pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/11/2020

Os lindos sonhos delirantes que a música consegue provocar...

Bento Araújo: “Foi uma revelação e uma imensa alegria constatar o respeito pela música brasileira ao redor do planeta”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/11/2020

O mapa não é o território, toda a gente sabe, mas ainda assim os mapas são instrumentos de navegação preciosos, auxiliares fundamentais para nos guiarem em jornadas de descoberta, mesmo na era das aplicações e da cobertura global da internet. E a série Lindo Sonho Delirante da autoria do investigador, radialista e jornalista Bento Araújo, que agora chega ao seu terceiro volume, é um dos mais incríveis mapas em que podemos pegar se quisermos partir em busca da música “psicodélica”, criativa, aventureira e avançada do Brasil.



Numa troca de emails, Bento Araújo lançou preciosa luz sobre o seu processo criativo, sobre os modos de investigação, reflectindo sobre a evolução da música popular ao longo das décadas e sobre o seu crescente impacto no mundo. Com o terceiro volume de Lindo Sonho Delirante a focar-se sobre o período de década e meia que precedeu a entrada no novo milénio, esta é já uma era que a memória de muitos de nós alcança nitidamente e por isso mergulhar neste oceano de “discos corajosos do Brasil” será, certamente, vontade partilhada por muitos leitores do Rimas e Batidas. E enquanto o livro não aterra nas escaparates nacionais, o mergulho alternativo nas palavras e nas ideias de Bento Araújo servirá, certamente, para amenizar a espera.

A pré-venda do terceiro volume de Lindo Sonho Deliranteestá activa.



Os seus livros Lindo Sonho Delirante são uma preciosa fonte de conhecimento e certamente muita gente haverá que dirá que aprendeu muito com esses livros. Meu caso, por exemplo. Mas e você? Que poderá dizer que aprendeu no processo de feitura desses livros? Que aprendeu você sobre a música que é o alvo da sua paixão?

Venho aprendendo imensamente com esses livros, em todos os sentidos. Mesmo no ofício de fazer o livro em si, já que antes dessa série eu não havia me aventurado a fazer livros, mas sim fanzines, revistas e podcasts. Aprendi também sobre crowdfunding e sobre como ter uma maior interactividade com os leitores que já seguiam o meu trabalho. No aspecto musical eu aprendi muito também, pois a pesquisa revelou surpresas e descobertas, além de propiciar uma imersão ao lado dos artistas que escreveram essa história que eu venho contando com os livros.  

Quando partiu para a criação do primeiro volume, já tinha a ideia de que haveria sucessores e que chegaria a um volume número três?

De início não. A ideia original seria lançar um volume único, contendo resenhas de discos lançados de 1968 até hoje. No entanto, a coisa cresceu tanto que ficou impossível resumir tudo em um único volume.

O primeiro volume de LSD reúne 100 discos lançados entre 1968 e 1975. Nunca pensou fazer uma espécie de prequela e investigar a música avançada, corajosa e disruptiva produzida no Brasil antes da influência de Sgt. Peppers ter inspirado uma nova abordagem criativa a toda uma geração?

Confesso que essa ideia já passou pela minha cabeça. Seria interessante ir voltando no tempo e ir inventariando toda essa produção brasileira pré-Sgt. Peppers. Seria também um grande desafio, sem dúvida, como está sendo produzir a série. 

Sobre esses primeiros 100 discos reunidos, imagino que muitos outros discos incríveis tenham ficado de fora. Pode dar-nos um par de exemplos de discos que tem pena de não ter incluído nessa primeira selecção?

Isso é como uma tortura, pois ficaram centenas de discos de fora. Ocasionalmente eu acabo me lamentando por isso. Que ficaram de fora do primeiro volume eu posso citar Araçá Azul de Caetano Veloso, Revolver de Walter Franco, Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua de Sérgio Sampaio e o único LP do projecto Beto Guedes, Danilo Caymmi, Novelli e Toninho Horta.    

Como é que descobriu toda essa música? Comprando muitos discos, claro, falando com outros coleccionadores, certamente, pesquisando em arquivos de rádio? E que mais?

Tudo começou quando eu trabalhei em lojas de discos e sebos, em São Paulo, nos anos 90, dentre elas uma loja importante daqui, chamada Nuvem Nove. Naquela altura, muitos desses discos raros ainda apareciam, e num preço acessível, já que a maioria acreditava que os LPs estavam mortos e enterrados e que os CDs seriam o futuro. Logo percebi que colecionadores, DJs, músicos e produtores do mundo todo estavam vindo ao Brasil e levando esses discos embora. Aprendi muito com esse pessoal, principalmente com os coleccionadores japoneses e sua devoção pela música brasileira. É sempre uma troca, mostrar coisas legais para os coleccionadores e aprender também com eles. 

