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Fotografia: nezpera
Publicado a: 22/10/2021

Aumentar as quebras e potenciar o ruído.

Odete: “Eu gosto muito quando essa tentativa de voltar à realidade material é tensa e conflituosa”

Fotografia: nezpera
Publicado a: 22/10/2021

“A direcção ritualística sempre foi um interesse meu”. Quem o diz é Odete, artista multidisciplinar (o seu trabalho passa pela música, mas também pelo desenho, pela escrita e pela performance) que editou o mais recente álbum, The Consequences of a Blood Language, no passado mês de Setembro.

A partir da arqueologia e da paleontologia, que usa como ferramentas para reescrever o passado (e, consequentemente, o presente e o futuro), o disco — o primeiro pela editora de Xangai Genome 6.66 Mbp — volta a propor uma uma abordagem crítica ao silêncio histórico em torno das questões do corpo, identidade de género e da experiência queer

“Quero apresentar um projecto que conspire contra a escrita da história no sentido de nela inscrever certos corpos e práticas”, explicava, em Janeiro, sobre a performance On Revelations and Muddy Becomings, que venceu a primeira edição do concurso RExFORM. “Essa inscrição é feita através de uma escrita mentirosa sobre o passado, revelando assim as técnicas de produção da verdade dessa mesma história que nos apagou”, sublinhava ainda a artista transgénero. “Trata-se, no fundo, de um projecto paranóico arqueológico”. Composto por um livro mágico, um videojogo e uma performance, este pretende ficcionar uma sociedade secreta que se apresenta ligada a nomes históricos como os de Joana d’Arc, Eliogabalus e Chevalier D’Eon, da qual a artista diz ser descendente. “A partir do momento em que elas se tornam ferramentas para eu pensar o mundo, elas passam a ser um bocado parte da minha vida também”, diz, numa entrevista conduzida por Zoom, ao Rimas e Batidas. “Penso muito na Idade Média também”, continua. “Tenho sempre estas questões do que é que a Idade Média foi politicamente, que período de transição é que foi, e de repente olhar para a actualidade e achar que estamos a viver um período de transição, de estar a tentar analisar as coisas do agora com as ferramentas do passado. E quando digo ferramentas do passado são precisamente essas vidas”.

A semanas de se apresentar no Trauma Bar und Kino, em Berlim, onde fará a primeira parte de um concerto de Eartheater, estivemos à conversa com a artista sobre as ideias ocultas que norteiam o seu trabalho.



Como é que surgiu esta relação com a Genome? É uma editora que admiro bastante, há algum artista do catálogo que te atraia particularmente?

A minha relação com a Genome é uma relação também como a tua, de admiração. Quando eu comecei a fazer música há uns anos, mandei-lhes umas demos e… ghost, mesmo. Nunca responderam, então fiquei tipo “está bem, nunca mais vou pensar nisto”. Entretanto fui fazendo outras coisas e mandei-lhes uma mensagem quando tinha o álbum pronto. Gosto primeiro de passar por todas as labels que adoro, nem que sejam underground. Prefiro passar por essas todas primeiro e conhecer as pessoas e criar essas relações. Então pensei, “vou-lhes mandar uma mensagem, seja o que Deus quiser”, e eles ficaram tipo, “sim, bora lançar”. Foi super fácil. Foi mandar o álbum — e eles gostaram —, mandar as tracks masterizadas e depois aconteceu. Literalmente foi isto.

Quanto a artistas já acompanho a Rui Ho há algum tempo. Eu toquei com ela em Paris antes do COVID e conheci-a lá. Ela é muito amazing. E desde então que tenho uma relação com a Genome um bocadinho mais próxima. A Yikii, também adoro. Acho que não há ninguém no catálogo da Genome que não adore.

Em 2020, aquando do lançamento do Water Bender, dizias ao Vasco Completo do Rimas e Batidas que não gostavas de criar hierarquias entre EPs e álbuns, que cada registo possuía a sua história. No entanto, e depois de dois trabalhos que ultrapassam os 30 minutos de duração, tens vindo a vender” o The Consequences of a Blood Language como sendo o teu álbum de estreia…

