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Fotografia: João Duarte
Publicado a: 23/10/2023

Nada deteve a armada norueguesa em Coimbra.

Per Zanussi & Vestnorsk Jazzensemble no Festival Jazz ao Centro’23: uma dúzia certa

Fotografia: João Duarte
Publicado a: 23/10/2023

Palco a transbordar de músicos, 12 como num anagrama ao 21º número de Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra. Penúltimo dia na programação do Festival Jazz ao Centro deste ano e o maior dos agrupamentos desta edição em palco. Oriundos da Noruega Ocidental “Vestnorsk”, das cidades de Bergen e Stavanger, entre os fiordes e a costa do mar do Norte.

Per Zanussi (composição e contrabaixo) coloca-se na curvatura do piano de cauda, que ocupou lugar em palco embora sem pianista desta feita. Na linha de sopros, à esquerda, Didrik Ingvaldsen e Simen Kiil Halvorsen (trompetes), a mediar os sopros Gro Austgulen (violino) e Thomas Dahl (guitarra eléctrica), na continuação dos sopradores Heidi Kvelvane, Elisabeth Lid Trøen e Kristoffer Alberts (saxofones alto e tenor), terminando com Kjetil Møster (saxofone tenor e clarinete baixo), na ponta direita à mesa John Derek Bishop (electrónicas) e na frente, na boca de cena, Børge Fjordheim e Øyvind Skarbø (baterias). José Miguel, timoneiro dos encontros, na apresentação do concerto ainda confessou que havia treinado ao espelho chamar um por um os músicos, mas delegou a desafiante tarefa para Zanussi. Pedro Costa (editor do ensemble na Clean Feed) contou-os um a um na entrada para a sala, que nem organizador de excursão na entrada dos inscritos para o autocarro — e estavam todos, ninguém faltava, uma dúzia de músicos.

Zanussi & Vestnorsk Jazzensemble (VNJE) apresentaram-se em Coimbra em data intermédia das 3 agendadas em solo luso, antes no SeixalJazz’23 para depois rumarem ao Porto para o Outono em Jazz na Casa da Música. São um ambicioso ensemble que, tal como se descrevem: “estabelece a identidade da Noruega ocidental explorando as qualidades e expressão musical dos músicos de improvisação da região”. Tem actividade para além da composição de Zanussi também com Mariam Wallentin. A VNJE reúne músicos que não têm regularmente uma actividade conjunta e conta com a direcção artística de Møster, saxofonista experiente em ensembles alargados, como a Supersonic Orchestra de Gard Nilssen que vimos actuar este ano no Jazz em Agosto em concerto tão festivo quanto grande em número de músicos. 

Na bagagem trazem todos estes instrumentos e que um entusiasta na plateia comentava: “Como trouxeram isto tudo? Não deve ter cabido num avião, devem ter vindo de barco.” Mas já têm bagagem permanente em Portugal desde o ano passado, com o disco editado pelo selo da prestigiada Clean Feed, Li (and the Infinite Game), no qual Zanussi verte a sua composição assumidamente de inspiração nos “padrões naturais fixos e dinâmicos de nuvens, árvores e dunas; no tempo e no espaço; fluxo e caos”. 

Para conferir no concerto desta noite isso mesmo e com a vantagem de que se abririam janelas para o futuro com duas composições tocadas extra disco. Tudo começa num mistério sonoro, vozeares amplos a espraiarem-se, sentimos as luzes da meia-noite de um solstício nórdico, num drama que enuncia o enredo com vozes simultâneas, parcas intermediações das baterias. São, primeiro, as transposições dos padrões nebulosos, como que a mostrarem de que é feito o céu que nos detém. Confesso o gosto pelo requinte jazzístico escandinavo, por isto mesmo, essa carga misteriosa e dramática, sente-se essa matriz também na expressão visual — serão os reflexos criativos das luzes do Norte, das auroras boreais? Ou, por outra mais simples razão, como o ar que respiram e a água que bebem. É disto feita a matriz cultural que divide e desiguala mais que as fronteiras políticas ou as guerras que as estabeleceram. Ouvir jazz nórdico é distinto do que se ouve mais a Sul, claro está, mas é no campo do nu jazz, o jazz do futuro, muito pelo que trouxe Nils Petter Molvær à cena desde a Noruega, claro está. A expressão da VNJE desde as composições de Zanussi espelham essa herança conterrânea assim como mais além com as influências trazidas de um free jazz a beber no Maghreb, ou dos sons do xamanismo coreano. Em “Ground Swell”, tema extenso, em que as trompetes desenham um fraseado muito confortável, ouve-se o VNJE em amplitudes swing a jazzar em solo ondulante, com a electrónica disparada por Bishop a pontuar com brilhantes apontamentos a dança das partes. O concerto levava uma cadência imparável, nada se imaginava poder deter esta armada norueguesa. Mas certo é que os disjuntores resolveram dizer que não aguentavam tamanha carga de palco, e o disparo foi inevitável. Mesmo na penumbra segue o ensemble, na medida das possibilidades acústicas, perdem as electrificações e electrónica, mas seguem. Haveriam de parar mais à frente por uma razão imperiosa e solidária com os elementos à força eléctrica (ou a falta dela) silenciados. 

Retomado o rumo, na incerteza da repetição de tal marasmo eléctrico, voltam à carga. Zanussi partilha o gosto de estarem ali “num confortável lugar embora por vezes um pouco escuro” fazendo referência ao inesperado momento. Num concerto a duas partes forçado, fica a intensidade da segunda onde a energia, ao voltar, carregou ainda mais de intensidade a dúzia de músicos. Notáveis os solos de Ingvaldsen, num trompete estrepitosamente tocado e que era o fio que a electrónica de Bishop tricotava, maravilha nesse saber fazer a quatro mãos. Também Møster fez as delícias em diversos momentos de solos, para além das palhetas em metais, com o uso do clarinete baixo, com rompantes fulgures em oitavas mais abaixo que até então emanadas. Duas baterias para dois bateristas bem complementares, no estilo e na prática, para além de evidente reforço de poder sonoro, há uma razão melódica para estarem Fjordheim e Skarbø lado a lado na frente, para que se veja. Fica na memória sonora “Uragano” qual tema furacão, tempestade maior que estas intempéries que agora a meteorologia apregoa e às quais dá nome. 

A VNJE incorpora todos os elementos possíveis para fazer da música de Zanussi uma eloquente descrição de padrões naturais, com tanto de desafiante que isso representa. Se é certeira a máxima de que os olhos só vêem o que estão preparados para ver, estenda-se aos ouvidos igual razão e nisto haja quem saiba dar a conhecer outras visões e audições, que afinal são tão somente transcrições do mundo que temos diante de nós.


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