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Fotografia: Kapelli Carvalho
Publicado a: 03/07/2023

Música extraída da raiz.

Berlok sobre TERRA TERRA: “Este álbum faz encontrar estilos musicais e muitas gerações”

Fotografia: Kapelli Carvalho
Publicado a: 03/07/2023

Esta é uma história que começa nas raízes e se projeta no futuro. Estamos no Mindelo, em São Vicente, onde Berlok, ainda jovem, começa a fazer os primeiros cortes em músicas destinadas à pista de dança. Eram múltiplas as paisagens sonoras que nutriam e alimentavam a sua curiosidade, da música cabo-verdiana ao reggae, das linguagens do hip hop à música eletrónica onde o bass é protagonista. Todos esses estilos lhe couberam na bagagem, do Mindelo para Bragança, onde se instalou quando veio para Portugal. 

A vida não foi fácil neste país onde os discursos de abertura e inclusão tantas vezes contrastam com as inacreditáveis procissões ao SEF, onde quem aqui chega é tratado como convidado a quem se está a fazer um especial favor. Nada que, ainda assim, detivesse o sorriso e a resiliência deste produtor apaixonado, que confia no processo criativo e aposta tudo no valor dos encontros. TERRA TERRA, editado em maio, é a síntese de anos de trabalho a tentar construir e humanizar uma nova linguagem sonora, situada num trânsito onde se encontram a morna e o trap, o batuku e o hip hop, o funaná e o drill, o kola san jon e o dubstep, as raízes tradicionais e a experimentação do novo. Um caminho que aposta em algo nunca ouvido, mas que soa a familiar, por partir das raízes fortes e nutridas que este ano também fizeram florescer uma Acácia Maior.

Para falar de toda esta história fomos até aos Jardins de Verão, na Gulbenkian, encontrar Berlok, este inventivo produtor que um dia deixou de ser operário fabril para se juntar a esta revolução. De sorriso generoso, e com o seu álbum a tocar numa coluna portátil, lembra-nos, já depois da entrevista, que não vem pedir nada a ninguém, mas apenas exigir o que é seu. Com todo o mérito, diga-se, que quando se fizer a história do futuro, ela passará por este jardim-utopia, onde todos os corpos são pátria.



Queria começar pelo início da tua história e da tua caminhada. Nasceste no Mindelo, em São Vicente? 

Nascido e criado no Mindelo. Vim para Portugal em 2011 para estudar no Instituto Politécnico de Bragança, que tem uma grande comunidade de cabo-verdianos. É uma comunidade enorme e de lá saíram artistas como Mark Delman, CESF, Jay, Steven R. Pessoas que estão a fazer uma caminhada muito interessante. 

Vieste sozinho para Portugal?

Sim, desenrasquei-me sozinho quando cheguei, num sítio onde tinha nada nem ninguém. Queria fazer design, mas fui para multimédia, que englobava tudo. Eu já fazia design em Cabo Verde, por curiosidade. Já mexia com tudo o que é Adobes, Photoshop, Premiere, com um PC que uma tia minha que vive na Holanda me mandou, metendo mais RAM [risos]. Foi assim que vim para Portugal. Caí aqui de paraquedas. 

Como foi? Não deve ter sido fácil. Ainda por cima foste para Bragança, que é longe, frio…

Nas primeiras noites parecia que a cama estava sempre molhada. Cheguei em outubro mano, a rapar frio a sério, nunca tinha vindo para a Europa. Fui para lá e depois fiz uma viagem para a Holanda, com escala em Frankfurt. Um gajo de Cabo Verde no meio daquilo tudo [risos]. 

E a universidade, gostaste? A integração foi fácil? 

Quando cheguei na minha turma era o único preto. 

E como foi?

