CD / LP / Digital

Oneohtrix Point Never

Tranquilizer

Warp Records / 2025

Texto de Filipe Costa

Publicado a: 02/12/2025

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O processo de criação é inseparável da exploração filosófica de Oneohtrix Point Never. Figura de um ecletismo raro, o músico nascido Daniel Lopatin possui o condão de conceber metaversos distópicos onde o som funciona como metáfora para as inquietações dos nossos tempos. Há nos seus trabalhos uma persistente vontade de acrescentar uma camada conceptual extra a um corpo de obra já por si tétrico, embora isso nem sempre beneficie o produto final (veja-se o caso de Age Of, uma ópera sintética em que inteligências artificiais recriam por lazer as culturas e comportamentos de uma espécie humana já extinta).

Para o seu novo álbum, Tranquilizer, o músico convoca a impermanência da memória no contexto digital, partindo da noção do arquivo enquanto espaço instável de conservação do passado. A música que aqui escutamos tem origem num conjunto de amostras para fins comerciais que Lopatin encontrou no Internet Archive, antes de este ser removido sem explicação. Quando os ficheiros reapareceram, Lopatin quis captar esse momento. Como consequência, o músico passou a ter à sua disposição um acervo de material trivial e de qualidade incerta, que usa ao serviço de uma eletrónica atravessada por diferentes épocas. 

Veja-se o trio inaugural de “For Residue”, “Bumpy” e “Lifeworld”, capaz de condensar em apenas 10 minutos os princípios da exploração eletroacústica (Schaeffer, Russolo e outros pais da música concreta), a herança europeia das electrónicas progressivas e os fantasmas de Mark Fisher, dispostos num contínuo de vozes, ruídos e texturas de recorte hauntológico. O processo não dista muito do de Replica (2011), em que o músico tratava material pilhado a uma coleção de anúncios publicitários dos anos 80 e 90, reconfigurando-o à sua imagem distorcida. Mas está longe de configurar um retrocesso. Pelo contrário. É o retorno a um porto seguro de referências, de compromisso com o passado. Uma reflexão alargada sobre a memória, conduzida por uma figura que se recusa a fazer a mesma coisa duas vezes.

“Modern Lust”, um dos temas do novo disco, é um caleidoscópio de luz e padrões sintetizados em decomposição, atravessado por derivas errantes de teclados vintage que roçam o delírio. Logo a seguir, “Fear of Symmetry” desliza pelos territórios de repouso e evasão do lounge, com um motivo entrecortado de piano a servir a base de um sonho hipnagógico e húmido, algures entre os ecos de uma galeria comercial abandonada. “Vestigel” revela-se igualmente eficaz na forma como nos transporta para um estado de consciência alterado, sustentado por uma linha de baixo profunda e doentia, tão perturbadora quanto irresistivelmente viciante. É uma presença sonora que nos atrai e nos retém, impedindo qualquer fuga desse espaço inquietante que a faixa constrói. 

Em “Cherry Blue”, os universos ominosos de Tim Hecker cruzam-se na narrativa espectral de Oneohtrix Point Never. Há um piano fraturado que se enrola e se repete obsessivamente, antes de um sintetizador de feição vangeliana fazer o tema descolar para voos mais altos. 

“Bell Scanner”, um interlúdio, sobrepõe um emaranhado de arpejos, sopros digitalizados e glissandos, preparando o terreno para a segunda metade do disco, mais progressiva. Essa viragem é evidente em “D.I.S”, onde um pulso sintético de ambição sinfónica se impõe desde o início, desencadeando uma cascata de arpejos sonhadores que, com o tempo, se degradam lentamente, acabando por se decompor num lamento para piano. Na titular “Tranquilizer” reconhecemos ecos de diferentes eras da carreira do músico. Há utopias corais, espectros de vozes em rodopio, sons que se desfazem lentamente até ao emergir dos padrões de sequenciadores. Já “Rodl Glide”, o último single revelado, impõe-se como um dos momentos mais expansivos do disco. A partir de um fundo muzak lúbrico, atravessado por texturas de vinil gasto, uma interrupção inesperada instala-se de sobressalto, empurrando o tema para territórios tangentes ao trance.

Há um ciclo que se completa e renasce em Tranquilizer. Tal como Magic Oneohtrix Point Never (2020), culmina anos de trabalho num documento denso e saturado de referências, onde a memória do artista se organiza como uma cartografia de estilos, épocas e resíduos culturais do passado. Ao regressar a um lugar que conhece bem, o músico concebeu mais um monumento referencial, ao mesmo tempo retrospetivo e indiciador de futuros.


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