sacos cheios de lã de ovelhas. As linhas de agrofloresta já produzem frutos e os primeiros deles são mesmo as sombras tão a propósito nesta hora do dia para esta instalação. São linhas de jovens choupos, figueiras, nogueiras, citrinos, sobreiros, salgueiros, marmeleiros, entre outras árvores fruteiras. Na base dos alinhamentos verdejam cactos da Índia, alecrim, artemísias, e outras plantas que ajudam a perfumar, atrair polinizadores e fundamentalmente e manter a cobertura e fresquidão do solo. Miguel Teodoro do Pousio ajuda contextualizar a escolha do material lã como enchimento. “Um produto que agora é obsoleto, porque o mercado não o consegue absorver. Ao mesmo tempo um gesto que é subversivo, ao convocar as pessoas para uma sesta num lugar de cultivo e de produção, e que depois a matéria que convoca a esse gesto pode depois ser integrada como prática regenerativa na agrofloresta como cobertura de solo.” Para Teresa Carvalheira com a tese “Slow & sesta win the race”, na Design Academy Eindhoven (Países Baixos), no programa de Social Design, abordando a prática da sesta e o seu declínio recente, servindo-se do Alentejo como caso de estudo. “A minha pesquisa mais focada na sesta é exactamente porque a deixamos de dormir cá, não conheço praticamente ninguém no Alentejo que durma a sesta”, ficando remetida para grupos não activos da sociedade — “para quem já está reformado, ou de férias, ou que tenha um modo de trabalho flexível, e antes tinha que existir e era uma resposta à paisagem.” Desde então houve uma perda efectiva “com os horários [de trabalho], foram-se adaptando para uma supressão da sesta e a culpa da mesma. Esta constante punição de ‘eu não tenho vagar para isso.'” Com esta instalação, em modo desafiador, “gostávamos de questionar se isto é replicável noutros sítios ou se leva o seu tempo a ser compreendido.” Aqui, nestes lugares, cinco pontos estiveram concorridos na hora depois do almoço. “Este público entendeu a proposta, quando cheguei lá não tinha lugar”, comenta satisfatoriamente Teresa. Também nós nos deparámos com essa lotação — ainda bem. “A sesta está programada somaticamente para depois da refeição, o corpo é que começa a pedir.” neste Pd’O chegou a haver uma ideia de uma programação efectiva para a sesta que acabou por não se formalizar dessa maneira, ficando num espaço de manifestação livre — “há essa dificuldade em colocar um espaço vazio nas programações”, reflecte connosco Teresa. Continuando na linha de acção do recém actuante colectivo Pousio, recordam-nos em conversa o nome “que vem da ideia de descanso, que vai sempre a par com o ciclo da produtividade, são forças em tensão [o pousio e a produção] mas os dois criam um balanço”. A ideia de ter uma parcela de terreno em pousio é vista como um desleixo por parte de quem dela devia cuidar, o que para Teresa Carvalheira “é interessante, porque é um pouco paralela ao estatuto agora da sesta. Uma terra em pousio não está esquecida, está a descansar, está a regerar-se para continuar produtiva. Sempre o descanso refém da produtividade — é impossível largar essa conotação, mas sim, e em especial no Alentejo, temos esta lentidão, do julgamento dos ritmos, que o lento é mau, é preguiçoso. Na verdade isso é mais honesto, é uma resposta a tudo isto.”