Não tenho nada que reclamar. Tenho amigos até hoje. Já têm família, como eu tenho a minha, mas até hoje falamos. Lembro-me que cheguei e já estava bué atrasado. Nós, cabo-verdianos, chegamos sempre atrasados, porque as conexões para virmos são uma fraude, são muito dispendiosas e chegas aqui sempre atrasado. Eu cheguei num dia e no seguinte tinha um teste de álgebra [risos]. Cheguei atrasado na primeira aula, uma aula de desenho, mas logo a seguir no intervalo fui bué bem recebido.

Isso é fixe, há malta que não tem essa história. 

Há malta que não tem essa história e é importante contar a história como ela foi. Estamos a travar uma luta e há muitas pessoas aqui a aproveitarem-se dessa luta para capitalizarem. Temos de falar das coisas como foram. Aconteceu-me aquilo de bem, mas aconteceu-me também muita coisa de mal. Mas não temos de falar só da parte má para nos vitimizarmos. Temos de falar a verdade. É assim que se travam lutas, com verdade.

E na cidade sentiste-te bem acolhido?

Isso já é outra história. Nós estamos lá a estudar e tu não convives com muito pessoal de Bragança, mas com pessoal de Lisboa, Porto, Guimarães, do Minho. E sempre com aquela conexão em Lisboa, porque todos os africanos têm uma base de família, nem que seja um tio ou primo afastado. Quando digo Lisboa, não é Lisboa: é Margem Sul, Cova da Piedade, Amadora, Buraca. 

Então não tinhas muito contacto com pessoas de Bragança. 

Não, só vim a ter contacto quando estava quase a terminar. É um meio muito fechado. Graças a deus abrimos muitas portas. Mas até arranjar casa era complicadíssimo. Tenho um mano do mesmo bairro, que veio comigo de São Vicente. O primeiro estrondo é aquela viagem de 7 horas de autocarro [risos]. Depois chegámos lá e fomos procurar uma casinha. Mas fomos logo recebidos com avisos: “Cuidado, estão a alugar uma casa de merda, sem condições nenhumas, vais rapar frio, vais pagar mais que os portugueses e ainda te vão dizer que te fizeram um graaaaande favor!”. Sem direitos nenhuns, sem contratos, para ficares nas mãos deles. Encontrámos uma casa bué longe, a nossa casa era chamada de “Espanha” [risos].

Como ias para a universidade? 

Na época fazia uns 40 minutos a pé para ir e voltar. No primeiro ano eu saía de casa tipo às sete e meia/oito da manhã e só entrava em casa às dez da noite. Tínhamos aulas de manhã à noite. Depois, no segundo ano, as coisas ficaram bué complicadas em termos monetários.

Trabalhavas nessa altura? 

Não tinha tempo, as aulas não davam tempo. Alguns de nós éramos colaboradores, lavávamos pratos e comíamos de graça. A universidade dá muitas oportunidades, mas é a comunidade que está lá que faz aquela cidade. Nós, africanos em geral, a comunidade brasileira, a comunidade de Erasmus também. Naquele tempo não nos deixavam trabalhar. Tínhamos de renovar a residência de ano a ano e tinhas de ir dois ou três meses antes, ou seja, estás sempre a meter dinheiro, com montes de burocracias. As propinas todas em dia, não podias deixar cadeiras…

Para te renovarem a residência no SEF? 

Sim, e não podias trabalhar. Naquela época tinhas um documento de residência de estudante, se te apanhassem a trabalhar estavas lixado. 

Tempos difíceis, não?

Tempos difíceis, mas bons, fazem um gajo crescer e ver como Portugal funciona. 

Quando vieste para Portugal já produzias música? 

Tínhamos um grupo de dança em Cabo Verde e fazia os mixes para nos irmos dançar. 

E quais são as tuas primeiras memórias musicais, as primeiras coisas que te lembras de ouvir? 

