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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 04/06/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #97: Daniel Villarreal / Jazz Is Dead

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 04/06/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Daniel Villarreal] Panamá 77 / International Anthem

No campeonato das frases descritivas criadas pelos gabinetes de comunicação de editoras, será difícil superar a que foi pensada para apresentar a música de Daniel Villarreal: “uma suite vibrante e verdejante de folk-funk instrumental e psicadélico embrulhado em jazz”. O curioso aqui nem é a imaginação do autor ou autora de tal frase, mas o facto de ainda assim ficar algo aquém do que se escuta em Panama 77. Zero desprimor de quem escreveu a tal frase, antes total mérito de Villarreal que conseguiu aqui conjurar um som que desafia classificações e descrições, por muito elaboradas que possam ser.

A história conta-se com algum detalhe nas amplas notas que, no Bandcamp, apresentam esta estreia em nome próprio de Villarreal. Nascido em 1977 em Panamá City, Daniel começou por ser um activo baterista na cena punk local em finais dos anos 90. Apesar do que a sofisticação técnica demonstrada neste álbum possa sugerir, o domínio de Villarreal dos modos rítmicos latinos surgiu tarde, quando estudou sob a orientação de Freddy Sobers, um percussionista panamiano lendário que lhe abriu os ouvidos e expandiu o léxico dos seus quatro membros. Daniel Villarreal mudou-se do Panamá para os Estados Unidos no início do novo milénio. Trabalhou como assistente social junto de comunidades migrantes e, lentamente, foi-se afirmando como baterista, sobretudo após se ter instalado em Chicago encontrando aí um fértil e criativo ecossistema. Hoje, Villarreal tem frenética actividade como DJ nos clubes que agitam a zona boémia da 18th Street de Chicago – onde é figura reconhecida graças ao seu vistoso chapéu de cowboy e aos óculos de aviador – e como baterista e co-líder em bandas como os Dos Santos (City of Mirrors mereceu por aqui atenção), Valebol, The Los Sundowns e Ida y Vuelta ou participante enérgico noutros colectivos como os Wild Belle ou Rudy De Anda. Villarreal, percebe-se, não é grande adepto de pausas contemplativas.

Ainda assim, o baterista levou algum tempo a pensar no melhor caminho para a sua estreia em nome próprio: as primeiras experiências que conduziram a este Panama 77 datam de 2017 e 2018, mas foi já em Fevereiro de 2019 que recolheu o primeiro material quando gravou, no Freehand Hotel, em Los Angeles, alguns improvisos com o saxofonista barítono Elliot Bergman, o baixista Kellen Harrisson, o multi-instrumentista Bardo Martinez e o guitarrista Jeff Parker. Nasceu aí a semente que floresceu em posteriores sessões colectivas registadas entre Los Angeles e Chicago e que depois foram esculpidas em cuidadas jornadas de pós-produção conduzidas por Villlarreal com a ajuda do engenheiro de som Dave Vettraino.

Em Chicago, em Setembro de 2020, Daniel trabalhou com músicos como o organista Cole DeGenova, o baixista Gordon Walters e o guitarrista — e companheiro nos Dos Santos – Nathan Karagianis. Houve também sessões registadas em Los Angeles, em Outubro do mesmo ano, no jardim situado nas traseiras da casa de Scott McNiece (um dos patrões da International Anthem), denominado Chicali Outpost (Posto Avançado Chicago-Califórnia, claro), com músicos como o já mencionado baixista (e várias outras coisas) Bardo Martinez, o pianista Kyle Davis ou o trompetista (dos Irreversible Entanglements) Aquiles Navarro, a contrabaixista Anna Butterss, de novo o guitarrista Jeff Parker, o igualmente repetente organista Cole DeGenova e a violinista e violetista Marta Sofia Honer. Ou seja, músicos do circulo de bandas em que Villarreal milita, mas também da mais alargada família da International Anthem.

A essas sessões, já durante os trabalhos de pós produção efectuados no estúdio da International Anthem em Chicago, Daniel Villarreal acrescentou depois várias e bastante subtis camadas de percussão, facto que explica talvez o adjectivo “verdejante” usado na frase descritiva que começámos por citar: de facto, as densas pistas percussivas funcionam aqui não apenas como elementos de propulsão dos arranjos, mas como sombreados texturais para os vívidos quadros apresentados. Uma vez mais, este é jazz que tanto vive da interacção directa em estúdio seguindo a tradição, digamos, “rudyvangelderiana”, como da magia laboratorial que o estúdio permite e que neste contexto foi talvez preconizada por Teo Macero.

Seja como for, o resultado é profundamente orgânico e apesar do material aqui contido ter origem em três distintas sessões, o que se escuta é tão coeso quanto fluído e servido por belíssimos solos – Elliot Bergman soa expansivo e visceral em “Bella Vista”, Aquiles Navarro atira-se ao espaço a bordo de efeitos na tremenda e breve “Uncanny”, Jeff Parker mostra-se assertivo e apontado à África Ocidental em “In/On” e mais tradicional e quase bop em “Messenger” e Marta Sofia Honer espraia as suas cordas nas multipistas de “18th & Morgan” com rigor orquestral clássico que inspira o engenheiro de som Dave Vettraino a traduzir a preguiça solarenga de Los Angeles num belo contributo em “air organ”.