Eu nunca disse isso! Eu chamo ao Amarração o meu álbum de estreia, quanto muito. Ou se disse que seja, é uma estreia em todos os lançamentos [risos]. Se calhar podemos dizer que é um álbum de estreia no sentido em que é o maior release, é o que tem mais minutos. E acho que senti um bocado de pressão também das pessoas que eu conheço a admitir que é um álbum. Se calhar é porque não venho da música. Para mim todas as releases são uma coisa, quer tenham 10 minutos ou 50 minutos, então não consigo distinguir a importância de cada um, não consigo distinguir a importância do Water Bender ou do Amarração ou do Matrafona. Enfim, para mim é tudo a mesma coisa, é só mais um release. Mas pronto, acho que senti um bocado de pressão em usar a palavra “álbum” e de admitir que estou a lançar um álbum e que não tinha lançado antes, se calhar, ou que nunca tinha admitido que os outros lançamentos eram álbuns, tipo o Amarração. Eu nem sei quanto tempo tem o Amarração [risos], vou ser sincera, mas deve ter para aí meia hora…

Sempre achei que esse era o teu primeiro álbum, também. Na altura tomei-o como um LP.

Eu não percebo nada, acho que é mais fácil de admitir que eu não percebo nada de como é que as pessoas catalogam as coisas. Porque se disserem que o Amarração não é um álbum… No fundo a distinção é só entre EP e LP…

Sim, na era digital essa distinção já não faz muito sentido.

Enfim, é só mais um release. Agora, se é um álbum, se é um EP, se é um… não sei, não sei quantas categorias existem.

É curioso como foram as outras pessoas a dizer que o Amarração não era um álbum, e não tu própria. Foram os outros que impuseram esse limite.

Acho que a única pessoa que disse que o Amarração era um álbum foi a Mariana Duarte do Público, que na altura fez um artigo sobre mim, e quando eu li “álbum” fiquei tipo, “uau”. É que álbum soa mesmo importante, e eu não atribuo essa importância aos releases. É meio assustador. Acho que se alguma vez falei de álbum de estreia quanto ao release da Genome é porque há uma diferença clara de trabalho e maturidade no processo que eu acho que os outros não têm.

O uso da voz e da flauta transversal, que estão cada vez mais presentes nas tuas produções, conferem uma sensação muito humana e emocional ao álbum. Podes falar-me um pouco sobre como foi o processo de gravação? 

Quanto ao uso da voz e da flauta, só para fazer um parêntesis, eu sinto que uso cada vez mais estas duas ferramentas orgânicas, não-digitais, digamos, para me reconciliar um bocado com o meu passado musical. E sinto que não é um reconciliar do género, faz um release tipo Amarração ou Water Bender, em que usas um bocadinho e está, já te reconciliaste com o teu passado. Acho que é uma tentativa de procurar dizer a mim própria que, ainda que tenha perdido uma série de conhecimentos musicais… porque eu aprendi flauta transversal durante dois anos, e depois parei durante 10 [risos]. E andei no coro e na formação musical, enfim. Perdi uma série de coisas porque deixei de praticar. E depois quando comecei a fazer música, comecei a perceber que o meu instinto, que aquilo que eu queria fazer, era voltar a usar essas ferramentas. Só que quando eu tentei não conseguia fazer o que queria, então aceitei só que eu uso as ferramentas não como é suposto usá-las, mas como eu consigo. E acho que isso fala um bocadinho do processo de composição deste álbum, que é um bocadinho pegar na flauta e ver o que sai. Mesmo que não pareça uma melodia, mesmo que eu esteja só a soprar e isso pareça assim uma coisa bem tosca, é usar essa relação com o instrumento e potenciá-la. E com a voz a mesma coisa, há muitos momentos em que a minha voz quebra mesmo nas melodias, só que em vez de apagar isso tento aumentar as quebras, potenciar o ruído, potenciar a fragilidade dessa relação com os instrumentos orgânicos e não-digitais. É quase como se a minha conexão com a própria realidade material das coisas fosse também um bocadinho moldada quando eu exploro essas quebras de tentar reconectar-me com a minha voz, com a flauta, com outros instrumentos que eu possa ter, como os shakers. Acho que é uma tentativa de voltar a ter os pés na terra, e às vezes falha e eu gosto muito quando essa tentativa de voltar à realidade material é tensa e conflituosa.

Neste álbum trabalhaste com algumas caras familiares como o DRVGジラ e o Farwarmth, mas também há novidades, como é o caso do interlúdio que fizeste com o Pedro Mafama. Como é que surgiu este encontro? E como é que foi trabalhar com o Mafama?

