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Fotografia: Lais Pereira
Publicado a: 23/09/2025

3.ª edição do cliclo bracarense dedicado às expressões artísticas afrodescendentes e lusófonas.

PARAÍSO’25: mandar o racismo e o preconceito lá para a terra deles

Fotografia: Lais Pereira
Publicado a: 23/09/2025

O ódio tem passada larga, enquanto que o amor e a compaixão caminham a um ritmo brando. Prova disso são os 37 anos que demoraram para que Portugal reconhecesse o Estado da Palestina, proclamado a 15 de Novembro de 1988. Olhar para o “outro” e admitir que lhe são devidos os mesmos direitos que nós ainda é algo bem difícil de digerir nos dias que correm. Vivemos presos neste elitismo estúpido de que o que é “novo” ou “estranho” precisa de prestar algum tipo de provas até poder ser visto como igual. Infelizmente, esse é um processo com que muitos — quase todos — daqueles que pertencem à esfera lusófona se deparam quando vêm de fora para dentro de Portugal. A bizarria é ainda mais insólita quando pensamos no facto de que até aqueles que já nascem cá — mas aparentam um tom de pele ou um sotaque “diferente” — têm de levar uma vida inteira dentro de portas a serem vistos e tratados como forasteiros. Será sempre mais fácil julgar e dificultar do que apenas aceitar e é por isso que os discursos populistas mais fracturantes galgam terreno a uma velocidade impressionante.

Em 51 anos de democracia, ninguém conseguiu resolver o racismo estrutural presente no nosso país, que agora é mais visível e audível do que nunca. É por isso importante aplaudir iniciativas como o PARAÍSO, que procura dar palco às expressões artísticas afrodescendentes e lusófonas no coração de Braga pelo terceiro ano. É um momento que serve não apenas para consumir a arte mais marginalizada, mas também para nos permitir parar e reflectir sobre os erros do passado, com vista a corrigir o presente e abrir caminho para um futuro livre de preconceitos e injustiças.

Este lado mais humanístico, social e político é abordado, sobretudo, nas diferentes iniciativas extra-musicais do PARAÍSO. Entre quinta-feira e sábado, de 18 a 20 de Setembro, Braga serviu de tela para mais uma exibição do filme Independência, documentário de 2015 dirigido por Mário Bastos (aka Fradique) que explora a sangrenta luta pela libertação de Angola do poder português. Tivemos também a oportunidade de participar numa visita pela cidade guiada por Chisoka Simões, que nos permitiu observar as “memórias, marcas e caminhos da descolonização” presentes em Braga. Estas questões foram abordadas ainda mais a fundo num par de interessantes e pertinentes conversas: as lutas do passado e do presente foram dissecadas num debate entre Sheila Khan, Tiago Vieira da Silva e Marta Machado, com moderação de Marisa Rodrigues (Bantumen); já o poeta, pensador e artista plástico Ruben Zacarias foi instigado pela professora Rosa Cabecinhas a apresentar uma peça nascida de uma semana de residência na Biblioteca Municipal de Braga e a reflectir sobre a história do seu país, Moçambique, e as formas como ela comunica com o resto de África e, claro, com Portugal.

Num país onde parece nascer um novo conservador a cada esquina, essas gentes “do bem”, defensoras do cristianismo quase por defeito, custa a entender como se continua a dar tanta primazia às trevas em vez da luz. Não estará finalmente na altura de ambicionar e abraçar o paraíso? De mandar o racismo e o preconceito para o inferno de onde vieram?



[Uma página de história chamada Adilson]

Tal como em edições anteriores, a música voltou a ser um dos destaques deste terceiro ano do PARAÍSO. E a primeira investida nesta área não foi de uma música qualquer. Foi mesmo um momento mágico aquele que vivemos no Theatro Circo quando a peça Adilson, uma ópera criada por Dino D’Santiago, nos fez mergulhar na triste história do bailarino que dá nome ao espectáculo, apresentada num teatro musicado com a beleza a que o cantor de Quarteira tão bem nos tem habituado em toda a manifestação artística que as suas mãos tocam. Depois de uma sessão de três datas no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, este importante espectáculo comissariado pela BoCA – Biennial of Contemporary Arts seguiu viagem até Braga (19 de Setembro), tendo ainda em vista passagens por Faro (25 de Outubro no Teatro das Figuras) e Aveiro (7 de Novembro no Teatro Aveirense).

