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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 23/02/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #86: Mad About Records

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 23/02/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Raposa Velha] Raposa Velha

Revela-nos o grande Bento Araújo nas páginas do segundo volume da fundamental trilogia Lindo Sonho Delirante que Raposa Velha foi um grupo que se alinhou com “a onda fusion que pintou no final da década de 70” que, obviamente, “também bateu forte na Bahia”: “Com o interesse dos jovens pelo jazz e pelas suas possibilidades de aglutinação com outros géneros surgiram grupos de música instrumental como Sexteto do Beco, Banda Livre e Raposa Velha”. Araújo vai mais longe e explica que “a história da Raposa Velha começou quando o compositor, arranjador, pianista, saxofonista e produtor carioca Zeca Freitas estudava na Berklee College of Music, em Boston. Quando voltou, escolheu morar na Bahia. Lá, participou da Banda do Companheiro Mágico e fundou a Raposa Velha, ao lado do trombonista Fred Dantas”. O grupo incluía ainda Jorge Brasil na bateria, Carlinhos Marques no baixo eléctrico e Paulo Brasil na guitarra. “Em apenas três dias do mês de Outubro de 1981, registaram seu disco independente no Studio WR, em oito canais”. E 40 anos depois, cá está ele, oportunamente adicionado ao catálogo da portuguesa Mad About Records.

Quando os Raposa Velha registaram na Bahia o seu singular e homónimo LP, no Rio de Janeiro os Azymuth de Alex Malheiros, Ivan Conti e José Roberto Bertrami já levavam alguns anos de avanço nesse refinamento tropical das experiências que mais a norte eram cozinhadas por Miles Davis, Chick Corea, Herbie Hancock ou Weather Report. Por isso mesmo, às coordenadas mais “roqueiras” da fusão, Zeca Freitas adicionou um lado mais livre e menos alinhado com a vertigem do groove, opção que surge bem exposta em temas como “Passagem” ou “Vinheta”. Mas é nesses domínios mais fusionistas que os Raposa Velha arrancam com “Vitor” deixando, no entanto, imediatamente claro que o seu som não brilha com “lustro” idêntico ao dos Azymuth que na mesma época, e mesmo gravando no Rio de Janeiro, conseguiam em discos como Outubro ou Telecommunication soar bem mais “cromados”, revelando-se perfeitamente alinhados com o som criado nos laboratórios de Los Angeles ou Nova Iorque e devidamente apreciado nas aparelhagens de alta fidelidade japonesas que eram então obrigatórias nas salas mais modernas onde este tipo de música era apreciado. Mas há óbvios méritos neste colectivo que swinga com autoridade graças a músicos com sólidas capacidades de execução: não apenas essa capacidade de trazerem para dentro do seu som, para lá das habituais lições dos mestres da cena jazz-rock, pitadas do músculo de Frank Zappa ou do mais aventureiro free-jazz da era, marcas bem menos presentes na fórmula dos Azymuth. E aí uma peça como “Luiza” é bem esclarecedora: esta Velha Raposa estava menos interessada em fazer dançar nas “boîtes” ou nos decks dos iates estacionados nas marinas de Miami do que em fazer abanar a cabeça daqueles que na plateia de pequenos clubes de Rembeque, Itaparica ou Relógio de São Pedro mantinham, como ensina Bento Araújo, “a herança tardia do sonho hippie”.



[Tete Mbambisa] Tete’s Big Sound

Em 2014, uma faixa no quinto tomo da fundamental série Spiritual Jazz que a Jazzman começou a desenrolar em 2008 (o ano passado saiu o volume 13!) chamava a atenção para a música de Tete Mbambisa: “Trane Ride”, do segundo álbum do pianista sul-africano, Did You Tell Your Mother, encaixava na perfeição num volume que prometia “esoteric, modal and deep jazz from around the world”. Um ano depois, a não menos atenta Matsuli Music relançava Inhlupeko Distress, fundamental trabalho dos Soul Jazzmen, grupo de que Mbambisa fazia parte. Gerhard Kubik sublinha a importância dessa banda e de Mbambisa na fundamental obra Jazz Transatlantic que no segundo volume se foca muito nos músicos que saíram dos Soul Jazzmen e que ele descobriu em 1969 “graças à já desaparecida Irene Frangs, que costumava frequentar todos os clubes de jazz de Joanesburgo desafiando as restrições do apartheid”. Explica Kubik que “a sua composição ‘Inhlupeko’, que significa ‘sofrimento’, é um precioso exemplo de como um tema cíclico de mbaqanga é integrado numa forma jazz AABA. Isto era jazz pós-bop, na tradição de John Coltrane, mas com uma admirável declinação sul-africana”. E era o piano de Tete Mbambisa que suportava com a sua figura melódica circular essa identidade cultural muito particular.

Tete’s Big Sound, o álbum que em boa hora a Mad About Records de Joaquim Paulo agora recupera, marcou a estreia de Mbambisa em nome próprio, sete anos após a sua experiência nos já mencionados Soul Jazzmen. Foi, por isso mesmo, com considerável experiência acumulada que o pianista dirigiu um ambicioso ensemble composto por uma alargada secção de metais – Barney Rachabane em saxofone alto, Duku Makasi e Aubrey Simani em saxofones tenores, Freeman Lambatha em saxofone barítono e Tex Nduluka em trompete –  e ainda por Enoch Mthalani na guitarra, Sipho Gumede no baixo e  Dick Khoza na bateria.

E é de facto um grande e glorioso som o que se escuta neste álbum de amplas e refinadas orquestrações em que os metais se entrelaçam em festivos uníssonos e se dividem em solos que atestam na perfeição o elevadíssimo nível musical da cena jazz sul-africana. O que é tanto mais admirável quanto hoje se sabe, graças a relatos como os de Mbambisa incluídos no segundo volume do já mencionado livro Jazz Transatlantic, que grupos desta dimensão tocavam sobretudo em casinos para brancos e que para os músicos chegarem às suas townships nos subúrbios mais pobres das grandes cidades precisavam de um passe especial, que normalmente os apresentava como cozinheiros de regresso a casa após um longo dia de trabalho, de forma a não serem detidos pela polícia que impunha o regime do apartheid: “se eles soubessem que éramos músicos prendiam-nos por acharem que andávamos a dormir com raparigas brancas”, recorda o pianista. E no entanto, a música deste Tete’s Big Sound é luminosa, com um carácter distintamente sul-africano exposto não apenas nas suas animadas cadências, mas também na particular relação harmónica que os arranjos estabelecem para os instrumentos e nas memoráveis e alegres melodias que atravessam os diferentes temas. Há, ainda assim, uma clara dimensão política nesta música que era tanto de celebração de uma identidade própria quanto de resistência a um sistema opresssor e títulos como “Unity”, “Black Hero” ou “Stay Cool” não deixam margem para dúvidas: a excelência musical e o ânimo das composições podiam ser também um punho espetado na face do apartheid.

Conta Mbambisa em Jazz Transatlantic que apesar de ter realizado vendas significativas aquando da sua edição original, Tete’s Big Sound  nunca lhe rendeu quaisquer dividendos, pelo que há uma dimensão extra de justiça neste relançamento que foi feito com a bênção directa do veterano pianista de 80 anos.

(Estes lançamentos da Mad About Records já se encontram disponíveis na loja Jazz Messengers)

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