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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 14/04/2025

Noite para recordar por muitas e futuras edições.

Ovar em Jazz’25 — Dia 3: das feras num conto saem estados de êxtase

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 14/04/2025

Ao terceiro capítulo, o cardápio da música em tonalidades azuis nas planícies de inundação de Ovar chega ao nome mais longínquo, tanto na proveniência como nas linguagem ao que um dia se convencionou chamar como jazz por simplicidade, certamente só por isso.

Uma vinda mais que aguardada ao Ovar em Jazz foi a do compositor e pianista arménio Tigran Hamasyan, radicado há muito em Los Angeles. Nome maior de uma abordagem na música que faz da ancestralidade um mote de inspirada e arrojada confluência na modernidade. O seu último álbum The Bird of a Thousand Voices é um longo conto épico. Traz essa arrebatadora ideia de “futuro ancestral”, como nos ensinamentos de povos nativos, de uma corrente de reflexão hoje concretizada pelo filósofo indígena Ailton Krenak nas palavras escritas. As mil e uma vozes de Hamasyan são as do conto ancestral arménio “Hazaran Bibul” que relata uma “busca de um pássaro divino e da sua canção imortal […], onde Areg se encontra num caminho sem retorno”. Se assim o diz a tradição, melhor o musica Hamasyan e seus pares. Um disco que nas palavras de Selwyn Harris, para a Jazzwise, “é um trabalho de proporções épicas, com 24 faixas e títulos que os fãs de O Senhor dos Anéis adorariam. Tigran e o seu trio fundem riffs martelantes influenciados pelo nu-prog/metal em metros irregulares de pós-hip hop com uma ambiência etérea semelhante a um coro e uma melodia antiga injectada no folclore arménio pela voz de Areni Agbabian”.  Um disco que o palco revela bem maior na dimensão que uma caixa gigante de madeira ou um par de rodelas de vinil. Há uma narrativa milenar a ser revelada por esta música.

À entrada em cena dos músicos, damo-nos conta da ausência da cantora arménia Agbabian — uma das três arrebatadoras vozes presente no disco, além de Sofia Jernberg e Vahram Sargsyan —, apresentam-se Hamasyan, Yessaï Karapetian nos teclados, Marc Karapetian no baixo e Matt Garstka na bateria. O concerto depressa revela estarmos perante músicos de enormes recursos técnicos, outra forma tornaria impraticável a transposição da elevada complexidade das composições do disco em palco. Tigran tem razões várias para não esconder a radiosa felicidade com que toca. O concerto arranca com o tema-título do álbum, a que alinham em seguida “The Curse”, até chegar “The Quest Begins” e fica estabelecido o início do conto musical neste palco.  Está em curso um voo de “pássaro mítico — cujas mil canções diferentes viajam pelo mundo para espalhar a harmonia — que ganha vida num novo e intrigante tipo de música”, tal como apresentado pelo artista aquando da ideia do álbum, de como tudo começou. A Arménia tem uma ancestralidade que só no escutar do som de um instrumento de palheta chamado duduk já tanto a denuncia. Uma cultura, um povo que tem sofrido em demasia, amassos vários e seculares, cujo genocídio arménio de 1915 perpetrado pelos turcos no Império Otomano é um exemplo. Resistem, sobrevivem resilientes na expressão cultural. 

“Prophecy of Sacrifice” traz a redenção à poética dos emaranhados líricos do piano de Tigran, primeiro êxtase, em cada frase do assobio planar de Hamasyan no alcance dessas mil e uma vozes armenas ancestrais. Essas vozes da mitologia do pássaro são as vozes silenciadas. Perdura esse sacrifício deste povo e cultura. Em Setembro de 2023, o Azerbaijão tomou como seu parte do território arménio da região montanhosa de Nagorno-Karabakh, expulsando populações inteiras, limpando etnias. Após a barbárie, prossegue a malvadez com a queima de antigos manuscritos históricos nos mosteiros arménios. Parece restar pouco mais que gritar na denuncia de um assobio ancestral — estamos aqui e sentimos a vossa razão ancestral, raíz profunda na montanha, o vosso lugar como povo.

Tigran Hamasyan dizia em entrevista de 2022 ao Rimas e Batidas, ainda a propósito do seu álbum de The Call Within (2020) que: “Muitas vezes sinto que há mais apreço pela minha música vinda do mundo não-jazz do que o contrário — eu nunca sou falado na Downbeat ou o que quer que seja. Sinto que estou quase sempre fora da caixa do mundo do jazz.” Estar fora da caixa é fundamental, é desde aí que se diverge que se apontam os novos caminhos, e no seu caso retomando trilhos muito antigos, mas que se saboreiam como absolutamente frescos. Tigran traz essa teia urdindo um assobio, a um vozear, ao loop de um piano feito de mistérios, mas belo e redentor.

Redenção para outro feroz artista em palco. De Tigran sabíamos bem dessa ferocidade com que ataca as teclas, mas ainda estamos aterrados com a deslumbrante prestação de Yessaï Karapetian. Foi arrasante no discurso corrosivo do seu teclado moderno, aquelas frases que se escutam de tema em tema trazem arrepios, trémulos de alma seguramente. Assombro de fusão das partes nesse “Forty Days In The Realm Of Bottomless Eye”, todos os quatros magos músicos-pássaros-feras criam um manto de êxtase que cobre a plateia entregue aos desígnios deste conto armeno. Descemos profundo ou ascendemos alto — escolha é de cada uma e cada um, ambas possibilidades válidas através das linhas de baixo e bateria desafiantes nos compassos, tantas e tamanhas vezes com mudanças súbitas do tempo, ou pelas melodias carregadas de sonho e ancestralidade ao piano e teclados. Desarmados e vulneráveis prosseguimos concerto adiante na redenção do encanto.   