Pode até nem se tratar da primeira ópera crioula da história — há registos de pelo menos uma predecessora, a Ópera Crioulo que passou também pelo CCB em 2009 e contou até com a participação especial da saudosa Sara Tavares — mas será certamente uma das óperas mais bonitas de todos os tempos a ter tido a oportunidade florir a partir de Portugal. Tudo acontece graças a um trabalho conjunto entre vários nomes de peso e outros não tão conhecidos, mas que podem muito bem ver as suas fanbases alargadas daqui em diante pelas belas prestações que somam em Adilson, em especial Koffy, que domina como poucos a arte do canto lírico e foi capaz de elevar versos em crioulo até aos mesmos céus alcançados por gente como Maria Callas ou Luciano Pavarotti. Causou arrepios.

Além da jovem que participou na edição deste ano do Got Talent Portugal, também participaram aqui os músicos Iuri Oliveira e Djodje Almeida, mais os cantores e actores Michel Mara, NBC, Soraia Morais, Cati, Rebeca Reinaldo e Rúben Gomes. Toda a actuação foi acompanhada pela Orquestra Sinfonietta de Braga, que cobriu o cancioneiro contemporâneo escolhido (entre originais e covers) com aquele manto mágico dos musicais e das grandes obras clássicas. Dino D’Santiago, o grande obreiro deste espectáculo, faz um cameo logo no arranque da peça, e Adilson, o bailarino cuja história de vida inspirou a narrativa desta ópera, protagoniza o arrebatador final com uma coreografia de hip hop sobre um beat que Tayob J. produziu para Dino em 2022, que tirou toda a gente das suas cadeiras para aplaudir de pé por largos minutos — a maior ovação de todas, porém, aconteceu minutos antes quando a frase “nossos corpos também são pátria”, de “Esquinas” provocou um grande climax.

A ideia que bombardeou constantemente a nossa cabeça foi a de que Adilson é um trabalho que não pode ficar esquecido nem longe do imaginário das massas. O plano desta produção é encontrar mais datas para que o espectáculo possa continuar a brilhar em palco, mas há uma urgência nesta história que nos leva a crer que ela merece ter uma vida eterna nos domínios do digital, para que a sua consulta possa ser aberta ao mundo inteiro — RTP Play, Netflix, ou até YouTube; não importa o canal escolhido, mas sim a oportunidade de deixar que este Adilson toque tantas outras pessoas quanto nos tocou a nós, não apenas pelo brio musical apresentado, mas mesmo até pela pertinência da história contada, que infelizmente ainda se mantém bem actual nos dias de hoje.

Ao longo de cinco actos, a narrativa de Adilson decorre dentro do aeroporto de Lisboa em quase toda a sua totalidade. Fala-nos sobre a história desta pessoa real que nasceu em 1983 na cidade de Luanda, filho de pais cabo-verdianos que se encontravam de passagem em Angola antes de emigrarem para Portugal, onde Adilson sempre viveu desde os 11 meses de idade. Hoje com 42 anos, o bailarino português ainda aguarda pela obtenção do documento que lhe oficializa a cidadania portuguesa, enquanto se vê preso numa jigajoga de processos que só lhe colocam entraves para poder alcançar um estatuto que já deveria ser seu. Mais do que português, Adilson é Portugal: o reflexo de um país retrógrado que faz do quotidiano dos seus habitantes um filme burocrático, com grau de dificuldade e duração acrescido especialmente para quem vem de comunidades marginalizadas. E esta ópera em seu nome marcará para sempre uma das páginas no grande livro da história da música portuguesa. Esperemos que o seu impacto possa, finalmente, fazer mover as engrenagens que têm impedido Adilson de ser reconhecido oficialmente como português.



