[TEXTO] Alexandre Ribeiro [FOTO] Filipe Feio
Em 2002, José Saramago publicava O Homem Duplicado — livro que mais tarde seria adaptado para cinema por Denis Villeneuve — e, como era seu apanágio, deixou uma frase que, basicamente, resumiu a aleatoriedade dos acontecimentos: “O caos é uma ordem por decifrar”. Passados 16 anos (e num universo paralelo), Papillon escreveu um “ensaio”, provavelmente sem se ter apercebido, sobre o assunto. Deepak Looper é, acima de tudo, um exercício escrito e cantado sobre a velocidade dos dias, a inércia perante uma sociedade que cria jogos sem revelar todas as regras e a repetição constante de pequenos ciclos viciosos que tornam as nossas vidas em intricadas teias de eventos que se montam com exactidão cirúrgica.
“Impasse”, o primeiro single da carreira a solo do MC dos GROGNation, foi o primeiro passo para resolver a equação que, até então, bloqueava a sua total afirmação. Neste caso, timing é uma palavra crucial para perceber a “bigger picture”. Tudo começou com “Pagar as Contas”, estendeu-se a The Art Of Slowing Down e terminou em Deepak Looper. Por essa razão, Slow J é outro elemento importante que não podemos descurar. Sem ele, Rui Pereira seria um grande MC que não encontrava a forma ideal para se expressar individualmente. Com ele, o rapper é candidato natural a melhor álbum do ano em 2018. Este disco não podia sair antes do longa-duração de estreia de João Batista Coelho por uma simples razão: a “escola da vida” de Papillon ainda não tinha encontrado as produções que lhe fizessem jus. Nem o mantra do “Jota Lento”: desacelerar até sentirmos cada canto do nosso corpo e da nossa alma.
As comparações são inevitáveis. A estética sónica toca-se em alguns pontos: “Impressões” e “Arte” partilham a costela rock e “Iminente” e “Mun’Dança” são “filhos” de África. A primeira apresentação ao vivo também acontecerá no mesmo espaço, o Estúdio Time Out, e “no lugar” de Francis Dale e Fred Ferreira teremos DJ X-Acto, o baterista Luís Logrado e o guitarrista Vasco Ruivo. A variação de uma fórmula vencedora não deixa de ser um passo em frente e, sem desprimor pelo Slow J, Deepak Looper é uma versão 1.5 de The Art Of Slowing Down — as histórias são totalmente diferentes, mas as estruturas são partilhadas (o que faz todo o sentido: J é o produtor executivo do disco de Papillon).
Porém, as diferenças é que definem a qualidade do “produto”. Papillon não se resguardou e, sem grandes dificuldades, desfilou versos com cadências, flows, stortytelling e jogos de palavras que o elevam ao topo da cadeia do rap nacional. Um dos melhores exemplos do que falamos é a faixa que encerra o longa-duração, “Metamorfose Fase, pt.2”. A maneira exímia como “escapa” às mudanças do beat concebido por FreshBeats e Holly, a ambição legítima (“Não sou o Sam, Mundo, AC, nem o Valete, mas se ainda não ’tou perto, um gajo pra lá caminha”), a referência subtil a NGA (“Pra Merda Não Volto”) e a parte final (deliciosa a forma como encaixa os títulos das canções do disco) só engana quem não quer perceber que o rap é um género musical legítimo que, a nível nacional e internacional, apresenta algumas das opções mais válidas e interessantes no que toca a inovação e arrojo.
Meio na brincadeira, meio a sério, disse a alguns amigos que Deepak Looper poderia muito bem ser um disco de Kendrick Lamar se, obviamente, ele tivesse crescido na Linha de Sintra. Dentro deste exercício imaginativo, “Pray my dick get big as the Eiffel Tower/ So I can fuck the world for seventy-two hours”, de “Backseat Freestyle”, tornar-se-ia em “Eu vim foder o mundo, não vim medir a picha”, de “Metamorfose Fase, pt.2”. Ainda no “casulo”, conforme explicou a Alexandra Oliveira Matos em Março deste ano, Papillon, nome que em francês significa “borboleta”, está, se tudo correr bem, a preparar-se para o seu To Pimp a Butterfly (se acreditássemos em teorias de conspiração, diríamos que está tudo interligado…).
No meio da indefinição — percebe-se pelo seu discurso que a procura pelo caminho correcto foi, de certa forma, angustiante (ouçam “1:AM” e “Impasse”) –, Papillon descodificou, com a ajuda preciosa de Slow J, a fórmula para fazer um excelente disco, organizando-o em 13 faixas que são capítulos de um livro que merece ser lido e estudado exaustivamente. Deixou de ser o seu próprio inimigo e fez algo que só está ao alcance dos grandes criadores: transformou a sua vida em arte.