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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 08/10/2024

Do jazz improvisado ao funk bruxaria.

OUT.FEST’24 — Dia 5: a última dança

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 08/10/2024

Livre, destemido, exploratório. Assim foi mais uma edição do OUT.FEST, festival do Barreiro que, ao longo dos últimos vinte anos, se impôs como uma das mais interessantes propostas no calendário internacional de iniciativas dedicadas às vanguardas. Na Sociedade de Cultura e Recreio 1º Agosto Paivense, a marca — 20 anos a desbravar caminho e lançar pistas para o futuro — foi celebrada com pompa e circunstância. Foi ali que se escutaram os últimos cartuxos de um festival que tardou em arredar pé, prolongando-se até aos últimos minutos de domingo com música, iguarias e algumas surpresas. 

Em modo festivo, e com direito à popular bola de manteiga, doce típico daquela cidade, gentilmente cedido aos últimos combatentes do festival, o dia desaguou numa programação virada para o abandono hedonista das pistas, exceção feita para os concertos de Ghosted e Chuquimamani-Condori (anteriormente conhecido por Elysia Crampton).

O último, de regresso ao país pela segunda vez neste ano, protagonizou um dos momentos mais aguardados desta edição. Em muitos sentidos, o norte-americano de ascendência aimara encarna a essência e singularidade deste festival, trabalhando a história, o território e a identidade a partir de um reencontro com a memória. A sua música é libertária, excessiva, ligeiramente incongruente, cruzando os sons da diáspora andina — como o huayno, a cumbia e o caporal — com um amontoado de samples e teclados desenhados no momento. Foi isso que nos demonstrou durante a melhor parte de 40 minutos, munido de duas keytars (mistura, num só instrumento, de guitarra e teclado) e de um CDJ, manobrando com mestria o equivalente sonoro a 40 janelas abertas em simultâneo, cada uma a conferir o ritmo e texturas necessárias para o som disruptivo de DJ E, essa cacofonia cerimoniosa editada na reta final de 2023 e que configura já uma das mais disruptivas obras desta década. 

Disruptivo foi também o mineiro DJ Anderson do Paraíso, que proporcionou momentos antes uma sessão suada de baile e funk brasileiro. O produtor de Belo Horizonte, responsável por uma pequena revolução que está a acontecer para os lados do Brasil, até pode ser um rapaz bem disposto (nas capas dos seus discos, como o brilhante Queridão, adopta um minimalismo de ferro pintado a preto e branco, igualmente elusivo e ameaçador), mas na mente do mineiro passa-se algo de profundamente perturbador. Só assim seria possível conjurar o caldeirão de graves subterrâneos, flautas sintetizadas e arranjos sinuosos que se escutam nesse disco, lacrado nos metros iniciais do ano pela ugandesa Nyege Nyege Tapes. Foi com esse trabalho como pano de fundo que aterrou pela primeira vez em Portugal, pronto para incendiar a modesta sala de espetáculos do SCR Paivense com uma torrente de versos proibitivos e sons tonitruantes em efeito de ricochete — o DJ como performer e o público, mais quieto que a dançar, imerso na visão distorcida de Paraíso. Vislumbramos alguns raios de luz (“Solteira”, um hit inesperado dos compatriotas FBC e Vhoor, iluminou, por momentos, a pista de dança), mas foi sol de pouca dura. O horror prevalece no som novo e abrasivo do brasileiro. Funk como nunca tínhamos ouvido antes, livre de constrangimentos políticos e formais. 



Antes, os Ghosted de Oren Ambarchi (guitarra e eletrónicas), Johan Berthling (contrabaixo e baixo elétrico) e Andreas Werliin (bateria e percussão) mostraram porque são uma das forças motrizes da nova improvisação. Gente que dispensa grandes introduções, apresentaram um set enxuto que não terá ultrapassado os 45 minutos de duração. Ambarchi, ao canto, é um mago. A sua técnica contém possibilidades múltiplas, esticando os limites do seu instrumento para construir mundos e formas desconhecidas com recurso a um emaranhado de cabos, pedais e demais parafernália eletrónica; Berthling, que ao lado do cúmplice Werliin forma a secção rítmica dos Fire!, é exímio na prática de um jazz contido e económico, certeiro como um relógio suíço; já a bateria do último, pulsante e irrequieta, eleva o projeto a outras planuras, conferindo nervo e textura a uma viagem já por si caleidoscópica. Juntos desafiam os limites da improvisação, entrelaçando de forma orgânica camadas e fragmentos em constante mutação — uma tapeçaria de sons que se vai tecendo e desmanchando progressivamente, até à sua inevitável desintegração.

Destaque ainda para o francês sòn du maquís, numa noite que incluiu também sets da portuguesa carolf e da marroquina sediada na Bélgica ojoo, povoados por sons de diferentes domínios. Com um setup disposto ao centro da plateia, rodeado de algumas dezenas de pessoas, o músico previamente conhecido como Maquis Son Sistèm apresentou um admirável espetáculo de som e luzes manipulados pelo próprio, com escalas no gabber, no techno e no dubstep, bem como um desejo involuntário de nos transportar para a deriva interior. Música para o corpo e para a mente, física e desafiante. Não temos dúvidas: vamos ouvir falar mais dele.


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