“Se há um tempo de amargura”, poderá nunca mais ser recompensado depois desta passagem, que, espera-se, não seja a última, do Paulinho da Viola por Lisboa, ele que ainda tem data neste dia primeiro de Novembro no Porto. Corra, atropele quem tiver a audácia de se interpor no seu caminho. De preferência, ao contrário do show da capital, que haja um técnico de som que não tenha fumado toda a maconha da Península Ibérica. Os músicos, e o Próprio, estiveram espartanamente deslumbrantes. É Portela, pô.
No alto — elegante, deslumbrante, sedoso, puro — Paulinho continua a cantar como o menino mais bonito deles todos. Ao seu lado esquerdo o filho, na guitarra; a espaços, a filha à direita, na voz em algumas canções.
Show apresentado como sendo de alguns dos êxitos de um dos príncipes-reis do samba, entremeados com algumas músicas pouco tocadas. Ficou claro que o reportório é tão rico, que os favoritos dos amantes da música dele são tão canónicos como os clássicos, que também o são.
Pois que o Paulinho da Viola não é só o Rio de Janeiro, o Carnaval, o samba, mas sim um filósofo e um poeta (e tanto mais). Um verdadeiro e intrínseco salva-vidas; alguém com níveis de empatia que nos faz compreender que a nossa dor não só não é solitária, como é poeticamente compreendida, a níveis de fundura sem nome. E, por isso, um amigo para lá do nominável. Por vezes com um cravo, castanholas, um trombone, cordas, um surdo. A bem do poema, “mora na filosofia”.
Aos 82 anos de idade, toda a sua candura permanece. Prestou respeito e testamento por inúmeros nomes que marcaram o seu percurso enquanto músico e ser humano. Helton Medeiros, Dona Ivone Lara (vão ouvir já, por amor de deus; “meu samba minha verdade”, preferencialmente), Clementina de Jesus (com quem fechou o concerto, com o seu “Vai, saudade”). Duma enorme gratidão, serenidade, e placidez. Sempre como a sua cara, estampada e correspondida nas memórias das capas e das filmagens do seu trabalho. No meio ainda cantou Cartola, no seu — como todos os seus temas — canónico “Acontece”, falando que “rivalidade só no Carnaval”, entre a Mangueira do homem do chapéu e Ray-Ban e o príncipe da Portela só rola por aí nesses dias. Como pedir mais? Mas havia.
Pelo meio, falando sobre Clementina de Jesus, falou de Clara Nunes e cantou “Na linha do mar”, com a sua filha. Do rio até ao mar, ou quê? Pois bem, teve muito mais daquilo que se espera e doutras coisas. Samba é realidade, então não pára. Podemos fazer mais música assim outra vez? E/ou continuar? Não era bom? Obrigado querido Sr. Paulinho da Viola, por me teres salvo a vida várias vezes. Uma plateia de românticos rendidos a ti há anos. És tão bonito. E a gratidão foi visível: todos de pé por um homem que é uma flor delicada e a mais forte. Adoro-te.
No final, um poema lindo, cujas palavras me escapam, mas que lhe saíram de improviso ou memória, como uma pena na brisa.
P.S.: Encontrei no show o meu amigo Betinho da Roda de Samba, que esteve uns anos no Titanic todos os domingos, com o seu irmão Cícero (e a Tia, que é a sua mãe, a fazer a porta com as colegas) e agora está na mesma data, igualmente todas as semanas, no Village Underground. As bebidas são caríssimas mas a música e a verdade são tão boas que vale tudo o que tiverem no bolso. Gente boa e música ainda melhor. Sonho meu!