A barragem mais junto à área social do Freixo do Meio – a barragem dos soviéticos, como lhe chamam — é um ponto atractivo de chamamento constante à passagem. Neste final de tarde era um local incontornável e inscrito no programa para dar a ouvir a performance áudio-ambiental de Rafael Toral. A designação por si só é cativante, a hora (19h) acresce-lhe maior intensidade e significado e pertinência, estamos presentes para ouvir, mas sobretudo ver melhor o que está diante de nós, sendo que para a grande parte dos presentes o músico está na posição do projector de cinema, neste caso de áudio. Cenário idílico montado na tela viva do Montado. Barragem, como espelho de água e de som, auréolas verdejantes e as matizes dinâmicas das cores de um final de tarde virada para a linha do horizonte. A perspicácia dos grandes mestres compositores e aventureiros sonoros como Toral o é, nome cimeiro dessa boa gente, fazem de cada momento um acontecimento cheio de propósito e compromisso. Não haveria de chegar ali com uma guitarra e o chapim-real para servir Spectral Evolution. Esse magnífico disco, que desde o dia em que surgiu se apresenta como um dos maiores marcos discográficos deste ano. Mas para Toral, esta presença no Pd’O serviria bem mais como oportunidade de ampliar a paisagem sonora, contribuindo para o diálogo dos seres que aqui habitam, ajudar no dar a ouvir. Traz consigo uma “arca” de sons animais, reais ou entidades emissoras de vocalizações — sabemos bem do que tem sido feito o seu longo percurso inventivo na música. Algumas dessas expressões sónicas, ao surgirem, recordam de imediato o seu habitat, seja de um determinado disco, concerto, entidades vindas de circuitos electrónicos manipulados, sejam outras gravações captadas nos seus variados campos de acção. O que ali verdadeiramente se manifestam são diálogos, um tanto como os que na noite anterior Yuri Tuma estimulou a que revelássemos na escuridão. Aqui às claras na progressiva perda de luminosidade do dia, Toral faz entrar em cena acústica sons de aves como noitibós, coaxares de anfíbios — que bem podem até responder da barragem —, há uns rumores do vento nas ramagens, e os sussurros dos que estão a ouvir e a falar. Há um espectro de possibilidades dialogantes, que emparelham em função da necessidade de ouvir e responder, é o universo toraleano em jogo convocando cada um para o lugar. Há uma função imediata, e que é visual — o jogo das nuvens, como se fosse um trecho do livrinho de Goethe a ser lido em voz alta, imaginando um céu a evoluir no espectro sonoro em campo. As nuvens rés-horizonte que se iam tingindo de cores evolutivas entre o índigo e o carmim até deixarem de ser tela disponível e fazer silenciar a fonte emissora sonora, dando lugar somente à resposta que ecoou do lugar resiliente.
Ao jantar, a mesma equipa chefiada do almoço preparou outra ementa, onde foi dada primazia aos sabores fortes e de entranhamento, ao contrário da maior leveza e cor do almoço. Desta feita provámos um primeiro prato frio a que chamam no levante Baba Ghanoush, uma entrada feita de beringela grelhada, pasta de sésamo e sumo de limão, onde o resto vai do dedo de cada um, e Francesco Ogliari teve esse toque, sobretudo ao manter a textura da mistura num ponto nada homogéneo e capaz de diferenciar o que havia dentro. A nossa escolha de prato quente recaiu num saboroso e apurado estufado de grão-de-bico e boletos. Ainda faltam as primeiras chuvas a fechar o Verão para que os boletos se recolham nas caminhadas em zonas calcárias ou dos mármores alentejanos, porém estes que estavam no prato em nada se detinham de sabor a esses que hão-de vir, o molho cremoso que envolvia os inteiros do prato estava de lamber os dedos. Rematamos a janta com um crumble de marmelos cozidos e natas azedas, e esta foi de mestre, mais difícil foi parar de tirar colheradas do prato que afinal era para partilhar… Ups, Alice!