Mornas e coladeiras. A Cesária é muito importante, mas em Cabo Verde há muitos músicos. Tive oportunidade de falar e estar com ela no mesmo espaço, porque há ali um senhor que se chama Ró, que tem um espaço que é o Interart, eu ia para lá depois da escola porque tinha jeito para artes plásticas. Quando a Cesária vinha de digressão ia lá, falava connosco e dava-nos bué de dinheiro, a todo o mundo ela dava dinheiro [risos]. E foi lá que conheci o Vadú. Todo o mundo que é artista ia lá. 

Então e o que é que dançavam nesses mixes que fazias? 

Música eletrónica e também fazia mixes para amigos que dançavam breakdance. Mas eu já curtia música de Cabo Verde e sempre disse que a minha cantora preferida é a Cesária. Há uma música dela, a “Nutridinha“, que está no meu top 10 de músicas de todo o sempre. Tens de ouvir música cabo-verdiana se estás em São Vicente. Está na rádio, a tua mãe está a ouvir, todos os festivais… Quando cheguei em Portugal também já curtia música eletrónica, dubstep, bass music, hip hop com graves… Sempre curti do bass porquê? Por causa do reggae, mano! Vou ser claro aqui: teve uma época em que eu só ouvia reggae! No meu MP3 não ouvias mais nada. 

Que nomes ouvias?

Muito Bob Marley. O meu cantor preferido é o Junior Kelly. Quando lança o álbum Tough Life, mano, aquele álbum marcou uma época da minha vida! Não tínhamos acesso a tudo, como agora, em que vais ao Spotify, quando estás em Portugal… Atenção que a cena não é igual! Ouvia muito o Bob e os filhos todos, Anthony B, Sizzla. Tinha um DVD dos Steel Pulse e eles na época começaram a trazer muitos sintetizadores no reggae. Isso é uma outra conversa, mas os basses do dubstep, do drum & bass, do trap, vem todo do reggae.

Não é só uma questão de BPMs.

Não, é a sonoridade que está lá. A base do reggae, que o sound system trouxe, aquele bass, são frequências que te deixam ansioso, com aquela gana, estás a entender? São sons com aquele pico lá em cima, e aquele bass aqui em baixo. Isso vem de onde? Isso vem do reggae. Mas também ouvíamos muita música eletrónica, hip hop e música de Cabo Verde, que para nós todos é a base. Tens de ouvir Biús, tens que ouvir a Nancy. Todo esse pessoal que veio depois do Bana, da Cesária, estás sempre a ouvi-los. Depois, entretanto, começamos a ouvir muito hip hop. 

Em que altura é que te lembras de passar das mornas e coladeiras para a música eletrónica e para o hip hop?

Foi no 9º ou 10º ano. Nessas memórias tu não mandas, ouves o que se está a passar. A minha família não é uma família de músicos, mas o meu irmão é DJ e tocou numa das melhores discotecas na época, que era a Syrus. Eu ia com ele, via-o a fazer cenas, roubava-lhe os fones [risos]. 

Que hip hop ouviam? Quais eram as vossas referências nessa altura?

No hip hop tuga os álbuns Serviço Público e Educação Visual, do Valete. A minha personalidade foi muito feita à base desses dois álbuns. E muito Boss AC. Muito Sam The Kid. Eu acho que o Sam The Kid é um génio! E os Black Side, dos primórdios. No hip hop americano era o que chegava, era aquele CD que a tua tia trazia. Quando o meu irmão saiu de casa e põe net na casa dele, eu ia para lá e passava um dia para sacar 5 músicas [risos]. Nessa altura curtíamos 50 Cent, Dr. Dre, bué West Coast. Eu nunca fui um hip hop head, mas é um estilo que ouço muito. 

Então e como é que te tornaste produtor? Começaste com os cortes para dança, ainda em Cabo Verde, e depois vens para Portugal. 

Depois venho para cá, começo a ouvir muita música eletrónica com bass, e pensei: “E se conseguisse produzir isto, mas cantado em criolo?” Comecei a pedir aos meus manos de hip hop as faixas e os projetos para misturar aquilo com bass, com dubstep. Comecei a introduzir-me, a trabalhar com os programas, a saber o que é um equalizador. 