[Da memória ao futuro no derradeiro acto]

Ao terceiro e último dia do PARAÍSO, Cabo Verde esteve em especial foco através dos dois concertos que deram por encerrada a edição de 2025. Na Blackbox do gnration, dois projectos de grande importância pisaram o palco para nos fazer dançar e mostrar como a música daquele país é muito mais do que mera tradição e tem capacidade para se continuar a desenvolver com linguagens mais contemporâneas. Do lado da história, a Banda Monte Cara brindou-nos com a essência sonora do arquipélago africano, eles que levam quase cinco décadas de história na bagagem. Fundados em Lisboa em 1976, conseguiram fazer a música cabo-verdiana ecoar para o mundo inteiro a partir do nosso país e foram peça importante para fazer com que a sua cultura fosse muito além do continente africano. Entre batuques, tabancas e funanás, o grupo conquistou a plateia desde o primeiro minuto com a sua música quente e a boa disposição de todos os músicos integrantes.

Em sexteto, a Banda Monte Cara é liderada por Fernando Andrade, director musical com amplo historial que chegou a trabalhar por inúmeras vezes com Cesária Évora, mas também com outros cantores como Lura ou Ildo Lobo — das suas mãos sairam os rasgos melódicos num teclado electrónico que fez a vez da tradicional gaita. Nanuto foi quem mais deu a cara pelo colectivo, assumindo-se como uma espécie de porta-voz e desdobrando-se entre saxofone e backing vocals. A colar todos os elementos com o seu baixo certinho, mas sempre pulsante, esteve Renato Chantre, um dos mais incansáveis instrumentistas das últimas décadas pela quantidade de artistas e bandas com que tem trabalhado — de General D e Cesária Évora aos Kussondulola ou Richie Campbell. Referido várias vezes pelos seus colegas como sendo um “prodígio da Guiné”, Jery Bidan fez-se valer desse título com uma técnica de guitarra ultra-apurada, sendo talvez o mais virtuoso de todos aqueles que estavam em cima do palco. Na bateria, Tony mostrou dominar o instrumento por completo, mas não pareceu tão entrosado quanto os restantes membros, com breaks que nem sempre surgiam nas alturas certas. A fazer a vez do adoentado Mário Marta esteve Calú Moreira, irrepreensível pela forma como fez parecer que canta acompanhado por aqueles mesmos músicos há uma vida inteira.

A segunda e última actuação da noite começou bem mais tarde do que a hora prevista. A Banda Monte Cara esticou um pouco a sua performance devido aos incessantes aplausos do público que os trouxeram de volta para um encore e o atraso agravou-se devido às dificuldades que a equipa técnica atravessou na hora de ligar todos os instrumentos que Fidju Kitxora iria necessitar para o derradeiro concerto. Uma hora depois do suposto, o projecto que pega na memória cabo-verdiana e a transporta para o futuro, num contexto de electrónica que vai do laboratório até às pistas de dança, finalmente se fez soar para montar uma autêntica rave na Blackbox do gnration.

Fidju Kitxora surge ao centro a operar a maquinaria de onde surgem beats, samples e efeitos, contando ainda com a ajuda de três preciosos elementos que o têm acompanhado na estrada para a promoção do seu criativo registo discográfico de estreia, Racodja. Henrique Silva e Juninho Ibituruna ladeiam-no ao longo de todo o espectáculo, começando na guitarra e bateria, respectivamente, mas trocando de funções para assumirem algumas percussões a meio do alinhamento. O dançarino Lukanu Mpasi também esteve presente durante a totalidade do show, mas só se faz notar a partir do momento em que sobiu ao palco pela primeira vez. O que parecia ser mais um elemento da plateia era, afinal, parte integrante da performance de Fidju Kitxora, e as suas capacidades corporais não só impressionam como fazem a massa adepta dançar ainda mais. Este é, sem dúvida, um dos projectos musicais da diáspora mais interessantes que vimos nascer nos últimos tempos e estas primeiras impressões que têm deixado nos palcos de Norte a Sul do país deixam-nos bem entusiasmados para aqueles que serão os seus próximos passos. A música de pendor africano criada a partir de Portugal tem uma nova linguagem a ser desenvolvida meticulosamente por Fidju Kitxora e esta porta que se abre pode vir a gerar frutos bem interessantes.


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