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ALMA ATA

ALMA​/​/​ATA

Edição de autor / 2022

Texto de João Mineiro

Publicado a: 20/12/2022

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Entra-se em ALMA​/​/​ATA sem segurança: melodia à experiência e em estruturação, ainda frágil, como quem busca a linguagem sonora certa para habitar a melancolia. O motivo anuncia-se “CLARO”, mesmo que, paradoxalmente, a paisagem sonora construída à nossa frente assuma uma tonalidade noturna e envolta por uma poética povoada de desassossego e desassombro, tristeza e ansiedade. 

Avança-se, portanto, intranquilamente, mas com um misto de estranheza e familiaridade, fértil ambiguidade que se mantém e desenvolve ao longo de toda a viagem. Estranheza, primeiro, porque há aqui uma linguagem intrigante, com contornos sonoros e poéticos próprios, mesmo quando lembra episódios da melancolia eletrónica de James Blake, ou quando parece dialogar com a contenção introspetiva que também sentimos em Pedro Mafama. Mas há também familiaridade, já que tanto o som, como os textos, convocam momentos, imagens e espectros emocionais com que instintivamente nos relacionamos, tanto individual, como coletivamente. “Perfeito é não ser perfeito”, enuncia-se em “CUTA”, repetidamente, como um mantra para uma linguagem sonora e poética propositadamente frágil e visceralmente íntima. 

Construído em tons de sépia, e habitando corajosamente a melancolia, ALMA​/​/​ATA viaja de dentro para fora, formando um enredo sonoramente denso, quase vertiginoso, mas que nunca deixa de procurar uma forma de comunicação, uma possibilidade de purga. Tarefa desafiante, diga-se, porque como entre nós dizia a Beatriz Freitas, “se há algo que não é fácil é dar-se clareza a assuntos de alma”. E na verdade, é por ir na direção da alma que há neste disco um diálogo estético com os blues, ainda que, neste caso, as dores não sejam expressas ao alpendre, olhos postos no mundo, mas antes dentro de um quarto, metáfora de um mundo interior, sempre presente, mesmo quando dele se procura sair: “Vim ver um céu diferente/ Lavar a vista em gente…/ E sentar-me em silêncio/ Enquanto o ar renova no meu quarto / E se a tristeza passa?”

No meio dos seus labirintos, há uma tensão que atravessa o álbum, ora mais explicita, ora mais tácita, construída entre a guitarra de Tomás Sequeira (Tomaz), as sequências de drums de Pedro Carvalho (Pedro, o Mau) e a voz de Miguel Afonso (Caronte). Mas essa tensão só é fértil, e não autodestrutiva, porque emerge de uma indissociabilidade entre o som e a palavra, a experimentação sonora e o desafio poético, a forma e o conteúdo. É a fragilidade na forma, assumindo experimentações, falhas e hesitações, que abre espaço à intimidade do conteúdo, ampliando as possibilidades de comunicação deste objeto sonoro não-identificado. Vemo-lo em “CAPITAL, 18.04.19”, em que se baixa e sobe o tom da guitarra, buscando a tonalidade certa para abordar a ambivalência de quem “numa jaula aprisionada vê o mundo pela janela”. Também em “GRAÇA”, em que um texto angustiado dialoga com vozes arrastadas e em sobreposição, ensaiando o diálogo interior de quem “anda o tempo todo a encontrar-se na sua prosa”. Ou em “POMAR”, em que um ritmo levemente dançável, mas não menos soturno, projeta “as vozes doutro baile”, que “entoam uma canção da sua tristeza/ Mesa posta para ninguém jantar”, enquanto se cruzam os braços, se dá as costas, se salta, se esperam os resultados de novas apostas. 

De fio a pavio, em chama constante, mas contida, a frágil experimentação do som encontra sempre a manipulação de vozes que se projetam distendidas (como também a vida se deixa arrastar), sobrepostas (como também se acumulam as vozes em que nos reconhecemos), ou que vivem no limite da perceção (como também a tarefa de nos compreendermos exige esforço e compromisso). Vozes densas, torcidas, mas sempre férteis por viverem no centro das suas contradições. Como em “ALVORADA”, dedilhado circular, ambiente sonoro enevoado, em que se assume “que a vida é torta” e ainda assim “tentamos dar-lhe sempre a volta”, mesmo que “passem anos” enquanto esperamos a alvorada. Ou em “Não Mintas”, voz manipulada sob ímpeto de dowtempo, onde olhamos “o sol a querer nascer”, mas que nunca nasce; onde se “corta a sina em dois” e se dança em redor dela; onde o ritmo compassado e contemplativo desagua em tons melódicos não menos dramáticos. 

À medida que a viagem se conclui, ou que recomeça, resta-nos não obliterar o risco de um gesto artístico que de tanto sufoco se pode tornar sufocante, prendendo-nos num círculo vicioso onde por vezes se pode sentir a falta de alguma respiração, de algum aliviar da tensão, quiçá alguma esperança? A tristeza, a angústia e a melancolia, tanto poética quanto sonora, criam um longo e tortuoso labirinto, onde a luz nem sempre emerge, mesmo quando é ensaiada. 

Nascer para sofrer ou nascer para purgar? Talvez a esperança ainda possa residir na urgência de expressar o que já não pode ficar em silêncio, através de uma linguagem que procura um lugar que ainda não existe. Talvez a respiração ainda possa emergir desses problemas de dentro que se jogam no mundo, nessa ousadia da experiência artística feita de encontro e comunicação. Talvez a liberdade encontre o seu espaço e o seu tempo nessa tentativa de desafiar a dor, falando sobre ela. Talvez ainda possamos “crescer como uma árvore e não cair como uma folha”, “parar em qualquer porto” e “sair onde não há culpa”. E se a tristeza passa?


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