Pode contar-nos uma história de uma descoberta que tenha porventura sido muito diferente de todas as outras? Algo rocambolesco que o possa ter conduzido a um disco que desconhecesse?

Às vezes acontece algum disco ser tão obscuro, até mesmo aqui no Brasil, que sua descoberta acaba acontecendo com algum amigo colecionador do outro lado do mundo. Aconteceu colecionadores japoneses, russos e dinamarqueses mostrarem discos brasileiros que eu desconhecia e que acabaram entrando nos livros. Por isso, e por outras razões, costumo dizer que o Lindo Sonho Delirante é um projeto vivo, interactivo, vibrante, criado e viabilizado por muitas pessoas ao redor do planeta. Eu apenas organizo aquelas ideias e as coloco no papel, mas quem transforma esse sonho em realidade são os apoiadores, os entusiastas do projeto. Um exemplo interessante aconteceu com o meu amigo Lev Kazartsev, coleccionador de São Petersburgo, que sabe muito sobre a música psicodélica do Nordeste brasileiro. Ele que me alertou sobre o nome do disco e sobre a capa original do primeiro LP de Alceu Valença, aquele com Geraldo Azevedo. O disco entraria no livro com a capa da reedição e com o nome Quadrafônico, mas foi o Lev que me alertou sobre esse equívoco. Além disso, a capa que entrou no livro é da edição original dele, pois eu só tenho o relançamento na minha coleção. Informações obscuras sobre Alceu Valença chegando até mim via Rússia, é meio por aí…



O segundo volume centrou-se sobre os discos “audaciosos”, por oposição aos “psicodélicos” do volume inicial. Essa audácia vinha da luta contra a ditadura, apenas de uma vontade de dançar? O que acha que é o elemento comum que liga música tão distinta quanto a de Alceu Valença ou a de Ze Eduardo Nazario?

Creio que essa audácia vinha de diversos elementos, mas obviamente se opor à repressão e ao preconceito eram alguns deles. O fato de ter nascido no Brasil e estar em contato constante com esse turbilhão de culturas, diversidades, incoerências, ritmos, dificuldades e alegrias já nos faz audaciosos e psicodélicos por natureza. O elemento comum, que une esses álbuns e artistas, é o anseio em romper com o estabelecido, com os padrões musicais e estéticos. Ao meu ver, estão todos debaixo da bandeira da transgressão, de uma forma ou de outra.   

Neste terceiro volume investiga a produção de música entre 1986 e 2000, música produzida já em plena liberdade. E música que também se encontra muito mais próxima em termos de memória. Em relação aos livros anteriores, teve muito mais discos para pesquisar ou, pelo contrário, foi mais complicado descobrir 100 discos destemidos e corajosos desse período?

Essa terceira parte talvez seja a mais intrigante, ao menos para mim, graças a diversos motivos. Debaixo das sombras do regime militar, foi mais fácil identificar os discos “fora da curva”, portanto creio que, desta vez, o desafio foi maior, já que não foi nada fácil pinçar apenas 100 discos corajosos produzidos em um período pós-abertura política. Com o rock ocupando pela primeira vez o mainstream, o underground precisou criar diferentes estratégias para vencer o conservadorismo musical estabelecido. Do final dos anos 80 em diante, não era mais tão difícil se dedicar à música. Muitas bandas surgiam, com compositores livres das amarras da censura. Começava a importação de instrumentos e equipamentos. A gravação de um disco tornara-se acessível. Havia um maior contingente de músicos compondo, produzindo e lançando seus álbuns. Outro desafio constante é enfrentar o preconceito de alguns leitores e colecionadores: uma grande parcela ainda acredita que a “boa música” foi criada somente nos anos 60 e 70. Parte do Lindo Sonho Delirante vol.3 foi criada em meio à pandemia de COVID-19, então eu aproveitei os meses de distanciamento social para entrevistar, remotamente, o maior número possível de artistas envolvidos nesses discos. Foram cerca de 60 entrevistas exclusivas para o projeto, que forneceram outro patamar de compreensão e reflexão sobre o período abordado. Obviamente, possuo uma intensa relação afetiva com este novo livro, pois presenciei os lançamentos de muitos desses álbuns que escolhi como corajosos. Nos dois primeiros volumes da série, o meu olhar foi de pesquisa, em retrospecto, vindo de um apaixonado por aquela época.

