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Fotografia: Pedro Roque
Publicado a: 13/10/2022

Flashes gerais. Aqui e ali. Por todo e nenhum lado.

OUT.FEST’22 – Lado A: terra estrangeira

Fotografia: Pedro Roque
Publicado a: 13/10/2022

Uma praceta qualquer. O espaço sobrante de um prédio que se foi acrescentando de um lado, do outro um muro que resiste. Assim se definem estes limites. O que qualquer defensor da arquitectura de magazine crucificaria não só conforma um lugar de encontro como é a entrada para a Biblioteca Municipal do Barreiro. Lá dentro, uma antessala a lembrar consultório de dentista sem seguro de saúde e uma vending machine que quase faz ter saudades dos cafés espanhóis. Mas: as memórias. A recordação de uma tarde com Cândido Lima (OUT.FEST 2018) e a partilha de histórias, saberes e partituras. Outra mais recente, no auditório — o concerto de Vasco Alves (OUT.FEST 2021). Recordações estilhaçadas que nos fazem correr para o barco, desfraldar a camisa e querer ser dos primeiros. Não perder segundo da conversa com Amirtha Kidambi e David Toop (dia III – OUT.FEST 2022), o último que é um “vulto” da teoria e da música experimental. Tê-lo acompanhado nas duas sessões de Sharpen your needles, no Auditório da Gulbenkian (Jazz em Agosto 2016), é razão maior para abrir caderno e apontar tudo, não se vá dar o caso de haver linhas interrompidas. Das memórias da Índia e os estudos de Amirtha nos Estados Unidos, da primeira carta ao director da BBC Radio escrita por Toop e das cassetes que gravou a partir dos discos que a própria rádio emprestava ou ainda referências musicais que passaram por Debussy, Roscoe Mitchell e música marcial turca, tudo confluía para conceitos fundamentais como apropriação, mudança, comunidade. Longe de uma narrativa linear, o OUT.FEST nunca o foi, começar pelo que aqui se falou é fundamental para se compreender a programação que se vai consolidando, como poucas, muito poucas mesmo, em Portugal. Novamente, as memórias, sempre elas, e perguntar-nos onde estávamos no dia 4 de Outubro de 2021. Exactamente, no Baía Tejo – Barreiro, deitados em colchões a ouvir a espacialização de uma obra de Éliane Radigue. Serve mais esta faísca de memória para afirmar argumento – a música é essencial, como arte, e sem recorrer a multidisciplinaridades encapotadas para uma discussão muito válida sobre conceitos tidos, pelo menos para quem escreve, como relevantes.

Passemos ao auditório (dia III – OUT.FEST 2022) e, logo após a conversa, ao concerto de David Toop. Na mesa, um conjunto de objectos criteriosamente dispostos. Uma verdadeira colecção do quotidiano. Um balão, folhas dobradas em funil, microfones de contacto, pedras ou berlindes, outros pequenos objectos que estamos em querer serem baratas ciborgue, haverá sempre lugar à imaginação, mesmo no meio da tarde. A contenção com que toca cada um deles, a abertura com que abraça o silêncio, a ligação que estabelece com cada elemento, o lugar ao imprevisto que assume sem melindre, mesmo quando uma esfera lhe escapa da órbita. E sim, há um conjunto de sons, ornitologia de hemisférios vários e outros pré-gravados, das cassetes que Toop guarda há largos anos, as tais com base no arquivo da BBC Radio. Há sopros que vai introduzindo em momentos específicos. 30 minutos, menos do que estava anunciado, mas quem se importa? Momento luminoso, um lado escolar que se aprecia e incentiva. Tanto assim, que poucos se espantam com a utilização de “não instrumentos”. Se tal sucede, estamos quase certos disso, é por uma assiduidade ao OUT.FEST, não só, mas em grande parte. Voltemos à conversa – apropriação cuidada e nunca imperativa, comunidade, talvez seja conveniente começar a escrever comunidade(s), não só pela heterogeneidade dos elementos que a constituem, mas como estruturas altamente mutáveis no tempo e espaço e nas ligações que se vão gerando entre cada célula.