A noite estava programada de uma sucessão de actuações musicais junto a um espaço ancestral do montado — o zambujeiro milenar. A primeira a apresentar-se foi a Francesca Heart, artista que tem na sua página de Bandcamp uma sinopse cativante e enigmática, apresentando-se como “musica, dançarina e investigadora com uma origem vulcânica e marinha do sul de Itália”. Até à noite do montado do Pd’O traz uma sucessão de música computadorizada, que acresce com um vistosa concha de gastrópode marinho, uma Charonia. Ainda neste Verão lançou em formato analógico e de fita magnética, em cassete, Bird Bath pela Leaving Records. Em palco traz essa carga electrónica de meninice, em produção de composições programadas nesse encantamento inocente de criança. Um som aberto servido muito com base num órgão de tubos supurados, como que ventilados ao de leve. Um espaço neste contexto mais concentrado ajudaria à maior imersão que a música necessita, de tão leve e inocente dilui-se na paisagem em redor e os focos de distração nem são tantos assim… A actuação de Heart adquire redobrado interesse na abordagem ao búzio. Através dele sopram vozeados permanentes, pleno de intencionalidade chamativa. Desde tempos ancestrais muitas comunidades utilizam estas conchas fusiformes, sem ápice, com instrumento de sopro, parecendo cornetas, para chamar à faina dos mares ou noutros trabalhos em que se toca a reunir. Ver Heart de sopro conquífero em mão fez a função, neste caso para que fossemos mais a ouvir.
Desse chamamento, quem beneficiou foi Ariyouok. Ari que em criança se fez beatboxer, o recurso mais presente em todos aqueles que têm um impulso criativo da batida para expressar e apenas duas mãos e uma boca para o fazer. Mais tarde fez-se percussionista com uma darbukadjambé. Na noite do Pd’O Ari foi tudo isso, munido da sua fundamental loop station capaz de caldeirar essa mescla de ritmos e batidas confluentes de uma África mais e mais enraizada na Lisboa sonoro-mestiça de hoje. Ari é um comunicador fluido, tanto pelos ritmos como pelos interlúdios das palavras. Tem essa chama dos one man band, e fá-lo com destreza, produzindo batidas de boca, de percussão sobre os quais canta a pairar sobre as melodias — por vezes são mantras, outras cânticos cabo-verdianos. Ariyouok faz a festa e como que o seu nome artístico diz em retórica o que dele resulte no outro. Foi também ele um benemérito para quem o sucedeu junto ao foco da árvore milenar.
A noite haveria de se prolongar até desoras com a prestação aos comandos dos botões das mesas de mistura com oseias.. Este produtor e DJ teve honras de destaque e fecho da noite, que dado o calor que subia desde a terra quente ficou longe de amanhecer orvalhada. Deste lado ainda deu para ver e ouvir o arranque da prestação de oseias., num estilo semi-estático a permitir a instalação suave do seu sistema de som feito de tarrachas nos primeiros instantes, e a quem vimos juntar-se o antecessor Ariyouok munido da darbukadjambé. Mas para quem prefere ver o amanhecer desde um acordar, na vez de seguir acordado até esse momento de viragem da luz da noite para o dia tornou-se incapaz de aguentar o ritmo que então parecia em crescendo, agora a dois. Diz quem lá ficou que a festa foi bonita de se ver, e houve quem tenha comentado ter acordado a meio da madrugada sem saber que ritmo era aquele que ecoava no montado.