És um autodidata, não é? Ninguém te ensinou a fazer o que fazes.

Sim. Eu estava sempre a aprender. O YouTube é o meu professor. Aprendi no YouTube, mas com aquela base dentro de casa. E eu também tocava batucada, percussão, fui capoeirista. 

Já tinhas noção rítmica. 

Tens todo aquele ritmo. Comecei a produzir hip hop e trap em 2014 ou 2015. Em 2016 produzi uma música que se chama “Trenkil”, do Marc Delman, que foi um trap icónico em Cabo Verde. Aí já estava a produzir para músicas. Comecei a fazer trap e hip hop, cenas também perto do afrohouse. Mas chega um momento em que a saudade te pega e começo a ouvir só música de Cabo Verde. Então estou a ouvir aquela música e começo a pensar: “Imagina a Cesária num trapzinho” [risos]. 

Isso para algumas pessoas seria um sacrilégio [risos]. 

Eu quando comecei a fazer música gostava de fazer tudo por mim — as melodias, os pianos sintetizados. Mas vi que a arte do sampling é linda e comecei a fazer uns samples. Comecei nas músicas da Cesária, mas fui a outras.

Ouvi até um sample da Simone de Oliveira, da “Desfolhada.

Esse tá top. Eu gosto bué de fado também. Sou fã da Mariza. Começo então a tentar fazer aqueles samplings e lanço um EP de beats chamado Trap Terra Terra

É nesse momento que chegas ao Dino D’Santiago?

Quando faço esse EP mando ao Dino D’Santiago no Instagram. Não o conhecia pessoalmente, só o trabalho dele. Quando mando esse EP, ele não me responde. Mando de novo, e ele não responde. Então deixo-lhe uma mensagem a dizer que vou enviar todos os dias até um dia me responder [risos].

[Risos] Pois, também imagino que às vezes devam ser milhares mensagens…

Claro mano, conhecendo o Dino como hoje em dia o conhecemos… Somos amigos mesmo. Conhecendo-o, eu sei qual é a cena. Quantas mensagens recebes num dia? Mas, entretanto, ele vê isso, faz uma story e identifica o Branko e o Kalaf: “Era isto que estávamos à procura”. Eu tinha bué samples e estava a tentar ter amigos guitarristas nas músicas, a gravar aquele estilo de morna. Estava a começar a fazer isso e o Dino apareceu: “Porque é que não usas os instrumentos do trap para fazer música de Cabo Verde?”

Mas os kicks, os snares, os hi-hats, fazes tudo no computador. 

Sim. Imagina, vamos fazer uma morna, com aquele sample pack que tenho lá de trap. Eu digo logo que sim, mas chego à frente do PC: “E agora?!” Não há tutoriais para isso! É aí que começo a tentar deixar o estilo orgânico. Liguei ao meu mano Renato Mont: “Mano manda-me aí umas rapsódias, de tudo o que conseguires”. Liguei a ele e a outras pessoas a quem pedia guitarras. Queria que aquilo ficasse homogéneo, entendes? Para chegar lá tive de ir experimentando muito, mas quando consegui fazer o beat do “Terra Terra”, já em 2019 ou 2020, comecei a fazer bué. Então, certo dia, eu já trabalhava numa fábrica de automóveis, como operário de linha, e recebo uma chamada do Dino: “Berlok, vou entrar no estúdio para fazer o meu álbum e eu quero beats by Berlok!”. Eu nem queria acreditar mano… No fim-de-semana fiz três produções! E daí saiu o “Pé Ratxadu” e o “Bitori”. 

Foi mesmo de impulso.

Se não saísse assim é porque não tinha que sair. Saiu mesmo sem esforço. 

Também havia o tempo todo anterior de experimentação. 

Claro. Eu estou a criar esse estilo desde 2017/2018. Estou a fazer aquela humanização do estilo. Não é como um DJ que está a pôr uma batida de funaná e outra de trap nos dois canais. Não. Tudo isto é música feita de raiz.  

