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Publicado a: 04/07/2017

O que faz um grande DJ?

Publicado a: 04/07/2017

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados

Já em 1984 o enorme Egyptian Lover tentava responder a essa perene pergunta do que faz afinal um grande DJ. No lado B do clássico “Egypt, Egypt” escondia-se uma faixa com o título “What is a Dj if he Can’t Scratch?”. E, de facto, essa é uma pergunta pertinente, sobretudo no domínio do hip hop, mas perante a evolução da arte talvez não seja tão abrangente como 2017 exige.

 



O que faz, afinal de contas, um grande DJ? Antes de mais, importa ressalvar que são matérias diferentes as que compõem um DJ e um produtor, embora, como é óbvio, ambas as valências possam existir na mesma pessoa. Podem até ser condições simbióticas: ter capacidades na área da produção pode elevar a arte de um DJ e possuir skills nos pratos pode oferecer mais argumentos a um produtor. Mas são coisas diferentes, artes diferentes e poucos conseguem equilibrar ambas no plano da excelência (DJ Shadow, anyone?…).

Concentremo-nos então naquilo que faz um grande DJ. Podemos – e devemos, aliás… – socorrer-nos da história do hip hop para responder a esta questão. Em primeiro lugar temos a noção do ritmo. Kool Herc, nos dias pioneiros do Bronx, foi o primeiro a reparar na devoção dos b-boys ao break e dessa forma a entender que a capacidade de dispor breaks significantes num set seria a fundação para uma cultura que se estende até aos dias de hoje. Essa noção do ritmo primevo é importante, é como conhecer o abecedário para depois poder escrever, compor palavras, construir um discurso.

 



Depois de Kool Herc, Afrika Bambaataa ofereceu outra importante lição ao universo: para se ser um verdadeiro “master of records” é preciso conhecimento. A cultura do diggin’, importante para qualquer DJ que se preze, nasceu com Bambaataa que acumulou um gigante conhecimento no domínio dos breaks, procurando nas lojas – nas secções de funk e soul, pois claro, mas também nas de reggae e rock, nas de jazz e bandas sonoras, nos discos para crianças e nos de electrónica esquisita, aqueles pedaços significantes que poderiam garantir impacto numa pista de dança. E isso tanto poderia querer dizer “Vitamin C” dos Can ou “Trans Europe Express” dos Kraftwerk como “Honky Tonk Women” dos Rolling Stones ou “Apache” da Incredible Bongo Band. Não foi por acaso que a americana Cornell University decidiu adquirir a colecção de discos de Afrika Bambaataa para a preservar como o histórico conjunto de artefactos que de facto é e para a estudar para benefício de futuras gerações.

Um terceiro pilar fundamental na arte de qualquer DJ poderá ser encontrado estudando Grandmaster Flash que à noção de ritmo herdada de Kool Herc e ao conhecimento aprendido a estudar as block parties conduzidas por Bambaataa acrescentou depois um real flow musical. Flash era capaz de navegar diferentes breaks, colar com mestria diferentes discos – Blondie e os Queen, os Incredible Bongo Band e os Chic, os Hellers e Spoonie Gee – e transformar as suas colagens num novo objecto musical. Confira-se essa eterna lição chamada “The Adventures of Grandmaster Flash On The Wheels of Steel” para se perceber o que se quer dizer aqui com “flow musical”: aquele discurso de sete minutos não foi criado num computador, mas gravado ao vivo em três gira-discos para fita magnética de quarto de polegada. É obra.

 



Depois veio Grandwizard Theodore provar que um DJ pode igualmente ser um músico. O inventor do scratch pegou no abecedário e na gramática que os seus antecessores inventaram e criou uma nova linguagem. A agulha e o vinil construíram aí uma inédita relação: com esta nova técnica, o DJ passou a poder ser parte activa no discurso musical construído, passou a ser capaz de intervir musicalmente sobre a matéria alheia e, dessa forma, conseguiu ele próprio afirmar-se como músico.

Quando a história chegou a Grandmixer DST, o DJ passou de agente solitário numa cabine a pensar apenas na pista e nos b-boys à sua frente, a membro de pleno direito de um colectivo, capaz de dialogar com outros músicos. Não é por acaso que muitos DJs citam “Rockit” de Herbie Hancock – tema em que Grandmixer DST é solista – como o derradeiro impulso que os dirigiu para os pratos.

 



Finalmente, podemos evocar os Invisibl Skratch Piklz como um dos mais perfeitos exemplos na imposição da arte do DJ num contexto hip hop. A noção rítmica, o conhecimento, a construção de um flow musical, a afirmação do DJ como um músico e depois a sua capacidade de dialogar com outros músicos foram passos importantes para o que os Piklz descobriram e aperfeiçoaram: os DJs podem, afinal de contas, dialogar uns com os outros, construir novos discursos musicais em circuito fechado, sem terem que necessariamente contar com o suporte de uma banda. Os DJs, quando articulados, podem eles mesmos ser uma banda.

Resumindo, portanto, um grande DJ tem que ter técnica, tem que ter curiosidade musical para investigar diferentes campos estéticos em busca dos argumentos com que vai construir o seu discurso na cabine, tem que ter criatividade artística para se afirmar como um músico, tem que saber dialogar – seja com a pista, com diferentes músicos ou com os seus pares. Um DJ tem que ser uma mente criativa, inquieta, com vontade de procurar, de explorar.

Os dois protagonistas desta semana no Rimas e Batidas, os Beatbombers incorporam todas as qualidades descritas atrás: os títulos em importantes provas mundiais deixam claro que dominam a técnica, as inúmeras datas que vão fazendo por todo o país asseguram-nos que sabem comandar uma pista, que sabem organizar o discurso para levar uma multidão ao rubro. E, claro, sabem scratchar, sabem dialogar com outros músicos – há um par de anos apresentaram-se à frente da Orquestra Filarmónica da Armada no encerramento das festas da cidade de Lisboa num espectáculo especial na Torre de Belém – e, sobretudo, sabem dialogar um com o outro, completando-se e obrigando-se a irem mais longe. O álbum que acabam de editar mostra isso tudo. E ainda os apresenta como produtores de mão cheia. Mas essa, claro, é outra conversa…

 


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