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Fotografia: Catarina David
Publicado a: 10/11/2020

Folhas por todo o lado.

O Chão do Passos

Fotografia: Catarina David
Publicado a: 10/11/2020

Todos estamos desejosos por acordar deste pesadelo chamado 2020. Foi-nos tirado o tapete, caímos desamparados e, sempre que tentamos nos levantar, há mais qualquer coisa que nos volta a abalar, afirmando a incerteza dos tempos que correm. zé menos não foi exceção: tinha acabado de lançar o chão do parque em Novembro de 2019 e quando se preparava para o apresentar ao vivo no início de Março de 2020 deu de frente com uma pandemia que obrigou o mundo ao confinamento. Não tinha passado sequer um mês e Zé decidiu fazer a apresentação em formato live para aqueles que mais ansiavam ver o artista interpretar a sua mais recente obra. Chamou-lhe Concerto de Primavera. O certo é que um disco destes, de forma até irónica, nunca esteve destinado à estação da flor mas sim à estação da queda. O próprio músico salienta essa ideia em “os ramos que eram braços”: “Estou preso no Outono e vivo na estação que cora”. E assim foi: na passada sexta-feira, 6 de Novembro, zé menos encheu o Passos Manuel, no Porto, para finalmente apresentar o seu mais novo ao mundo real. 

“É Outono. O que vai, promete voltar. O que fica, promete durar”. Foi com este mote, disparado nos pads por Minus & MR Dolly, que se deu início ao espetáculo, ambientando a plateia para o que se seguiu. Embora as pessoas estivessem mais distantes do que é habitual num concerto, sentia-se as conversas a dissipar, o entusiasmo a fervilhar e, por fim, o negrume do palco a absorver por completo as atenções. Aquele que outrora fora Kap, subia agora ao palco, renascido sob um novo manto musical, para se atirar à “a queda, exposição”. Não foi preciso muito tempo para se perceber porque é que uma apresentação em formato live nunca fará jus a um trabalho destes. Não é possível experienciar a partilha dum espaço com alguém que traz consigo uma aura tão inquietante e sufocante como a de zé, uma mágoa tão hiper-consciente e tão real como qualquer pessoa presente naquela sala. O músico deixou que o seu corpo liderasse a noite, levando-nos por entre lamentos de quem “está no chão já faz tempo”, urros de desespero por “não saber nadar”, sorrisos perante a presença do “o liquidambar” ou chamamentos para dançar “os olhos negros” — ainda que as regras de segurança nos lembrassem que tal não seria possível. Esse mesmo corpo, que ao se afastar ou se aproximar do holofote, nos parecia ora um homem ora uma árvore retorcida, velha demais para se lembrar da sua idade. A sua expressão física foi a melhor e mais honesta personificação da sua música.  

Mais do que referir algumas vezes que se fazia acompanhar em palco por Minus & MR Dolly, fez questão de salientar o quão importante este artista e amigo é para si, sobretudo porque a sua música inspirou um jovem José Poças a escolher expressar-se através de rimas e batidas. Pontualmente, entre temas, o músico foi-nos contando episódios relacionados com a criação deste disco, desde o momento em que começou a ganhar consciência da vida vegetal que borbulhava no parque ao lado de sua casa, até ao motivo pelo qual teria atirado uma resma de papel pela varanda de sua casa quando era criança.

E foi numa destas pausas a meio do espetáculo que zé decidiu falar do tema que se seguia, do momento que viria a ser a catarse dessa noite. Falou de um outro Zé, José Mário Branco, que nos deixou há cerca de um ano, rumo a um sítio melhor, e de uma canção particular que, garantiu-nos, irá cantá-la até morrer. A interpretação de “Inquietação”, já aguardada por alguns membros da plateia, fez-se ouvir. Acordes distorcidos duma guitarra acústica serviam de cama para a voz angustiada de zé menos, numa canção que poderia muito bem integrar o chão do parque. E quanto mais brutais e intensos estes acordes eram, mais a voz do artista se ia libertando das amarras da sua psique, num acto de coragem tal que reconfortou aqueles que todos os dias preferem silenciar a sua inquietação para não inquietar terceiros. E isso comprovou-se no ovação ininterrupta após essa intensa entrega.

Talvez a pressão que zé menos coloca sobre si próprio, ao referir que tudo o que faz são “Clichês baratos/ Cópias mal tiradas doutras obras de arte”, tenha servido de centelha para a arrebatadora homenagem. Talvez — e isto é uma suposição — haja em zé um misto de admiração e inveja saudável que o leva a compor. Como se aquela canção, na sua cabeça, fosse o que ele tanto luta para um dia alcançar. 


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