Então, mandaste os beats ao Dino e depois?

Sim, fazemos a “Pé Ratxadu” e eu tinha bué ideias para fazer um álbum, mas sabia que ia ser difícil. O Dino disse-me que íamos fazer o álbum, mas eu disse-lhe que não ia conseguir fazer beats sempre. Cada um dos meus beats responde por si, não são beats iguais. Cada beat é uma história, um pedaço de mim. Eu disse-lhe: “Mano, não vou ter tempo…”. E o Dino disse: “Não, vais sair desse trabalho, vais sair da fábrica, vou-te fazer um contrato e tu vais começar a fazer só música!”. Contratou-me para fazer o meu trabalho, o meu álbum. Mudou a minha vida.

Foi generoso. 

Isso é visão, mano. Se hoje tivermos um álbum de um Marc Delman ou de um Loreta, só com aquele tipo de beat, podemos dizer que temos um álbum de hip hop criolo cabo-verdiano. Aquilo sim é criolo, é 100% Cabo Verde. E está a acontecer cada vez mais. O pessoal está a trazer essa sonoridade. O meu álbum já está assim e se um Batchart, um Loreta, um Kiddye Bonz, um Marc Delman, um Ritxa Kursha, um Vado MKA vierem a fazer isso, isso vai ser nosso. Nem o Drake nem ninguém vai fazer como nós. Posso fazer trap, mas os gajos de Atlanta serão sempre melhores. Mas trap com txabeta, com morna? Nisso nunca vão ser melhores, mano! [Risos]. 

E os instrumentos são todos tocados?

No álbum é tudo tocado. O que não é tocado por mim é, por exemplo, uma guitarra que fui pedir ao Jorge Almeida, ao Rentado Mont, ao Henrique Silva. Um produtor musical não tem de ser o músico que está à frente. O produtor põe aquilo em conjunto. Eu sou beatmaker e sou produtor. São duas coisas diferentes. Eu nem sou um gajo de mandar beats, não gosto de fazer um pack de beats e mandar a pessoas. 

Tem de ser natural. 

Tem de ser natural, se não, não chegas à essência da música. A cena não é só misturar. A cena é fazer um estilo que não seja apenas um pedaço daqui e dali colado com cola. Aquilo tem um estudo para ficar homogéneo. Podemos fazer um drill com funaná, em que sentimos o drill, sentimos o funaná, mas, além disso, temos de sentir o estilo novo. Tu e a tua mulher vão ter um filho, o teu filho não é uma extensão de ti nem da tua mulher, é uma pessoa nova. A nossa evolução não foi feita de um ano para o outro. Esse filho é uma pessoa nova, com sentimentos novos, com perspetivas novas. Por isso, esse estilo não é drill, não é funaná, é uma coisa nova. 

Que ainda nem tem nome.

Quando fazes um álbum, lanças o álbum e ele é do mundo. O público é que sente, o público é que dá o nome. Eu dei o meu nome TERRA TERRA, mas o público é que vai dar o nome ao estilo.



Como surge o título do álbum e porquê TERRA TERRA?

Significa “mesmo da terra”. Esse grog é terra terra. Essa batata é terra terra. Kel katchupa é terra terra. Aquele álbum é mesmo da terra, é mesmo terra terra. É uma expressão usada na street

Disseste que o álbum é parte de ti, parte da tua identidade. Quando é que o começaste a fazer e o que representa para ti? 

Comecei a fazer o álbum depois de lançar o “Pé Ratxadu”, foi aí que percebi que era possível e tive a certeza que é esta sonoridade que quero. Esta sonoridade vai ligar-me a tudo. Quando és cabo-verdiano, vais dormir com música e acordas com música. A minha mãe ia dormir com um radiozinho, com o programa da noite que tinha aquelas mornas lentas, e depois acordas de manhã com aquela coladeira a subir e o pessoal a dar-te aquele bom dia. Essa música está dentro de ti, está no teu DNA, está no teu subconsciente. Quando começo a fazer esse estilo, tenho cada vez mais certeza que é isto que quero. 