Foto por Vera Marmelo

De comunidades várias se falou no concerto de Amirtha Kidambi + Elder Ones (dia II – OUT.FEST 2022). Vamos continuar na esfera do político, pela simples razão de que foi elemento marcante no concerto e festival. Os murais que ladeiam o palco no salão da SIRB Os Penicheiros, cravos idealizados e que por momentos davam a sensação que seguravam as colunas do P.A., mas sobretudo para o que Amirtha alertou – “late capitalism” e a ascensão do fascismo – os perigos de um futuro incerto, mas com certezas bem vincadas – a permanência das desigualdades de natureza vária, a tentativa de perpetuação no poder das classes dominantes, sejam de que natureza forem (económica, cultural, racial…) e que estratagemas usem. Em cada intervalo para novo tema, um risco na consciência. As questões da raça que não se fecham em si mesmas, mas que servem de chamada de atenção para as estruturas de poder que se perpetuam, mesmo na sua imagética. Urge destruir todas as estátuas, aqui discordamos de Amirtha, não ansiamos por novas, queremos que a exposição social se faça através de outros mecanismos. Exigimos, como Amirtha, que Black Lives Matter não se esgote nas manifestações no tempo da pandemia, que não seja somente contra o fascismo da violência policial, que seja libelo contra e qualquer tipo de fascismo (na Suécia, Itália ou Índia). Queremos que a fobia contra o estrangeiro, como contra os asiáticos no tempo da pandemia nos E.U.A., seja acto perpetuamente condenado, porque abjecto já o é. Não há moralismo, há comportamentos. Como quando se escreve tema sobre a condição miserável dos agricultores na Índia. A exploração não é ilusão é real e há quem a sinta no corpo. Um quarteto com Amirtha (voz, electrónicas e sanfona), soberbamente acompanhada por Alfredo Colon (saxofone), Jason Nazary (bateria) e Lester St Louis (contrabaixo). Instrumentistas de excepção e magníficos desenhadores do imprevisto. Não há um caminho único e por aqui vamos.

Memória. Memória como pilar fundamental. Se há quem trabalhe este tema e a relação com a herança e património comunitário é, sem nenhuma pontinha de exagero, Nicole Mitchell (dia II – OUT.FEST 2022). Desta feita sem estar integrada no ensemble de Rob Mazurek ou a acompanhar Moor Mother, como na recente edição do Jazz em Agosto. A solo, no palco iluminado de uma forma sui generis – electrónica, flauta e voz. Temas que se vão sucedendo num registo equilibrado entre electrónica e flauta. Alguns pequenos percalços de todo comprometedores. Cristais poliédricos vindos de vocalizações muito particulares e numa conjugação muito feliz com os sopros. No limite do que os especialistas podem considerar de bem tocado, um objecto estranho de uma arquitectura espiritual invulgar. A convocação dos espíritos do passado, vivos e mortos ou mortos e vivos, quem é quem, em feliz harmonia, olhar sobre o escuro para ver futuro. Concerto curto, breu luminoso. Alicerçado no espólio de Chicago. A nesga de porta que se mantém aberta. 



Permanecer no salão, e que salão, da SIRB Os Penicheiros para convocarmos outras ancestralidades. Sons polifónicos, exercícios de encaixe, na minúcia de movimentos atemporais. Poly Vuduvum (dia IV – OUT.FEST 2022), numa apresentação bem mais conseguida do que a que assistimos no terraço da Appleton – Lisboa (2021). Sonoridades coesas de cada uma das músicas (Marta e Diana), a construção de momentos e das ligações entre cada um muito mais bem amarradas. A abrir, frequências de rádio “emitidas” por Marta, enquanto Diana, fora do campo visual do palco, dava socos em saco de boxe. A famosa colher de pau, incrustada de pequenos circuitos acompanhada com vocalizações e dizeres de uma língua pré ou pós-civilizacionais, desconhecemos a origem, por parte de Marta e, simultaneamente, marcações precisas no timbalão por Diana. No final, o regresso ao momento iniciático, o da infância, muito afastado da idealização que se cria desta idade, quase como a vontade de uma outra construção ou pelo menos assim o interpretamos. 

O acaso, ou talvez não, leva-nos novamente a esse lugar de encontros formais, a Biblioteca Municipal do Barreiro. Concerto de Dies Lexic (dia IV — OUT.FEST 2022), dupla de Inês Tartaruga Água e Xavier Paes, cada vez menos anónimos nestas lides e que se apresentam num registo “de uma certa pobreza bendita”, uma expressão tão bem conseguida, mais uma, de Bruno Silva (autor dos textos de apresentação). Como os próprios se auto intitulam, numa “Cripto Anarquia Psicadélica”. Haverá maior manifestação programática? Recurso de meios limitados, os “pífaros” de barro, os sons a lembrar os pássaros. Há sempre uns pássaros que teimam em correr mais do que nós. O tom é relaxante. Paisagens falsamente bucólicas, a convocação no escuro das razões e emoções que nos ateiam. Já nos dizia Nicole Mitchell. As electrónicas como suporte e na justa medida, instrumentos de cordas construídos pelos próprios que vão introduzindo lentamente. O arco para acentuar texturas. As memórias, as memórias que se reconstroem. Um exercício bem mais comprometido do que recentemente se assistiu nos jardins do Museu da Cidade – Lisboa, no âmbito da Jovem Guarda Ambiental.