O domingo e último dia (15) desta edição de Pd’O acordou lento e preguiçoso — todo um reflexo do vivido até então. A noite para muitos foi longa e o programa arrancava mais tarde que no dia anterior. O montado voltava à luz fresca e encantadora na aurora — sempre será uma recompensa imediata ver o dia a nascer. O programa ditava uma sucessão de acontecimentos prometedores, primeiro alimento musical seguido do fisiológico. Porém as propostas haveriam de ser trocadas de ordem. Começo então pela prática do brunch — como palavra fantasista para referir a junção de pequeno ao lanche. Efectivamente a hora era de uma merenda matinal — a hora da bucha, dos que andam nos campos à jorna. Para o efeito foram implicados dois nomes sonantes, The Gramounce e Aquela Kombucha. Nesta instalação alimentar foram Barney Pau e Inês Coelho da Silva as mentes criativas e implicadas em The Gramounce, que se afirma como “uma organização que reconceptualiza o mundo através da comida. Estabelecendo a comida como uma disciplina legitima nas artes e um veículo válido para construir significado”. A estufa de solanáceas — beringelas e tomateiros — do Freixo do Meio foi o local escolhido para montar uma escultura contínua de alimentos, que apelavam a três níveis sensoriais — visão, tacto e palato. Consistia num fluxo desde o solo e a floresta, passando pelo campo até aos frutos do Verão e a transformação vinda das fermentações — ali era o pão como resultado. Mas na mesa oposta havia outro produto da fermentação, um alimento líquido e vivo. As receitas vindas da ancestralidade de outras culturas tem lugar na modernidade como uma evidência de que o futuro é ancestral. A kombucha é disso exemplo, como resultado do processo de fermentação simbiótica entre bactérias e leveduras naturais sobre uma infusão de chá açucarada. Escolhemos das disponíveis a receita com gengibre, uma opção que se revelou de grande harmonização com a exploração degustativa da instalação de Pau e Coelho da Silva. No principio eram as crostas — tipo telhas mouriscas, feitas de sésamo e bolta. Como pás foram úteis a escavar a cadeia de pasta de lentilhas coroadas por brotos de beldroegas e pequenas umbelas de funcho — simbolizando o solo da floresta e o verde que nele se enraíza. Avanço para o campo verdejante composto por uma mescla de tiras de pimentos verdes assados, com corações de cebolas caramelizadas, dando lugar ao jardim, onde deliciosos figos recheados faziam as surreais delicias. No final era a passagem aos frutos rubros, ao tomate e pimento, ao pão que fecha o ciclo do solo ao prato. Foi a grande celebração alimentar, a que podemos assistir e consumir regenerativamente. Apenas o literalmente asfixiante efeito estufa impediu que se atingissem estados supremos de prazer.
Era então a vez de voltar ao estrado circundante do lago para ver e ouvir “Uma Ode ao Ponto d’Orvalho” servida por Adriana João em violino e gravações de campo, acompanhada por Pedro Alves Sousa no saxofone tenor e processamentos digitais. Sousa que, aliás, refira-se, também vai construindo um futuro, e que resolveu chamar de Futuro Familiar. Trata-se de um selo discográfico que vai acomodando preciosas edições e que tem em RAHU e KETU portas de entrada directas no paraíso para quem se aventura na música livre e improvisada. Adriana João é uma descoberta, temos andado distraídos, certamente atentos a outros e outras, mas às primeiras arcadas desferidas no violino imaginamos o que perdemos até aqui chegados. A ode que trazem desponta com um coro amplo e disperso de cacarejos, galináceos de um quintal que pode muito bem ser de tantos outros lugares que não este. Juntam-se-lhes parodiantes vocalizações — serão de humanos? Serão de cagarras? Pouco importa esclarecer, dão o mote da pujança das aves e dos seus chilreios, o violino prossegue em requintes compassos que abarcam o agudo e o grave num belo efeito envolvente que convoca o tenor a subir em espiral e escutam-se crescentes de batimentos cardíacos. Sousa tem dotes infatigáveis e aplica-se na respiração circular e sopro contínuo do instrumento. Produzem-se descritivas paisagens que se escutam primaveris. Fica-se na esteira de uma narrativa, num fio condutor de um ciclo anual e cuja passagem para uma atmosfera saturada despontada pela palheta de Sousa soube antever como a chegada do Verão. O violino de Adriana ampara na medida da entrada ténue de escassas brisas do tempo marcado pelas canículas, a estação estival, dolente e de arrasto, o tempo é representado pela monotonia atonal vinda do saxofone. Há uma fuga, desencadeada pelas mãos de Adriana, que como os bons vendavais convoca a mudança, sente-se o tempo a mudar, vêm as chuvas e entram as melodias feitas de contrastes, as chaves do tenor operculam-se amiúde e pressente-se a entrada da época das gotas, que começam por ser subtis e que se formam desde o chão — o ponto de orvalho. Adiante ouvem-se descargas vindas dos céus a marcar a entrada dos elementos que compõem o ciclo das estações — frio e chuva, agudos e frases rápidas. Também para o duo Adriana João e Pedro Alves Sousa o futuro pode bem ser ancestral.
