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Fotografia: João Beijinho
Publicado a: 09/01/2023

Embriagados com tanto talento à disposição.

Ouro Incenso e Birra’23: onde a música nacional foi rainha

Fotografia: João Beijinho
Publicado a: 09/01/2023

Dificilmente haverá melhor forma de começar um novo ano. A programação proposta pelo Lisbon Beer Department para o passado sábado era tudo menos irrecusável e levou uma batelada de nomes do cancioneiro alternativo nacional até aos palcos das cervejeiras de Marvila — neste caso a Musa, Dois Corvos e Lince, tendo a Oitava Colina ficado de fora do circuito já mais em cima da data, o que provocou algumas alterações ao nível do alinhamento inicialmente anunciado.

Mesmo sem tréguas por parte das nuvens carregadas que cobriam o céu de Lisboa, fomos atraídos até este mini-festival, tal como um infindável número de outras pessoas que, principalmente após a hora de jantar, inundaram por completo os espaços onde se realizavam os concertos. Nos derradeiros espectáculos acolhidos pela Musa, por exemplo, formou-se um carreiro de gente com vários metros de cumprimento. Ansiosos e ensopados, poucos eram aqueles que desistiam da tarefa e ficavam largos minutos à espera que alguém saísse para dar a vez ao próximo. Entre live acts e DJ sets, o Rimas e Batidas marcou presença em cinco actuações.



[Saint Caboclo]

Ainda se serviam as primeiras birras, quando Saint Caboclo ocupa o sistema de som da Musa de Marvila. O criador da Dengo Club, um dos focos da revolução da noite lisboeta, não beneficiou do posicionamento no alinhamento de um festival que ainda tinha quase 12 horas pela frente. Nada que ainda assim se notasse, apresentando um set que, umas horas depois, teria espalhado muito suor, calor e sorrisos naquela pista. Quem se juntou ao aquecimento sabe que nada falhou nesta performance que, misturando referências de afrobeat, afrofunk, pop e música eletrónica, foi conquistando e aquecendo os primeiros corpos que progressivamente se foram abeirando da pista. Até de crianças que, por lá passando, arrastavam ligeiramente o ritmo dos progenitores e experimentavam os primeiros passos de dança ao som dos ritmos remixados para originais de Kendrick Lamar ou Beyoncé, Rihanna ou ROSALÍA, DJ Max, DJ Tjaey ou CHAMOS. Um prenúncio de futuro, quiçá, o sorriso dessas crianças, felizes ao som de um DJ que sabe que a revolução que se antecipa no cuidado também pode nascer nas pistas de dança que o constroem.

– João Mineiro


[G Fema]

G Fema jogava em casa e foi com sala cheia que atacou o mic. “Es Ca Ta Cre” foi um arranque de fôlego e confiante, perante uma frontline que parecia saber todas as letras e motivos da rapper de Chelas. Entrada pujante, silêncio na sala: alguns grupos de curiosos, que por ali se encontravam, suspendem as conversas que estão a ter, para se virarem para o palco onde a MC impõe a sua presença. Num alinhamento curto, mas consistente, G Fema atravessa temas como “Cumi Cala Bu Boca” ou “Nha Rap”, cantados com a cumplicidade da primeira fila, mas avança também com inéditos do seu próximo EP – um deles, “Patroa”, dedicado à mãe e a todas as guerreiras, conquista de imediato a escuta de um público que procura seguir cada trecho da narrativa. Presença firme e com um controlo vocal irrepreensível, G Fema está cada vez mais confiante em palco – e ajuda ter na back DJ Slick, sempre seguro no disparo dos beats e na criatividade do scratch. “Rap street, rap criolo na casa”, afirma durante e a encerrar o show, como um mantra que não é um slogan: as rimas, a presença e a força de G Fema transportam a ruas onde cresceu e com as quais conquista o futuro. Estejamos atentxs!

– João Mineiro



[ALMA ATA]

Com apenas a luz de um sinal néon que enverga a palavra “Musa” a iluminar todo local, descemos a um ambiente cavernoso para experienciar a tão aguardada primeira aparição de ALMA ATA, após o lançamento do seu álbum homónimo, prestes a atuar perante uma plateia que se adivinhava demasiado dispersa e aquém da atenção necessária para apreciar o projeto de que se trata. As suspeitas confirmaram-se com o início do espetáculo, em que o ruído de fundo quase se sobrepunha às melodias — porém, existindo foco e vontade, valeu a pena o exercício da capacidade de filtragem.

Com uma viagem em honra do novo álbum, sem prescindir da paragem por vários temas inéditos, o grupo constituído por Caronte, Pedro, o Mau e Tomaz, pisou o palco como quem flutua numa galáxia que embora próxima, padece de ser intocável; quase absortos de tudo o que se passa a seu redor, descendo à terra apenas para receberem a aclamação que lhes era atribuída a cada intervalo entre sons, o grupo debitava poesia pura, purgada quase em sussurro tântrico, de uma forma tão hipnotizante que facilmente levaria a um transe no ambiente certo.

