Para contar o passado (recente) da música aventureira e livre em Portugal é necessário incluir o OUT.FEST – Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro. Surgido em 2003 quando o país tinha apenas em pontuais palcos espaço para ver e ouvir “outras músicas”. Terminava o Co-Lab – Festival Internacional de Música Experimental, no Porto, e o Ó da Guarda – Festival de Novas Músicas, na Guarda. Ia-se implantando a Galeria Zé dos Bois em Lisboa, e poucas mais iniciativas contavam para fruir de uma música que os ouvidos queriam escutar e que nem sabiam existir. Foi das gentes inquietas e do associativismo — muito identitário do Sul — que começou a aventura desta ideia de organizar um festival das margens da música, mas fazendo disso uma corrente, um movimento. Hoje ter essa noção é gratificante, pela contribuição de tirar a programação destas estéticas musicais de um lugar marginal, contudo mantendo-as no seu espaço criativo natural — à margem, na bordadura dos conceitos, nas linhas de fronteira, num espaço indefinido.
O Barreiro é esse lugar de margem geográfica e do Sul — a marcante Margem Sul, a outra margem do Tejo frente a Lisboa. Aglomerados populacionais para servir os adventos do industrialismo de outrora. Hoje, nele coabitam espaços devolutos fabris com as iniciativas e expectativas de lhes fazerem novos usos, alguma ideia vem inscrever-se numa viragem da fábrica como centro cultural. Hoje essa é uma revolução cultural em curso, que sucede e retoma alguns dos espaços onde se deu essa outra feição industrial — e inconsequente. A cidade que cresceu com a Companhia União Fabril (CUF) e outros impérios industriais tem agora novas siglas fundamentais como a PADA, bem como associações artísticas que promovem e desenvolvem a produção da arte através de residências de artistas, a ADAO – Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios. São a resposta, a reinventarem uma outra produção. A OUT.RA é uma dessas “novas fábricas” do Barreiro, tem feito do OUT.FEST um dos seus melhores produtos na linha de montagem. É hoje um festival imprescindível e contaminante — também esta outra indústria produz descargas desde a sua zona de laboração, mas essas são fonte de inspiração. ZigurFest na distante cidade beirã Lamego é um reflexo do que acontece desde o Barreiro. A OUT.RA vai intervindo ainda noutros momentos do tempo fora do festival, com a construção do Arquivo Sonoro do Barreiro e o Sonica Ekrano — festival de cinema documental dedicado à música e às margens populacionais e culturais. O Barreiro tem essa identidade criativa, inconformada e irreverente, faz parte dos que aí estão e que aqui vieram parar, fazendo da margem um ponto de partida mais que cais à chegada.
O OUT.FEST tem servido nestes 20 anos como campo das (im)possibilidades, trazendo para se ouvir manifestações culturais como atrevimentos — Panda Bear, Oneohtrix Point Never, Wolf Eyes, William Basinski, Stephen O’Malley, Oren Ambarchi, Matana Roberts, Caterina Barbieri, Kali Malone ou Peter Evans são hoje nomes que soam por si mesmos em quaisquer outros lugares. Foi nestas duas décadas feitas de liberdade na programação que surgiram e cresceram com palco impulsos criativos sonoros do panorama nacional mais recente — Odete, Polido, Yaw Tembé, Clothilde, HHY & The Macumbas, o catálogo de nomes da Príncipe, Carincur, Joana de Sá ou Rita Silva —, a que se devem juntar os que já tinham deixado de ser emergentes, como Rafael Toral, que teve seis actuações e desenvolveu parte do seu Space Program nas edições do OUT.FEST. Foi fundamental programar quem se aventurava da música partilhando cartaz com desbravadores de terrenos, nomes como uns The Fall, Faust, This Heat, Pere Ubu, AMM, David Toop, Dalek, Peter Brötzmann e Laraaji, para mostrarem aos demais que era possível. Disso o festival fez ligações estéticas improváveis, que têm trazido vertiginosas correntes até outros campos além do free jazz e das linguagens improvisadas. Rodrigo Amado é presença assídua, por isso mesmo importa ter a sua renovada Unity como ponto de (re)começo para a edição que está a começar. O festival marginal dos grandes eventos e que continua a programar mais espaços inusitados para a música — as oficinas gerais da EMEF foram exemplo, onde nas naves de manutenção de material ferroviário se ouviram outros sons de metais, as peças do gamelão de Java pelo Ensemble Nist-Nah de Will Guthrie em 2022. O OUT.FEST como espaço de liberdade de expressão social, com palco e microfone num “quase inimaginavelmente mais non-white-male artists do que se poderia imaginar”.
Vital é garantir também um lugar na memória futura. Esta edição, de certo modo, já está em curso pela mostra de 20 fotografias da barreirense Vera Marmelo, que se fez fotógrafa também muito pelo OUT.FEST. A exposição ao ar livre, na praça junto ao Mercado 1º de Maio, numa mostra representativa em três blocos: “o espaço, a música e o público.” O arranque dos dias de festival (2—6 de Outubro) — “out” que se lê como do mês do ano tal como do anglicismo “fora” — terá um marco como a apresentação e lançamento do livro comemorativo OUT.FEST 20 Anos. Vem das palavras dos próprios, que o imaginaram e agora aguardam (im)pacientes o momento da partilha, e que assim confessam: “Romantismo, talvez, de quem confere importância à palavra impressa, à fotografia, à ilustração, à reflexão, não tão diferente do romantismo de quem ainda e sempre acredita na Música como bênção insondável no Estar Vivo.”