A conversa “Ecologia do Solo” prometia dar pano para mangas, dado o relevante e pertinente tema-título. Pensada e preparada por um painel de “cinco posições estratégicas, um laboratório paradigmático para se pensar em conjunto um futuro mais sustentável”, como desafiou ao pensamento e à partilha Andreia Garcia — moderadora da conversa — os oradores convidados. Joana Bértholo — escritora e dramaturga — traz um mote ancestral à conversa. “Um ideia de metabolismo, assimilar e depois torna outra coisa”, a propósito de I Ching: O Livro das Mutações. Desse compêndio dos sábios e filósofos chineses cita um dos hexagramas, precisamente o 27: “Maxilares – Nutrição ou Alimentação”. É a imagem de uma boca aberta, no entender de Bértholo “é um conselho sobre uma ideia de nutrição, que implica tudo o que entra e sai da nossa boca”, complementa a ideia de “qualidade do que comemos, do que respiramos, do que bebemos — mas também a qualidade das nossas palavras, daquilo que dizemos”. Manuel apresenta-se como um dos 55 cooperantes da iniciativa recente que é a Estação Cooperativa da Casa Branca, que inclui ainda 10 coletivos. “Tem como missão a regeneração integrada e participada da aldeia de Casa Branca”. Parte de uma concessão de terrenos afectos à ferrovia e o casario associado “e um conjunto de pequenas hortas urbanas que serviam os operários da ferrovia e que estamos a tentar recuperar […] tentando potenciar esse património”. Francisco Alves surge na conversa como agricultor e gestor de um centro de produção animal focado nas práticas de agricultura regenerativa, tem como objectivo “criar diferentes espécies de animais com o máximo de bem estar possível e com alimentação apenas com o aproveitamento de recursos naturais, sem suplementação e antibióticos”. Tem outra acção no campo, “ajudando outros agricultoras a fazerem a transição para a agricultura regenerativa”, que complementa com uma vertente educativa como referiu. Lara Espírito Santo, que conjuntamente com George McLeod criaram um restaurante com o foco na ausência de desperdício alimentar, começa por intervir na conversa citando Wendell Berry, com “comer é um acto agrícola — cada vez que comemos determinamos como o mundo é usado”. Para Lara é claro o campo de intervenção, “em que os restaurantes têm um papel fundamental na cadeia alimentar, estão estrategicamente posicionados entre os produtores e os consumidores”, isto dentro de uma acção que apoia uma agricultura regenerativa. Mariana Sanchez Salvador entra para conversa como estudiosa de paisagens alimentares, enquanto arquitecta “trabalha à escala da cidade, mas nesta ideia de transição ao interior doméstico, da preparação dos alimentos”. O trabalhar no tema da alimentação e o espaço traz para Mariana uma dimensão “social, ambiental, económica, cultural… De ir buscar conhecimento antigo mas projectá-lo para o futuro”. Mariana tem uma visão de outrora do urbanismo, da cidade e do seu entorno no espaço funcional: “As cidades eram como um ovo estrelado. A gema do ovo era a cidade em si, e depois a clara à volta, que era o que abastecia a cidade”. Hoje esse modelo está misturado: “A cidade é comparada a um ovo mexido, tem bocados de clara, tem bocados de gema, espalha-se pelo território — ninguém sabe bem onde começa e onde acaba”. Na China, como exemplo trazido pela arquitecta, começam a redesenhar a cidade segundo um modelo medieval, segundo um modelo de “eu tenho este aglomerado urbano e que área preciso para abastecer?” Passa a haver lugar a decisões para que aquela