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Fotografia: Lais Pereira (Theatro Circo) & Hugo Sousa (gnration)
Publicado a: 16/09/2024

Em nome da mudança.

PARAÍSO’24: da luta pela memória às raízes do futuro

Fotografia: Lais Pereira (Theatro Circo) & Hugo Sousa (gnration)
Publicado a: 16/09/2024

Anunciou-se como PARAÍSO, um lugar idealizado pelo Theatro Circo, em Braga, para “dar primazia às novas expressões artísticas da lusofonia”, aproximando públicos em torno da “diversidade e riqueza das artes lusófonas”. Iniciativa muito bem-vinda num país onde a cultura feita por artistas negros e afrodescendentes vive um momento pulsante, mas onde ainda é raro, para não dizer raríssimo, vermos algum desses artistas programados pela extensa rede de teatros municipais e outras instituições públicas de cultura. Poderá este “paraíso” ser uma pedra na engrenagem? Talvez sim, se este for um gesto de programação consistente, pensado a longo prazo, e, sobretudo, consciente de que a ideia da “lusofonia” tanto pode ser usada para reconhecer, sem hierarquias, a diversidade de vozes, histórias e narrativas que unem os diferentes povos que falam português, como também pode ser utilizada, e é o que acontece na maior parte das vezes, para reproduzir um discurso despolitizado ou ilusório em torno de um suposto mundo “pós-colonial”, onde viveríamos definitivamente pacificados com o passado e orgulhosos da nossa diversidade histórica. Como sabemos, e é sempre imperioso lembrá-lo, não há nenhum paraíso lusófono num país onde um artista negro é morto a tiro por causa da cor da pele, onde uma mãe e mulher negra é violentamente agredida pela polícia, ou onde, como demonstrou a antropóloga Ana Rita Alves, as populações negras e ciganas têm, respetivamente, 21 e 43 vezes mais probabilidade de serem mortas pela polícia.

Há, no entanto, nesta programação levada a cabo pelo Theatro Circo, uma genuína vontade de dar visibilidade a estas expressões culturais sem esquecer o contexto em que emergem e o que representam numa sociedade ainda marcada pelos ecos do colonialismo e da narrativa lusotropicalista. Talvez por isso, nesta segunda edição deste ciclo de programação, à música comprometida, orgulhosa e empoderada de nomes como Mynda Guevara, Berlok ou Soraia Ramos, tenham sido acrescentados outros gestos que se inscrevem na luta pelo reconhecimento da história e da herança negra do país e na projeção que essa memória pode ter na imaginação de outros futuros possíveis.

Foi o que sucedeu, logo no primeiro dia do evento, a 13 de setembro, com a apresentação do livro Tribuna Negra, de José Augusto Pereira, Pedro Varela e Cristina Roldão, que encheu os jardins da livraria Centésima Página. Na apresentação, os seus autores, guiados pelas excelentes perguntas de Marisa Rodrigues, da BANTUMEN, discutiram muita da história ainda não contada sobre as origens do movimento negro no século XX português, a necessidade de inscrição da presença e resistência negras como parte constitutiva da história do país, os desafios do estudo das fontes e a urgência de construção de um imaginário não-branco sobre a nossa história, o presente e o futuro. 

Foi também desses imaginários futuros que tratou Djam Neguin na estreia do seu espetáculo “AMI.LCAR”, onde, a partir do corpo, do discurso, da performance e da tecnologia, encontra a influência do pensamento e legado político de Amílcar Cabral para com ele viajar para o futuro, refletindo tanto sobre a ausência de reconhecimento do contributo estruturante que o líder do PAIGC deu para o 25 de Abril e o fim do regime colonial-fascista, como também inquirindo a forma como o seu imaginário político e ecológico se pode inscrever nas tensões e desafios que o nosso tempo convoca, do pós-humanismo ao fetichismo da tecnologia, da inteligência artificial à relação entre o mundo, a humanidade e a natureza.  