Apropriação. Apropriação cultural e o quanto se ouviu e falou dela ao longo dos quatro dias. Os limites da mesma, os cuidados a ter, o respeito pelas culturas ancestrais, o que é ou não autoral, o que é uma simples cópia. Will Guthrie & Ensemble Nist-Nah (dia I – OUT.FEST 2022). Um ensemble com nove elementos e um instrumento comum – o gamelão. Um espaço novo — as Oficinas da CP. As recordações visuais são difusas, passou-se uma semana. As sonoras mantêm-se. Um palco bem no centro das oficinas e um conjunto de instrumentos percussivos mais ou menos reconhecíveis para os ocidentais, duas baterias, e vários gamelões disposto no chão. Um ensemble que não se fixa nos limites do palco. Roda, “esconde-se” atrás de pratos adamastorianos, convocam-se sonoridades simples através de instrumentos mínimos. Há uma tela sonora variada, um pouco mais free, um pouco mais melodiosa, por vezes a convocar espíritos malignos — um certo pós-rock. Aí está ele – o cão de Java. Um cão que ladra, já no final do concerto, a recordar aos presentes que não se trata de uma apropriação descarada de um baterista australiano. Há uma proximidade geográfica entre a Indonésia e Austrália, mas há uma convivência cultural muito estreita entre comunidades, motivadas pela emigração.

Imaginação. Espaço aberto e sempre cultivado. Mais um dos pilares fundamentais para a construção dos vários sentidos comunitários. Desenho para desejos. Pegar na fotografia do Vítor Lopes, aquela com as duas cadeiras da Expo e mais outra, num descampado qualquer do Barreiro. Sentar-me ao lado da Phew (dia III – OUT.FEST 2022). Percorrer com ela caminhos de uma melancólica futurista. Senhora de fundamentos punk e inúmeras colaborações. Deliciou-nos com um dos momentos únicos do festival. A necessidade de se criar um círculo em volta, a vontade de estar atento. Diminuir o ruído que, por momentos, comprometeu o concerto. A tudo uma calma ascendente. As vocalizações mais etéreas, uma camada electrónica mais próxima do ambient. Outros, sonoridades bem mais “dançáveis”. Cabelo que esconde a cara. Sentada. Condutora da esperança.



Na mesma sala, na ADAO, por onde já passaram group A, Russell Haswell, Ilpo Väisänen entre tantos outros, e no mesmo sítio onde tocou Phew, lugar para outro dos momentos sublimes do festival – Audrey Chen (dia IV – OUT.FEST 2022). Presença mais ou menos regular no nosso país, com concertos anteriores no Barreiro e na Associação do Moradores da Bouça – Porto, com Alexandre Soares, só para referir dois exemplos. Se em Phew, por vezes, o caminho se tingiu de melancolia, com Audrey os contornos foram bem mais vincados, a intensidade foi incessante. A utilização da voz é uma das marcas distintivas do seu trabalho. Como a convoca. A electrónica reforça um carácter pré-demência que aceitamos sem hesitações. É gutural, são silvos de planície sem fim. É deixar cair uma certeza, terá sido alguma vez – a coerência não se alcança, teremos de?, pela repetição temática. A liberdade repousa na capacidade de combinações quase infinitas sobre campos de tangentes próximas. A provar a comparação entre este último concerto e o com Alexandre Soares. Mais uma certeza que se desvanece – podemos voltar onde fomos felizes e juntar mais uma cadeira – para mim, para a Phew e para a Audrey. Lugar ao egoísmo e à incoerência. Porque não?

Pensamentos cortados, concertos vistos e omitidos. cavernancia + Maria da Rocha, Eve Riser e carincur, que estamos certos conformam o Barreiro e o OUT.FEST em particular como LEI, ou seja, Lugar de Encontros Informais e que a partir da música nos impõem reflexões várias. Todo o acto é político e, por extensão, toda a música é política, em formulação alternativa quase toda. Barreiro como Terra Estrangeira (filme de Walter Sales), lugar para todas as ilusões, todos os encontros, todas as informalidades e uma certeza – uma programação construída sob tangentes de valores comuns, de partilha. Voltamos a apanhar o barco?


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