comunidade caminhe auto-sustentável, e com razoáveis gestões do uso e ocupação do solo. Mariana relembra-nos que “o solo, apesar de ser um recurso natural, não é renovável”, acrescentaríamos tão só à escala de tempo humana, e é disso que se trata como urgente desse tempo que se esgota para nós, nem tanto assim para o sistema Terra. Afinal as problemáticas discutem-se a cada escala. Passando para o sistema de aldeia, como contraponto de aglomerados à cidade, também a ecologia do solo se debate, face ao maneio e uso do solo, a aceleração da erosão, o abandono do uso e sobretudo o mau uso e condicionantes a futuras regenerações. Para Manuel, é preciso saber integrar nesta práticas os que já estão no território “porque não estão aqui, não participam neste fóruns. É importante ter esse trabalho de integração, para que participem (…) porque essas pessoas estão noutra dimensão”. “O ser humano tende a complicar e opta por fazer o mais difícil”, intervém Francisco. Com isto contrapõe com o uso dos recursos disponíveis, que em grande medida são as escolhas acertadas. Vivemos como que no meio da abundância de recursos, mas errando na forma como fazemos uso deles. “Manter a simplicidade é sempre o melhor caminho”, remata Francisco a sua intervenção para quem “uma boa decisão de manhã, à tarde já vai ter reflexo — hoje em dia conseguimos produzir solo”. Desafiada ao exercício baseado numa ideia de arqueologia futura, com base nos restos de consumo deixados neste presente, como seria a leitura dos nossos hábitos alimentares actuais. “Como seriamos vistos?” Estimula Andreia a Lara. Resume na hipótese de uma palavra, “sintético” — Lara relembra que em grande escala o que hoje se consome é sintético e super-processado. São então os grandes reservatórios — solos, massas de água e atmosfera — que recebem e acumulam esse excedente sintético nas mais diversas formas de decaimentos físicos e químicos, em aumentos exponenciais de inertes que tardam em voltar a um ciclo natural regenerativo. Volta-se à metáfora do metabolismo, fundamental, e trazida por Joana Bértholo no principio. “A industria alimentar, entre todas as restantes extractivas e destrutivas é a baseada em criatividade” repara Lara, na medida em que há essa possibilidade do impacto ser imediato, e “a solução em termos de escala alimentar é a agricultura regenerativa”. Bértholo volta a receber o microfone e lança em resumo retórico: “Porque é que dizemos Natureza excluindo-nos desse conceito? Onde é que no alcatrão termina a cidade e começa o campo? As palavras têm essa ambiguidade maravilhosa — unem-nos, mas também nos separam. Hoje queremos a cidade com todos os animais selvagens que lá vivem também, mas que de alguma forma não estão incluídos no nosso conceito.” Para voltar à constante referência que é para si o pensamento filosófico antigo oriental, onde “não há propriamente uma ideia de dominar. Por um lado observar, compreender, mapear e por outro harmonizar”. “Haverá esse tempo das coisas fora de nós”, talvez uma das frases mais felizes de todas a conversas, “esse tempo do solo, tempo da regeneração, da colheita, tempo de plantar, de semear — é a linguagem das coisas”, como nos diz Bértholo sabiamente. “O antropocentrismo com que habitamos o planeta” perturba esse entendimento das coisas, do tempo para além de nós, que carece de ser entendido e acautelado. “Há a possibilidade de nos contermos um pouco — escutar e fazer silêncio das nossas próprias narrativas, do humano que se coloca à frente das restantes espécies”.