Mas este canto que se escuta traz momentos de parábolas e outros de profecias. Em “Only The One Who Brought The Bird Can Make It Sing” sentimos um lugar de primazia, um protagonismo que cabe a cada um e cada uma desempenhar, na vida pois então. A música tem esse papel de reencontro de lugar do encontro ao protagonismo, dentro de nós. E o grande final aproxima-nos, como nos grandes contos épicos, de um lugar que muitas culturas nos planos metafísicos chamariam de reino. “Kingdom”, tema que abre o álbum, tema que fecha o concerto. É ambivalente, como o são os lugares idílicos, não importa como se lá chega, importa é estar. Tigran começa por abordar o seu sintetizador modular e deixa-o a pairar como esteira de embarque, ao piano convoca os demais em palco e plateia para um grande final, em êxtase (um mais, nunca demais). 

Haveriam de voltar a palco para juntar “The Well of Death and Resurrection” a “The Saviour Is Condemned”. Sim, estamos em tempos de quaresma segundo os preceitos católicos, mas é um tanto por algo disso precisamente que isto assim acontece(u). Haverá em cada cultura diferentes rituais, outros nomes, mas talvez haja um desígnio maior, muito ancestral, antes de se imporem códigos religiosos até nós e dando nome a percepções. Haverá antes de tudo um ideal sentido ecuménico, em relação a toda a Terra habitada. Nessa ideia, essa dita anastase deverá ser a da humanidade, como num voltar à vida ainda a tempo de nos salvarmos da melhor forma.



É de uma enorme ingratidão ouvirem-se mais estímulos musicais de seguida depois de um arrebatador concerto. Todas e todos já o soubemos seguramente, contudo o palco-chão do Bar do Centro de Artes de Ovar receberia depois o concerto Brian Blaker em quarteto. Blaker é um saxofonista que vimos a habitar essa grande comunidade musical que dá pelo nome de Porta-Jazz. Nesse Porto, Blaker vai desenvolvendo e afirmando o seu sopro. É o próprio que melhor se explica quando escreve a propósito do seu novo registo: “Depois de me adaptar [vindo de Los Angeles] à cena musical instrumental do Porto, senti-me compelido a seguir uma direção musical mais pessoal.” Nesse Porto onde tem alicerces uma fundamental casa dos dias de hoje e de amanhã, nos novos tons de jazz — a editora Jazzego.  Balker que chamou a atenção dessa casa com a sua colaboração com outros nomes editados, como Bardino e Minus & Mr. Dolly. 

Agora Brian Blaker tem um super-fresco EP lançado pela Jazzego — Integral Parts. Junto aos companheiros de palco Miguel Sampaio (bateria), Luís Ribeiro (guitarra eléctrica) e Pedro Santos (baixo), trazem essa frescura até aqui, ao Ovar em Jazz. Dele lemos ter no último capítulo de Bowie, em Blackstar um ponto de impulso. É este o bom preceito da música, ciclos, estímulos, fim de brilhos cintilantes que impulsionam outras pontos a luzir. Blaker tem um fraseado quente e límpido no seu tenor, a que alia um sentido autoral que busca esse caminho do novo e honesto. O concerto trouxe ao vivo os três temas que compõem o EP. Serviu “Steadfast” — ainda que ouvido no rescaldo emocional do concerto atrás descrito — e sentimos que tudo faz sentido aqui, um guitarra que chama um tenor e um tenor capaz de seguir novo rumo rapidamente, sem hesitar. Intervalou com outras músicas que vêm de trás. Surge um dos outros três temas do EP em “Op”, que abre esse registo, ouvimos com balanço, tenor a desenhar uma atmosfera envolvente com clamores em que as pausas dos sopros permitem seguir esse groove numa coolness que está ali mesmo à flor da pele. Seguiu-se “Time Left”, fecho do EP e ante-fecho do concerto, tema que se escuta com um tempo descomprometido, feito de três pontinhos, um suspiro longo, que deixa tudo em aberto. Ouvir-se-á ainda melhor numa noite quente de Verão, essas mesmas onde os sonhos nos batem à porta sem darmos conta. Findaram a prestação no Ovar em Jazz com “Voyages”. Cada um(a) que tome a sua. 

Coube a um dos mestres timoneiros da escrita, da rádio e da edição em vinil Rui Miguel Abreu, do muito do jazz de pendor de novos rumos que ouvimos, o fecho do dia 3 (na verdade, pelo relógio, já passava desse dia…). Os DJ sets que dele fomos noutros espaços dançando, foram sempre servidos com recurso ao formato mais pequeno em vinil. Música em 7”, algo como “Small Is Beautiful” como já referia o economista Schumacher. Revelar alinhamentos e sucessão dos temas seria no mínimo um desrespeito. Aludamos ao facto de que há um sábio entrecruzamento de icónicos temas como o incendiário “The Revolution Will Not Be Televised” de Gil Scott-Heron a muito mais do que tem vindo aos ouvidos recentemente nos campos do jazz. Sem as imprescindíveis edições de pequeno formato da We Jazz desde Helsínquia ou as de uma Mr. Bongo de Brighton, Rui Miguel Abreu não seria a mesma coisa a passar discos pequenos, a fazer grandes antologias e a desafiar a anca de todas e todos nós. Há uma história de um certo jazz para ser aprendida aqui, relembrada, ou na melhor das atitudes em desejo — apenas dançada.


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