Para o espectador mais atento, o sentimento é outro; ao ouvir-se: “o eco do meu quarto dá vertigens” musicado, também nós ficámos zonzos, não à mercê da altitude, mas da profundidade, como se mergulhássemos nos mais longínquos confins de um oceano pacifico e nos sentássemos no fundo a olhar para cima, embrenhados no som distorcido e numa paz introspetiva; faltou o sabor a sal das lágrimas ao ouvir “CLARO” ao vivo, nesta atuação que serviu como aperitivo para uma experiência mais imersiva no futuro, como pede este projeto, para ser degustado e vivido na sua integridade, com contenção, silêncio e atenção.

– Beatriz Freitas


[Nerve]

Quase em ode a toda a glória e esplendor da obra de Edgar Allan Poe e na máxima concordância com quem estava prestes a levitar em palco, quando o relógio bateu as nove da noite foi a vez de Nerve e Il-Brutto poisarem no Dois Corvos, ao som do mote proferido pelo anfitrião: “Dois Corvos não é o nosso nome, mas sim o nome do sítio”, piada que assenta na carcaça de quem a diz, de forma a inaugurar oficialmente a marcha fúnebre.

Acostumados ou não ao carisma sombrio de Nerve, a sala encontrava-se cheia como de habitual, com a possibilidade de locomoção de uma carruagem de metro da cidade universitária às seis da tarde. Salvando-se da maior enchente de pessoas, os seus maiores fãs marcavam afincadamente o seu lugar nas filas da frente, onde devotos expeliam todas as letras como quem devolve um mantra a um líder, enquanto os mais céticos (ou curiosos de passagem) se dispersavam pelo fundo da sala, com expressões de sorriso ao lado de quem está a ouvir algo cativante, mas que vem do oculto, perante os versos que acompanham as faixas apresentadas. De “Tríptico”, com o típico coro no “Táxi”, a “100 problemas”, com o malévolo instrumental de Il-Brutto e versos que espancam qualquer um — celebrizados pela primeira vez no aclamado programa de Sam the Kid —, os presentes estavam focados em ouvir a mensagem. Houve ainda espaço para as mais vintage “Chibo”, “Deserto” ou “Monstro Social”, para o clássico número de interação com o público, agora sobre um beat diferente, e para a nova “Kylo”, com instrumental do próprio autor de Trabalho & Conhaque num registo mais sensual atribuído pelos drums e adds de Brutto e bass carregado.

Abandonou como chegou, sem prestar grandes satisfações; quando os fãs (ou reféns) imploravam por mais uma, levantou o cajado e disse: “eu ‘tou aqui desde as 11 da manhã!”, retornando às sombras pouco tempo depois, pela cortina negra de onde saiu. Válido.

– Beatriz Freitas



[Pongo]

“Quem manda no mic é a Pongo!”, gritava-se dentro da Musa de Marvila perante a entrada poderosa desta verdadeira mestre de cerimónias. O palco é dela, a festa é dela, sem hesitações ou abrandamentos, perante uma plateia totalmente lotada e uma fila de vários metros à porta, cheia de gente ansiosa para que alguém saísse da sala e libertasse lugares. Esperança inglória, porque quase ninguém saiu de uma sala eletrizada pelo feitiço de “Hey Linda”, apelo empoderado e irresistível que abre Sakidila, o primeiro longa-duração de Pongo, editado no ano passado.

Numa sala coberta de suor e de gente apertada, é um mistério como se encontrou espaço entre uma multidão que dançou desalmadamente com “Amaduro”, “Goolo” e especialmente com “Bruxos”, secundada pelas bailarinas que Pongo convidou e que brilharam com a mesma luz da MC. Guiada pelos beats disparados por ZenGxrl, que na hora anterior havida preparado a casa com um DJ set, Pongo não deu descanso e foi um instante até que, quando olhamos para o lado, já havia gente a subir para o balcão do bar ao som da introdução de “Wegue Wegue”. A partir daí, foi todo um feliz descontrolo – empurra aqui, empurra ali, tudo a tentar conquistar espaço e ângulo para o seu abanar de anca. Algum espaço lá se terá conquistado — o suficiente, pelo menos para já — afim de Pongo descer do palco, juntando-se ao público para o seu grito final de liberdade: “UWA”.

Implacável e irrepreensível, Pongo mira-nos ao vivo, com a mesma força com que o faz na capa do seu álbum. Olhar penetrante, absorvente e destemido, paleta de cores com que pintou a sua jornada. Sakidila, obrigado em kimbundu, é o título desse seu primeiro longa-duração, mas somos nós quem verdadeiramente lhe deve gratidão. Foram dez anos de luta, determinação e resistência para que aqui chegasse e nos contagiasse com este kuduro poderoso, eletrizante, emotivo e sem fronteiras estilísticas, dançando junto com a kizomba, o amapiano e piscando o olho ao reggaeton e suas derivantes. Se ao vivo ainda a associamos às performances de Buraka Som Sistema, é porque não devemos apagar essa história. Mas se dúvidas persistissem, elas estão todas dissipadas. Pongo está a correr na sua própria pista e já nada deve ao projeto com que a conhecemos. É dona do seu próprio caminho, vai destemida pela estada fora e não há ninguém que lhe fique indiferente. O futuro é dela. Sakidila.

– João Mineiro

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