LP / CD / Cassete / Digital

Pink Siifu & Fly Anakin

FlySiifu's

Lex Records / 2020

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 15/12/2020

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Como lidou com 2020 a música que mais vezes cita a rua como habitat natural, a música que vive de uma vibração comunal, a música de “hoods” e “inner cities”, de “crews” e “posses”? Como reagiu o hip hop a este ano de distanciamento e isolamento, de dramas pandémicos, de tensões raciais, de absurdo clima político? Foi andando, obrigado. Tome-se este discreto “filme” assinado por dois jovens leões, duas promessas mais do que confirmadas e reconfirmadas a claros golpes de rins que são fruto de talento e trabalho: FlySiifu’s é o registo conjunto de Pink Siifu, o homem que este ano nos deu um dos hinos possíveis para o imparável movimento #BlackLivesMatter no ultra-intenso Negro, e de Fly Anakin, o membro do colectivo Mutant Academy que deixou claro, logo no início do ano, com o fantástico at the end of the day., que está aqui para deixar marca funda.

Fly é membro de uma prolífica família criativa de Richmond, Virgínia, uma activa voz da comunidade artística local que ainda este ano escutámos a rimar em cima dos pesados grooves do grupo de jazz Butcher Brown, e alguém que já assegurou um vigoroso cosign de Madlib, um dos homens do ano com quem estará a trabalhar num novo álbum (FlyLib?…). Já Siifu chegou a Negro com muito trabalho realizado, sobretudo em 2019 (ano em que lançou Ensley e colaborou com Yungmorpheus e AKAI SOLO), que lhe sublinha a imaginação e a versatilidade, duas qualidades que lhe permitiram erguer o seu nome no circuito underground de Los Angeles, onde actualmente se move, ele que aí se instalou após ter sido criado entre Cincinatti, Ohio, e Birmingham, Alabama.

Juntos depois de se terem conhecido em Nova Iorque em 2016 “num pequeno concerto underground, uma cena qualquer SoundCloud”, conforme explicaram à Wire, Pink Siifu e Fly Anakin trabalharam com calma neste projecto colaborativo para que reuniram beats de uma série de autores subterrâneos, mas de reputação crescente, como Budgie (produtor inglês que reside em Los Angeles, que já colaborou com The Alchemist e que é filho do dono da Honest Jon’s…), Ohbliv (membro da Mutant Academy), Animoss (aliado frequente de Roc Marciano), Ahwlee (que já dividiu créditos com Mndsgn), Jay Versace (que tem beats em discos de Westside Gunn ou Boldy James) e, pois claro, Madlib. O tom é jazzy, fumarento, não tanto “boom bappy” no clássico sentido nova-iorque-1994 do termo, mas mais cinemático, sépia, com marcações rítmicas mais discretas e máxima intensidade textural que serve na perfeição as rimas da dupla.



Na já citada peça da Wire, é Anakin que explica as personalidades “artísticas” de cada um: “eu sou tipo uma erva realmente boa… mas o Siifu é mais cogumelos. Alguém tem que acender a erva e alguém tem que agarrar em ti e levar-te para outro planeta”. Verdade. Isso ajuda sempre. Esta dupla orquestrou o conceito de uma loja de discos (e são hilariantes os skits das mensagens deixadas no atendedor da FlySiifu’s Records and Tapes) como uma forma de pintar um retrato da América nestes tempos estranhos. Rima Anakin no tema que tem por título “Richard Pryor” (seguindo dessa forma exemplo já dado pelo sensei Roc Marciano em temas como “Molly Ringwald”, “Dolph Lundgren” ou até “Richard Gear”): “Uncle Sam gave me his hand I put the cash in it/ They taxing my existence and paying for yo listens/ My brother’s culture cypher spread awareness like a sickness/ The way my city setup we don’t never have a witness/ And all that other bullshit never add up with the litmus”. A loja de discos é, afinal, um limbo, um não-lugar, um arcano pilar de comunidades que se têm perdido, ideia aliás extensível ao próprio hip hop com os artistas independentes a serem, na verdade, e paradoxalmente, totalmente dependentes da sua própria capacidade de construir comunidades, algo de muito difícil realização num ano em que não foi possível sair-se para a rua para alimentar essas redes invisíveis, mas que dão imenso trabalho a tecer, sala após sala, clube após clube, pequena loja de discos após pequena loja de discos.

FlySiifu’s é, afinal de contas, uma profunda meditação, sobre a identidade e a sobrevivência. Siifu: “I take 5 steps, at least 5 breath / Think back how they slow Crip/ Fake 5 set, I remember slipping through these cracks/ Back to back, peers right on my neck/ It tows quick everyday, how it goes everyday/ God hit me back, stead the plot, we stand with the plan/ You should know, same hands/ Black hands, just grown/ She used to play about me hearing the phone/ Nowadays small change, anything goes/ Time crazy, my mind take me places I can’t pen, then again I know where I’m at/ Still trapped, doubling back again, bitch you watch/ Nigga, you watch, go get a back”. E, depois, no mesmo tema, “Shloww”, Anakin remata: “See my reflection in this safe next to bullets/ These niggas fingers be real sticky/ I used to have bread from my momma, she live with me/ On wire crazy but they still found time to hate me/ Blame the baby for me shitting on you niggas lately/ This the testament, real shit forever relevant/ We prevalent, carefully smoking the evidence/ Being benevolent”. Duas vozes carregadas de personalidade, cada uma com recorte textural próprio, flows que entrelaçam ideias antes de pensarem na ginástica com as palavras, beats de classe, cheios de pianos e de vibrafones e ecos cósmicos que servem a imaginação da dupla de forma perfeita. É só fechar os olhos e carregar no play para se apreciar um dos melhores “filmes” independentes do ano.


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