Num presente onde as disputas sobre a memória se encontram com os desafios a outros imaginários futuros, o segundo dia deste ciclo, abriu também como esse cruzamento de tempos, num debate centrado na relação entre a inovação e tradição na música lusófona. A conversa sentou à mesa Mynda Guevara, Berlok e Soraia Ramos, desta vez com a moderação de Wilds Gomes, e salientou-se a importância destes debates acontecerem fora da região de Lisboa, a necessidade de pensar o futuro regressando às fontes e às raízes, e a urgência de construir encontros que superem fronteiras herdadas, nunca esquecendo os problemas da apropriação cultural, as desigualdades persistentes, o papel das indústrias e os desafios que as mudanças tecnológicas trazem a uma música que vive mais da alma que dos números, likes e visualizações.  

Seguiu-se, então, o primeiro momento da programação musical, a cargo de Mynda Guevara, nome incontornável do rap crioulo feito em Portugal, que por esta altura assinala uma década de caneta afiada, papo reto e sem rodeios. Na bagagem, traz um percurso de independência, coerência e resiliência, não isento de dificuldades, mas que a rapper soube transformar em força. Hoje, como o título do seu novo EP sugere, é uma Phoenix renascida, pronta para continuar o percurso que, em 2019, também viu nascer o EP Mudjer Na Rap.

Acompanhada na back por DJ Denycox, Mynda sobe ao palco com a consistência de quem faz da palavra instrumento primordial da performance, sempre investida num rap desenhado para ser realmente escutado. Na bagagem traz as novidades do novo EP, onde a autobiográfica “Fénix” convoca o público para as reflexões que se fazem ouvir nas empoderadas e orgulhosas “Ship”, “Sonho é Meu”, “V” e “Fazi Ku Bo”, com beat de Berlok que deixa os corpos mais soltos, sinal de que esta rapper da palavra também sabe pôr o público a dançar. 

A atenção à palavra é crucial, como dizíamos, num concerto onde não há fogos de artificio ou distrações, e onde esta rapper soberana investe em textos fortes, duros, diretos, ao mesmo tempo que em palco se apresenta com absoluta tranquilidade. Assim seguiu até ao fim, alimentada por batidas de frequências graves e baixos pujantes, mostrando que rima em português com a mesma destreza com que o faz em crioulo. E por falar em crioulo, não podiam faltar “Ken Ki Fla”, “Nha Mundo” ou a pujante “Ês Teni Medu”. Afinal, Mynda não veio sozinha a Braga e, para esta última, subiu ao palco Juana na Rap com a entrega que sempre lhe é reconhecida, cantando com Mynda para, de seguida, ocupar o palco a solo com “Na Luta” e “Rua”. Segue-se Dwalla, o segundo convidado de Mynda, empenhado, com sucesso, em conquistar o público presente. Mynda voltou então ao comando, com seus parceiros ao lado, para a reta final que acabou com o público de punhos no ar, envolvido pelas palavras, o compromisso e a entrega da MC.



Do protagonismo à palavra, seguiu-se a viagem proposta por Berlok, onde a matéria sonora é o centro, moldada de forma inventiva e profundamente singular. O DJ e produtor conjuga, num ideal de futuro, os ritmos e melodias que atravessam a riqueza da música tradicional cabo-verdiana, com abordagens sonoras da música negra e eletrónica global, de frequências graves que fazem vibrar os corpos. Berlok é protagonista de uma história que começa nas raízes e se projeta no futuro, consolidando, cada vez mais, a construção e humanização de uma linguagem sonora nova situada num trânsito onde se encontram a morna, o batuku, o funaná ou kola san jon com o trap, o drill, o hip hop ou o dubstep. Um caminho que aposta em algo nunca ouvido, mas que, como pudemos mais uma vez perceber, se torna irresistível da primeiro à última proposta. Terra Terra!