Em termos do processo de criação, como é que nasceram estas músicas? Qual é o teu método? Recorres muito a samples, cada vez usas mais instrumentos? Que programas usas? 

Uso o FL, Ableton, o Logic quando é preciso, mas o programa não tem nada a ver. É como uma enxada, é uma ferramenta. Cada um usa a ferramenta da forma que lhe der mais jeito. Em termos de processo, começo às vezes por fazer um drum, meto lá um piano, mas depois sinto que ficava bem, por exemplo, uma guitarra do Henrique Silva. Ligo ao Henrique: “Tenho aqui uma coisa, vê lá se sentes” [risos]. Se ele sentir, ele manda a cena dele. 

O Henrique Silva aparece nos créditos de várias músicas do álbum. Foi um parceiro importante? 

Eu e o Henrique fomos do mesmo liceu. Ele vem para Portugal, eu fiquei em Cabo Verde. Depois eu venho para Portugal, mas estou longe. Quando conheci o Henrique, ele ainda não tocava e eu ainda não era DJ. Voltámos a encontrar-nos, ele como músico, e eu como DJ e produtor. 

O universo ligou o que tinha de ser ligado. 

Quando ligámos de novo, fizemos três músicas. Fizemos um beat que está em aberto, fizemos a “Sanjon”, que abre o meu álbum, e logo a seguir, na casa do River Ramos, fizemos a “Passarim” do álbum de Acácia. Depois, quando fizeram o “Speransa” foi a mesma coisa: “Berlok, manda power aqui nesta cena”. Eu lá faço a minha trança. É nessa vibe

E em relação aos textos e aos convidados? Fazes o instrumental antes do convite a alguém para escrever e interpretar? Ou partem primeiro dos textos e das temáticas antes da criação da música? 

Conforme. Gosto de deixar o artista sentir. Se um artista diz que tem uma letra e manda um acapella, eu gosto que esteja à vontade. A partir do momento em que estás a dizer que “esse tema é assim”, já estás a pôr barreiras, estás a pôr uma porta aqui. Não tens só uma porta para entrar, tens bués! E se quiseres, tiramos até as paredes! Por exemplo, o CESF senti-o bué na minha cena. Quando tomou aquilo, foi logo de braços abertos. O rapaz é um artista enorme! Com o Dino, em “Na London”, foi ao contrário, ele mostrou-me o acapella, uns acordes, e eu fiz o beat. Na “Bitori” ele já vai a Cabo Verde e faz uma jam com o Bitori Nha Bibinha…

Ele fez uma jam com o Bitori?!

Com o Bitori Nha Bibinha, atenção! A gaita da música “Bitori”, quem botou foi mesmo o Bitori! Se fores ver os créditos tens lá Vítor Teixeira, que é o nome do Bitori Nha Bibinha. 

Incrível. 

Mesmo. Foi uma jam que o Dino estava a fazer com ele. Depois veio o Jorge Almeida e pôs a guitarra e foi aí que eu peguei e comecei a transformar. A humanização deste estilo foi muito feita numa época em que trabalhava com o Jorge, com ele sempre mandar guitarras. Depois com a vinda do Henrique Silva… Eu digo-te uma coisa, eu e o Henrique temos uma química para fazer música que nunca senti com ninguém. 

Nas várias músicas tu trabalhas com batuku, morna, funaná, kola san jon, tabanka… 

Vai sair um deluxe com coladera. Estou a dar um bocadinho na mazurka. Tudo o que é kola san jon, que é a primeira música do álbum e que tem um ritmo característico, é de Santo Antão, da festa de São João. 

Como é que as gerações mais old school, defensoras do património musical cabo-verdiano, se relacionam com o que estás a fazer? Recebem bem esta inovação? 