Será que eu posso dizer a verdade? O Pedro tinha-me convidado para fazer uma música para o álbum dele. E eu fiz. Só que depois quando foi para decidir as coisas do álbum, essa música era a “diferentona”. Então, ele ficou, “olha, Odete, é demasiado diferente e não vai entrar”. E eu fiquei tipo, “na boa, eu depois uso para o meu álbum, não te preocupes”. Só que depois quando estava para vir para o meu álbum também era a “diferentona”, e eu fiquei assim, “se calhar também não a vou incluir no meu álbum”. Mas depois pensei, “não, há este momento aqui da música que acho que sumariza bem e acho que vou cortar”. Estava com o DRVGジラ e ele também disse que esse momento funcionava bué bem. E depois quando estava a montar a tracklist, a definir a narrativa sonora, fez muito sentido. E decidi deixá-la.

Recentemente tens vindo a desenvolver trabalhos sobre sociedades secretas e a inquisição. De que modo é que podemos re-imaginar — ou reescrever — a história através da paleontologia e da arqueologia?

Uma das coisas que costumo dizer é que um elemento central do meu trabalho que ganhou o RExFORM é a ideia de que tu podes ir ao passado mudá-lo, e que ao mudar o passado consegues mudar o futuro. É quase como se fosse um conceito meio sci-fi de teletransporte. Eu vou para o passado, faço qualquer coisa e de repente o futuro altera-se. É esta ideia de reciprocidade entre o que foi e o que vai ser — e o que é, claro. Entre o passado, o presente e o futuro em que eles estão completamente agarrados, e que se mudares um mudas todos os outros. 

Sendo assim, pensando nisto, claro que a paleontologia e a arqueologia como ciências do passado, se tu decidires usá-las para contar uma história um bocadinho diferente, vai haver uma repercussão, uma consequência no futuro e no presente. Se pensares em todas as revoluções arqueológicas e paleontólogicas do último século, é um bocadinho assim. Quando começaram a aparecer aqueles símbolos de fertilidade no leste da Europa e de repente começou a assumir-se que antes de sermos sociedades patrilineares éramos sociedades matrilineares. E de repente caiu assim uma bomba no meio da História, no meio do presente. E isso fez-me pensar que se calhar éramos diferentes, se calhar o papel da mulher pode ser repensado. Se na ancestralidade éramos governados por mulheres o que é que aconteceu? Isso são o tipo de coisas que eu acho piada, e acho interessante como de repente podes ir ao passado e reclamar algo que é necessário para o teu presente e para o teu futuro em termos políticos, reclamar sobre o passado para poderes corrigir, ou para poderes alterar coisas politicamente. Agora, claro que isso é uma técnica também da extrema-direita e do fascismo. O Hitler era perito em inventar merdas históricas sobre a sua raça e sobre a Alemanha. Mas, pronto, a gente não faz como eles [risos].

Na entrevista que concedeste à AQNB falas um pouco sobre o papel da cosmologia nas tuas criações, sobre tentar dar algum sentido a conceitos que são maiores do que nós, como a morte. É um assunto que me interessa bastante, também. Ou melhor, é uma questão que me tem assombrado de vez em quando. De que modo é que estas questões afectam a tua música?

É uma bela pergunta. Para mim, a música… é importante ter em conta que eu não venho da música necessariamente. Acho que isso me dá um processo de criação musical um bocadinho diferente, e eu acho que a música, para mim, sempre teve um papel meio fantasmático, invocatório, quase de eu sentir que quando faço música e quando oiço música, é quase como se eu estivesse a aceder a outras realidades, a outras coisas que não são deste mundo, de todo. E eu acho que o meu processo de fazer música foi ficando cada vez mais ritualístico. Comecei a criar personagens, começava a fazer esta coisa de quase invocar personagens que estavam dentro de mim. No Water Bender foi um bocado esse o processo. E de repente fiquei assim numa cena em que as músicas, quando estou a criá-las elas são tão performadas — tipo estou eu aqui com o microfone a fazer coisas para tentar que alguma coisa saia da minha voz, que saia de mim — que de repente há esta dimensão de quase ser possuída por alguma coisa, tipo um fantasma ou um espírito. 

Acho que se a minha música tem alguma relação com a morte é isso, é uma relação com ecos, outras vidas. Isto é um discurso muito médium, muito místico [risos], mas os meus processos são um bocado místicos, não vou mentir. Imagina, quando re-ouço o The Consequences of a Blood Language, eu não me lembro como é que fiz certas músicas. Como é que eu vim parar aqui? I don’t remember. E pode ser só porque a minha memória está má porque… depressão, mas é muito estranho. Acho que a performance acaba por guiar muito estes processos de compor, é mesmo muito ritualístico.


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