E Panama 77 é de facto um disco multi-referencial que soa psicadélico na forma como o espaço foi fragmentado e expandido na mesa de mistura (perfeita a utilização dos efeitos como forma de expandir a paleta cromática e textural do álbum), com uma muito ampla e densa paisagem rítmica a ser percorrida e constantes desvios por terrenos mais funky. É, realmente, “uma suite vibrante e verdejante de folk-funk instrumental e psicadélico embrulhado em jazz”. Ou, se me permitem, um colorido mural sónico de jazz-latino de vistas suficientemente largas para admitir fragmentos de funk cinemático com tudo a ser movido àquela contagiante energia que só a experiência comunal pode gerar.



[Vários Artistas] Jazz Is Dead 011 / Jazz Is Dead

Ali Shaheed Muhammad e Adrian Younge, a criativa dupla por trás da Jazz Is Dead, está de volta com nova série. Tal como aconteceu com a primeira investida da editora de Los Angeles, com a edição em Março de 2020 de Jazz Is Dead 001, esta segunda volta pelos terrenos da memória jazz (e não só, como se vai perceber…) é novamente anunciada com uma compilação que reúne material das próximas edições. E se a primeira “fornada” de lançamentos alinhou estrelas como Roy Ayers, Gary Bartz, Brian Jackson, João Donato, Doug Carn, Azymuth e Marcos Valle – percorrendo o caminho entre diferentes nuances do devir jazz americano e o eterno pulso do lado mais groovy da música brasileira -, a nova colheita parece decidida a não baixar a fasquia e contrapõe os nomes não menos históricos de Henry Franklyn, Lonnie Liston Smith, Wendell Harrison e Phil Ranelin, Jean Carne e Tony Allen e ainda prováveis referências do futuro como os Katalyst. Há ainda o particular caso de Garrett Saracho, mas já lá iremos. Ou seja, a Jazz Is Dead a ligar-se directamente aos legados históricos de etiquetas como a Flying Dutchman, Black Jazz e a Tribe e a revoluções musicais como o afrobeat e o latin jazz.

As sessões que deram origem a esta segunda série terão muito provavelmente decorrido nos Linear Lab Studios de Younge no mesmo período que permitiu registar o material da primeira série. E isso significa que escutamos a Midnight Hour – banda de elenco rotativo comandada por Ali Shaheed Muhammad e Adrian Younge – a debitar uma ritmicamente vincada versão de jazz pós-bop, com balanço funk e sofisticação aprendida no estudo atento dos grandes clássicos que certamente constam nas suas respectivas colecções de discos (bem apetrechadas com trabalhos de todos os nomes convidados para ambas as séries). E portanto, é com total à vontade que o grande contrabaixista Henry Franklin, que o pianista cósmico Lonnie Liston Smith, o trombonista Phil Ranelin e o saxofonista Wendell Harrison, pilares da histórica Tribe, a elegante cantora Jean Carne, antiga companheira de Doug Carn que também gravou na Black Jazz, e o monumental Tony Allen se encaixam nas “bases” preparadas pela dupla.

Diferente é o caso de Katalyst – primeiro exemplo de uma banda contemporânea no catálogo da Jazz Is Dead. Trata-se de uma célula activa na cena de Los Angeles, com nove membros que já se cruzaram em diferentes contextos com artistas como Anderson .Paak, SiR ou Kendrick Lamar e que nos concertos regulares promovidos pela Art Don’t Sleep (a agência de Andrew Lojero, o terceiro elemento na estrutura que mantém a Jazz Is Dead) já secundaram lendas como Roy Ayers, Gary Bartz e Lonnie Liston Smith. A faixa aqui incluída, “The Avenues”, soa brilhante e perfeitamente equilibrada na corda bamba estendida entre o passado representado pelo colectivo de Horace Tapscott, a Pan Afrikan People’s Orchestra (com que alguns membros do Katalyst Collective estão afiliados), e o efervescente presente onde militam músicos que orbitam nas margens da beat scene de Los Angeles. O álbum que aí vem promete firmá-los no primeiro plano da moderna cena jazz de Los Angeles.

Outro caso diferenciado é o de Garrett Saracho. Se até agora os nomes do passado reintroduzidos no presente com as edições da Jazz Is Dead tinham todos sólidos pergaminhos, sendo nomes recorrentes no historial sampladélico do hip hop, já o de Saracho representa aqui um claro caso de poética justiça e o álbum que é antecipado com a infecciosa “El Cambio” será seguramente uma justa segunda oportunidade para si. Garrett Saracho possui uma extraordinária história (que podem ler aqui) que o viu, em finais dos anos 60 e inícios dos anos 70, ser citado como uma importante promessa do lado mais progressivo do jazz. Tocou com Jimi Hendrix, recebeu elogios de Herbie Hancock e assinou pela Impulse de Coltrane, etiqueta pela qual editou, em 1973, um único álbum – En Medio. O álbum acabou por não registar qualquer impacto, foi vítima das estratégias comerciais da editora e alimentou a desilusão de Garrett Saracho, que encostou o seu piano a um canto e encontrou trabalho como carpinteiro nos estúdios de cinema de Hollywood. Cinquenta anos depois, Ali e Adrian resolveram que um trabalho tão esfusiante como Em Medio não poderia ficar como obscura e solitária prova do amplo talento de Saracho. E eis que se explica a sua inclusão neste volume 011 com um tema que vive de um pulsar grave irresistível e que soa como se fosse uma sobra das sessões de Maio de 1973 que deram origem ao material lançado pela Impulse. Bastaria esta faixa para justificar a validade desta nova compilação da Jazz Is Dead, mas, como já se percebeu, argumentos de peso são coisa que por aqui não escasseia.

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