Não esperava isso, mas receberam de forma top! O meu álbum é ouvido tanto por crianças, como por pessoas da minha idade ou pessoas mais velhas. Esse é o objetivo. Eu fiz encontrar estilos musicais e muitas gerações. 

É um álbum que dá para ouvir no club a sentir aqueles baixos pesados, mas também dá para estar aqui no jardim, durante o dia, com os miúdos, em família. 

Exato. Posso pôr o álbum lá em casa e ouve a minha mãe e a minha avó. E pode estar em casa mais baixinho, com amigos, enquanto estamos a cozinhar e a conversar.

Foi uma coisa que saiu naturalmente ou foi pensada? Querias construir esse ambiente? 

Eu queria construir esse ambiente e batalhei muito para que esse ambiente musical fosse criado. Se quiseres fazer uma cena straight punk ou straight funaná, fazes. Agora misturar isso tudo para ficar homogéneo e para todo o mundo sentir, isso já é um bocado mais difícil. 

Porque é que achas que a “Perdas”, uma música instrumental e sem voz, é a mais escutada do álbum?

Nunca vais saber. Aquela é a mãozada de piano com que se faz a morna. É como guitarra portuguesa quando é tocada no fado. Tem uma maneira que eles tocam. E aquele cavaquinho que está no fundo, grande props para o meu mano Djony do Cavaco

É uma música melancólica.

É muito melancólica. Eu fiz essa música a pensar em todas as perdas que já tive. Tive perdas recentes de familiares e de um mano meu, o Óscar Monteiro, que foi dos primeiros cabo-verdianos em Bragança, trabalhava no IPB e ajudava pessoal de todos os países. É uma música para refletirmos sobre as nossas perdas. Vamos ter sempre perdas, mas elas não têm de ser em vão. 

Para além das perdas, também há esperança, como na “Calma”, em que se canta que “nem tudo está perdido”. 

Isso é o grande Alberto Koenig. Nós fizemos quatro ou cinco músicas, pedi-lhe uma para estar no meu álbum. Ele disse a “Calma” e para mim foi perfeito. Temos de lutar e temos de lutar com os pés no chão, essa é a mensagem da música.

Ainda nos convidados, além dos que já falámos, tens também a Éllàh Barbosa.

É incrível e uma pessoa super fácil de trabalhar. Estamos a tentar fazer música já há bué, tínhamos lá umas três ou quatro maquetes. Abô gó” quer dizer “Quem és tu” ou “E tu quem és?”. Nesse mundo grande, tantas coisas a acontecer e nós a achar “eu é que sou”, “eu é que sou top”. És um grão de areia em cima desse mundo. O que é um grão de areia numa praia? Quem és tu? Desperta mano! Essa temática foi ela que trouxe. Ela é escritora e compositora, deixei-a à vontade e ficou perfeita. 

Apesar de viveres em Portugal há vários anos, tu não te sentes português, foi das primeiras coisas que me disseste.

Não me sinto mesmo. 

Porquê? 

Não me sinto português porque o sistema não quer que nos sintamos portugueses. Eu nunca me senti à vontade aqui porque nunca nos deixaram à vontade, mesmo com o passaporte vermelho. Já viste a brincadeira que o SEF anda a fazer? O tempo e a burocracia que leva só para renovar um documento? Isso atrasa-te a vida, a vida da tua família, de todo o mundo que está ao teu redor. Isso é igual? Não. Tu vais tirar um BI e quanto tempo demoras? Eles vão a Cabo Verde, montam empresas lá e não estão atrás de um documento como nós aqui. 

Portugal ainda é um país hostil?

Claro que é e eles têm noção disso. As pessoas têm noção disso. 

E achas que a música está a forçar a mudança? Hoje vais tocar aqui na Gulbenkian, num evento que se calhar há 5 ou 10 anos não existiria desta forma. 

