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Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 26/12/2023

Como (não) finalizar um longo ciclo.

Pedro Melo Alves e Marta Warelis na ZDB: coreografia dos sons

Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 26/12/2023

Conundrum — nome do ciclo que Pedro Melo Alves levou a cabo na Galeria Zé dos Bois nos dois últimos anos. Palavra estrangeira que exprime um problema que é difícil de lidar, e foi nesse desafio que o músico se colocou, fruindo do navegar, mais que querer vencer um acidental desafio. Num ciclo em que partilhou o palco, em regime de duetos — num total de onze, cada um feito do encanto do primeiro encontro com músicos que admira e com quem nunca tinha tocado, mas certamente desejado fazê-lo. 

Em improvisação, em criação livre e momentânea, ao encontro de novas cumplicidades criativas despertadas no confronto com outras sonoridades, numa navegação por diferentes zonas. Nessa mesma estratégia criativa que privilegia, como contou a Rui Miguel Abreu em entrevista concedida e publicada neste espaço: “Podes e deves [navegar por diferentes zonas]! É a única forma de manter essa chama viva. […] Acho que o grande desafio numa carreira criativa é conseguir manter essa chama viva. Porque o mais confortável é, exactamente, apagar essa chama e viver de uma coisa qualquer que algures no tempo funcionou. […] Mas eu acho que isso também é tudo aquilo que não se deve querer.” Desafiando a zona de conforto — acrescentaríamos, um certo marasmo, evitando as Doldrums, retomando uma linguagem náutica a propósito. Procurando ao invés o rumo mais inquieto e difícil no dito conundrum. 

A pianista polaco-neerlandesa Marta Warelis foi a convidada para a navegação que fechou o ciclo, que se iniciara com João Barradas e que contou com outros convidados de relevo musical — Rafael Toral, Carlos Barreto, Sara Serpa, Ignaz Schick, Audrey Chen, Ece Canli, Violeta Garcia, Odete e Gil Dionísio. Onze concertos que implicaram onze bateristas-percussores desde um mesmo Melo Alves. Na experiência do vivido, no desfio da experimentação, cresceu a musicalidade deste destemido operador de baquetas. Houve diálogos dispares na instrumentação convocada ao longo do ciclo, desde acordeão, electrónicas, vozes, e outras emanações sonoras, o que levou a uma constante (re)programação tanto do modo como na forma do dispositivo sonoro utilizado pelo músico anfitrião. Tal como explicou em conversa à boca de cena, em jeito de “posfácio”, o plano passa agora por uma edição das gravações. Num futuro bem próximo saberemos a forma, se integral levando a um conundrum editorial, ou numa seleção de momentos. Tudo está registado, difícil é a escolha. 

Com Warelis, montou-se um cenário escultórico-instrumental em biombo, num V de vértice à plateia, com a bateria/dispositivo de percussão na face esquerda e o piano vertical, a nu, na face direita. Mesmo no silêncio da espera dos primeiros sons era belo o momento. Warelis tem frequentado assiduamente palcos portugueses, o do auditório 2 da Fundação Gulbenkian no Jazz em Agosto’23, deixou marcas de admiração entre público e músicos, Melo Alves um desses razão acrescida para este convite acreditamos. A sua musicalidade cedo se faz revelar no concerto. Trabalha o piano como um todo, uma caixa de ressonância exploratória, fazendo o melhor uso da sua definição como instrumento de cordas percutidas. E disso se estabelece uma ponte que percorreram ambos os músicos no seu diálogo. Num concerto feito de três momentos separados pela sonoridade despertada do piano tocado em frentes sonoras que o compõem. 

Construção sonora despontada pelo timbre, agudos, na exploração do piano preparado em modo cageano, molas que prendem cordas, que interferem na liberdade da vibração, que Warelis vai preparando em tempo real, num põe e tira, sem perder a mão no teclado. Velocidade de execução estonteante, tilintar hipnótico de notas vizinhas na escala. Melo Alves alimenta e alimenta-se num rumo de uma música mais que tudo contemporânea, que surge feita a propósito do momento, numa construção improvisada que resulta numa sonoridade compostas de camadas. Jogo alternado de feltro-madeira nas baquetas, madeira-feltro nas teclas. Ciclos de cadências apertadas no tempo, ampliando o espaço em construção. 

Segundo momento, despontado pela descida às cordas do “rés-do-chão” do piano. Desde o chão Warelis opera o cordofone vertical, desligada do oficio do teclado, antes centrada na vibração livre e directa das cordas recorrendo-se de cerdas soltas e EBow — dispositivo electrónico de mão indutor de vibração. Na permutação do som, Melo Alves parte para uma acção mais que percutida em tudo vibrante do som. Exploração sónica projectando drones que perduram no  espaço, levando ao tempo em suspensão. Coreografia planar, voar sem bater de asas, ascendendo numa térmica, desde a chama do novo ouvir. Ressoar, convocando a subida desde a base do piano ao alto dos címbalos e gongos suspensos, no plano do palco sonoro, linguagem coreográfica.

Melo Alves progride em campo aberto, tricotando o ritmo, entre madeiras e metais, caixas de ressonância e chapas, as peles e aros são o palco propagador. Dançar com baquetas, vassouras e vibradores sonoros, tudo convocado à linguagem dos corpos de som. Warelis no voltar às teclas, entre harmonias em acordes e as súbitas vertigens sonoras na passagem aos extremos da escala. Com ataque em bravura, num rigor de tempo e modo, eficaz no digitar, como no toque com as costas da mão, abarcando mais notas. O corpo ondulante da pianista permuta-se com o de uma dançarina ao piano. A dança da música vivida na música que dança. O piano a nu e na vertical permite ver tudo, entusiasma a coreografia mecânica dos martelos nas cordas, jogo permanente, ilusão do olhar, ver para além do real.

Fecha-se aparentemente o ciclo, deixando-o num limbo, nas possibilidades de um voltar, pela vontade de permanecer na chama que alimenta e compõem os férteis campos dos primeiros encontros.


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