Depois de Berlok, todos os caminhos foram dar ao Theatro Circo, não lotado mas consideravelmente preenchido para acolher o Cocktail de Soraia Ramos. Esta foi, para a cantora, uma noite de tripla celebração: 32 duas voltas ao sol, dez anos de carreira e o primeiro aniversário do seu álbum de estreia. De toda essa caminhada se falou logo na abertura, onde a voz da artista emergiu no teatro, numa gravação em que partilhou a sua história, agradecendo a todas as pessoas que têm contribuído para que o seu sonho se tenha tornado realidade. Eis, então, o momento da entrada em palco, ocupando o centro da cena, sorridente, poderosa e elegantíssima, de fato brilhante e microfone em punho. 

Segue-se, então, a sua viagem: primeiro com um “Um Pouco de Mim”, lembrando o dia em que decidiu “lutar como uma soldjah”, e depois com “Diz-me”, “Não Dá Ah Ah”, “Meu Marido” e “Segundo Plano”, peças centrais dos primeiros anos de carreira, embora nesta fase o público ainda estivesse morno, mais observador que participante, tudo sentado e bem-comportado. O som também não parece ter ajudado, por vezes demasiado estridente e pouco equilibrado para se sentir o balanço e o timbre quente da cantora. 

Nada que, ainda assim, perturbasse em demasiada o concerto, ou não fosse Soraia Ramos uma performer com um à vontade e uma destreza dignos das maiores estrelas pop, com a vantagem acrescida de nunca criar uma distância com o público, que tanto contempla o brilho da cantora, como com ela interage, numa cumplicidade por vezes difícil de encontrar em espetáculos onde está tudo demasiado estudado e coreografado para criar algum tipo de intimidade.  

Soraia Ramos tem guião, seguramente, mas há no seu show, também, alguma surpresa. Nunca se revela indiferente ao público que tem consigo, a quem se dirige de forma carinhosa e realmente grata. Foi o que se observou especialmente depois da caminhada que começou com “O Nosso Amor”, que avançou por “Olha Para Nós”, “Me Deixou” e que se engrandeceu com belíssimas versões acústicas de “Quero Fugir”, “I Love You Too” ou pelo já clássico “Bai”, todas elas cantadas em uníssono pelo público. 

No meio da viagem, e como era dia de aniversário, ainda houve tempo para bolo, velas e uma surpresa, com a sua família a aparecer em vídeos enternecedores de parabéns e de orgulho. Um momento de intimidade tocante, exemplos de amor que na diáspora alimentam quem parte em busca do sonho de uma vida melhor, fazendo do afeto tecnologia de sobrevivência emocional, familiar e comunitária.  

Já a caminho do fim, o público lá começou a tirar o rabo da cadeira (finalmente!), fazendo a energia da sala subir com os corpos a dar dançar e a cantar “BKBN”, “Muda” e sobretudo “Nha Terra”, carta de amor às raízes cabo-verdianas da artista, cantada em uníssono e com direito a encore, com Soraia Ramos a descer à plateia e a abraçar quem a escutava. Quão revolucionário é ver o Theatro Circo cantar em crioulo e a uma sua só voz?

Um dia faremos essa história que agora se está a escrever e que vai sendo alimentada por paraísos que vão dando oxigénio às mudanças que temos pela frente e que, entre muitas frentes, passam também por mudar a narrativa sobre que corpos, histórias, vozes, línguas e sotaques cabem nas nossas instituições culturais. Este paraíso tem vontade de dar esse contributo, mas ainda parece ter muito para crescer em público e cruzamentos geracionais, sociais e culturais. Braga é hoje o mais jovem concelho do país, aquele que mais cresce, e onde se sente uma vibração cultural que é também fruto da imigração e da diversidade que é constitutiva da cidade. Com as bases lançadas, quão fértil pode ser este PARAÍSO, se for nutrido com um trabalho prolongado de mediação na comunidade, crescendo em número de protagonistas, públicos, linguagens e espaços ocupados? Assim muito o desejamos e cá estaremos para o ver florir.


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