A música está a fazer isso, mas mais que a música, são as personalidades. Tens pessoas a romper barreiras, como o Dino, e pessoas que estão a criar músicas que vão ligar todas gerações e culturas, como os Acácia Maior. Todo o mundo sabe que nós, cabo-verdianos, somos grandes músicos, mas quem está a ganhar dinheiro na indústria? Em Cabo Verde temos patrões portugueses, jovens com empresas enormes, a ganhar muito dinheiro e que te dizem em criolo que nunca vão sair em Cabo Verde. Andam na rua de peito aberto, não é como nós aqui mano. Nós não andamos de peito aberto na rua.

Em palco estás de peito aberto.

Em palco, pelo menos naquele momento, eu estou lá a fazer a minha arte. Eu é que mando na minha energia. Quero ser dono da minha energia. 

E agora a imagem: que capa linda! 

Amadeu Carvalho, meu mano! A capa estava a ser feita desde novembro, com horas e horas de conversas. De repente, ele diz-me: “Mano, manda-me uma foto de quando eras puto”. Fui ver e não havia grandes fotos. Mas tenho lá uma foto no dia em que a minha mãe me batizou. Nesse dia estavam lá todos aqueles gajos, que são todos meus amigos, fomos criados juntos. O que é que faz Cabo Verde? É a gente de Cabo Verde, não é a paisagem. Nós somos esperançosos, mano. Nós transformamos aquilo em muito, mas aquilo não é muito, nem está na nossa mão. Nós somos colónias. Digo isso de boca aberta. 

Ainda sentes isso? 

Somos colónias, 100% colónias. É mais fácil colonizar e pôr na tua cabeça que não estás colonizado, para não gerar revolta. Se te quero manipular, ponho-te na cabeça que estás por ti só e fica mais fácil do que estares a pensar que estás a ser manipulado. 

Porque é que, cinquenta anos depois da independência, ainda sentes que Cabo Verde é uma colónia? O que falhou? 

Falhou a descolonização. Cabral morreu, mano. Cabral não podia ter morrido. Mas temos de ser fortes e lembrar que a nossa terra está lá e não pode ficar refém de estrangeiros. Se tu queres revolução, como dizes no Instagram e nas tuas músicas, tens de dar o corpo à bala. Então como é que é isso? Queres ir para a guerra e não queres levar tiro? África inteira precisa de saber que nós temos de tomar conta dos nossos países. Temos de nos proteger. Chega um gajo e diz que quer comprar o teu telemóvel por 5 euros, mas tu vendes porque queres. 

E o gajo depois vende a 500.

Tás-me a entender. Mas ninguém te obrigou. 

A geração do Paulino Vieira, ali nos anos 80 e 90, revolucionou muito a música de Cabo Verde, acompanhada também de grupos como os Bulimundo, os Ferro Gaita ou pessoas como o Orlando Pantera. Olhando para estas novas gerações, sentes que pessoas como tu, o Henrique Silva, o Cachupa Psicadélica, o Dieg, a Éllàh, o Dino, estão a trazer uma nova revolução? 

100%. Não tenho dúvidas nenhumas disso. Há pessoal que está a fazer afrohouse, mas não está a trazer Cabo Verde. São pessoas com muito talento, mas estão a esquecer-se que têm uma raiz atrás. O que te faz diferente é seres cabo-verdiano. Podes copiar o Burna Boy, mas nunca serás melhor que os nigerianos a fazer aquele estilo. O que te diferencia é seres cabo-verdiano. No outro dia ouvi um álbum de techno excelente, só com música cabo-verdiana, e era um de alemão, de Berlim… Porque é que não fazemos nós? Ele não está a roubar, está a pegar no que tu botaste no lixo. 

Este disco é um statment, também. 

Claro. Às vezes perguntam: “Porque é que não fazes esse funk ou esse afrohouse como outros artistas?” Não, mano. Eu sei fazer, mas quero fazer isto. E não faço isto por obrigação, nem para ser diferente. Faço porque é terra, porque me saiu, e quando saiu percebi que a coisa que gosto mais de fazer é esse estilo.


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