Como derradeira actividade programada estava a instalação-performance “Kaminhu d’Água – Água de Beber” de Jacira da Conceição. Desde a chegada ao Freixo do Meio que vimos uns boiantes seres de cerâmica nas águas do tanque-bebedouro, encanto permanente ao olhar. Também deles provinham sons discretos mas chamativos, quando numa súbita agitação das águas tocavam uns nos outros. Estas ânforas bojudas e de corpo atarraxado foram erguidas à roda de oleira, às mãos da ceramista Jacira em Montemor-o-Novo desde 2017. Jacira trabalha o barro como forma de expressão desde 2015. E neste Pd’O tem instalado no pomar um conjunto de cinco esculturas terracota de forte presença. São figurações totémicas em seu jeito, são como que empilhamentos dessas mesmas ânforas boiantes do bebedouro. Jacira deixa entender tudo quando reúne os presentes para dar inicio à sua acção. O que nos traz, afinal, é o que há-de resultar de um processo colaborativo, é uma caminhada, uma marcha lenta, um ritual em procissão da água. Jacira prepara-se e convida-nos para caminhar com os sobreviventes. No preciso instante em que Jacira se prepara para começar a levantar da água as ânforas, uma há que sucumbe — não resiste mais —, e mergulha a pique até ao fundo. Jacira lamenta e prossegue — “é assim, temos que levar os sobreviventes”. Entende-se o significado do gesto, são vidas personificadas no barro. Também Manuel Calado nos explicava dos menires erguidos do chão como homenagens aos perecidos, aos indivíduos. Voltamos a um futuro ancestral, às práticas enraizadas pela razão dos tempos. Distribuem-se rodilhas às cabeças dos que se chegam a diante para levar no caminho os sobreviventes no lugar do alto. A maior de todas cabe a Jacira, todas transportam água, estamos no Kaminhu d’água. A marcha segue lenta. O esforço, a contemplação e um cerimonial a isso convida. Há uma paisagem escaldante em redor, os pés levantam poeira ao avançar, mas o caminho faz-se caminhando. Há momentos de pausas, as rodilhas passam para outras cabeças e outros e outras transportam os sobreviventes. Há quem siga a suar em bica testa abaixo. Há uma carga acrescida pelo simbólico. Perante quem leva a maior das ânforas há um amparo efectivo de braços em redor, esticados ao alto como que a suportar de forma cúmplice. Magnífica visão do real, os rituais, mesmo que inventados, são disto feitos, de um respeito devocional. Alcançado o lugar, junto das estátuas-totens. Jacira afirma que chegámos, mas ainda ontem oito não sobreviveram a travessia… Alice Artur lê um texto a pedido de Jacira. Recita outro acto ritual performativo de Jacira em Agosto de 2023, em Lisboa, até à Ribeira das Naus, porto negreiro da escravatura de outrora. Ousamos a transcrever trechos das palavras emotivas de Alice sobre o ocorrido para memória futura. “Como uma rainha autoproclamada, Jacira reinterpreta o gesto ancestral de transportar uma ânfora na cabeça. […] Na capital que profissionalizou o tráfico de seres humanos das áfricas e das américas. Este gesto invoca, encarna, reivindica e emancipa a cultura africana, falando calado sobre as interrupções e subtracções a que esta foi sujeita. Num gesto universal e profundamente doméstico Jacira faz de si própria uma escultura em movimento, que congrega símbolos intemporais e de uma potência concentrada. […] O gesto performático, altamente real, e emoldurado pela presença física, concentrada, certeira, emocionalmente evocada, fisicamente potente, larga, dançante e firme do corpo de Jacira. Num misto de candura e soberania feminina naquilo que pode ser um ritual matriarcal. A experiência é partilhada com todos quantos queiram participar e decidir experimentar no próprio corpo o peso da artista, da mãe, da portuguesa, da cabo-verdiana, da carregadora, da mulher que sabe evocar todo o equilíbrio do corpo no carregar do peso da água com a ginga abnegada de quem nutre e fertiliza. O corpo exige um contacto permanente com o centro interno, confiante e firme. Colocar tal objecto na cabeça é passar pelo ritual de passagem em que Jacira nos guia e que só a evocação de todo o corpo na experiência pode proporcionar na totalidade. […] Quando Jacira […] deposita a água que carregámos, há lágrimas nos vários olhos, naquilo que é a testemunha do passado, do presente e do futuro. […] Magia de passagem.” Aqui chegados, e no final da recitação do vivido por Alice Artur, Jacira reparte a água transportada para as demais ânforas pequenas, verte-se a água que viajou para dar de beber aos que fizeram a viagem conjunta, os cochos de cortiça passam de mão e voltam à bica da ânfora até que haja bocas sedentas e água que repartir.
Foi disto feito este Ponto d’Orvalho, bem haja aos que dele tomaram lugar.