Alguma da música que figura nesse volume, como a de Patricia Ermel ou dos Mulheres Negras, tem sido relançada na Europa em antologias ou reedições. Por parte de uma editora como a Music From Memory, por exemplo. Que pensa desse olhar exterior e europeu sobre esse passado da música brasileira?

Esse olhar é fundamental na existência dos livros e do meu trabalho. Essa curadoria do John Gómez e de outros apaixonados pela música do Brasil tem sido vital na continuidade e na redescoberta de muitos desses artistas. Isso fomenta também o mercado de relançamentos de muitas dessas obras na Europa. Desde que comecei a viajar, para fazer eventos de lançamento dos livros e palestras sobre a minha pesquisa, a países como Inglaterra, França, Alemanha, Suíça, Dinamarca, Suécia e Noruega, percebi essa visão “de fora”, como eles enxergam e escutam a música do Brasil. Foi como acessar outra dimensão, poder enxergar de outro ângulo. Por isso, também, que considero esse terceiro volume diferente dos demais, já que tive a oportunidade de trazer essa bagagem e essa troca de experiências para este novo volume.

Estes livros têm sido lançados com o apoio de campanhas de crowdfunding. Suponho que tenha recebido apoios e financiamentos de várias partes do mundo. Isso o surpreende?

Sim, vem me surpreendendo bastante. Quando percebi que havia enviado o primeiro volume para mais de 40 países diferentes, “a ficha caiu”, como dizemos aqui no Brasil. Foi uma revelação e uma imensa alegria constatar o respeito pela música brasileira ao redor do planeta.

Enquanto brasileiro, que pensa do contínuo fascínio que a música do seu país desde sempre exerceu sobre o resto do mundo? Do samba e da bossa nova ao tropicalismo, ao jazz, ao psicadelismo e mais além, até ao hip hop e mesmo até ao baile funk do presente, são muitas as correntes que inspiraram músicos e ouvintes de todas as nacionalidades ao longo dos anos, fazendo do Brasil um dos mais ricos filões de música original de todo o planeta. Concorda?

Sem dúvida a música brasileira vem inspirando músicos e ouvintes de diversas nacionalidades. Existe uma magia, uma energia e uma sensibilidade muito especial ali, mas não creio que isso seja exclusividade da música do Brasil. Não gosto de dizer que a música brasileira é a melhor do mundo, como muita gente diz, pois não encaro a música como competição, então não seria necessário e justo minimizar outras culturas a favor de alguma cultura específica. Para este novo livro, entrevistei o Maurício Pereira, ex-integrante d’Os Mulheres Negras, e ele tem uma visão interessante e transparente sobre aquele período, que eu concordo absolutamente. Nas palavras do Maurício, gêneros menosprezados pelo pessoal do rock, como pagode e axé, “são sacadas de gênio, arte de baixo pra cima, gente real achando soluções criativas para se expressar com as ferramentas técnicas, culturais e sociais que eles tinham nas mãos”. Como ele diz “a música brasileira está sempre criativa, sempre em ebulição, seja no indie, seja no mainstream”. Por isso eu vejo valor artístico tanto na bossa nova como no funk actual, da Tropicália à lambada. Tudo isso serve de porta de entrada para ouvintes do exterior, serve como um convite ao mergulho na música do Brasil. Em se tratando de música, acho primordial não existir preconceitos.  

Haverá um quarto volume em que investigará a música deste milénio? A acontecer diga-nos um disco que já sabe que terá que figurar nesse possível quarto volume…

Espero que sim! Gosto de pensar na possibilidade de trazer essa história até os dias atuais. Vou citar um disco que escutei muito este ano, Temas para Tempos de Guerra, do Conde Favela Sexteto.

Finalmente, tem algum tipo de relação com a música portuguesa? Conhece bandas portuguesas? Está em contacto com coleccionadores daqui? Consegue nomear um par de artistas portugueses que acredite terem o mesmo espírito daqueles que foi integrando nos seus livros?

Sim, tenho uma relação muito especial com a música portuguesa! Também sou português, tenho a dupla nacionalidade, pois meu pai é português, do Funchal, na Ilha da Madeira e minha mãe é neta de portugueses (dos Açores e de Figueira da Foz). Meu pai, Martins Araujo, é radialista em São Paulo, desde os anos 60, então eu cresci em meio à música portuguesa, de Amália Rodrigues aos Xutos e Pontapés, passando por Rui Veloso, José Cid etc. Tenho muitos amigos por aí e estou sempre em contacto com eles. Vivo com uma saudade constante de Portugal, gostaria de voltar em breve, para lançar o novo livro por aí. Um desejo intenso é morar um tempo em Portugal, quero colocar isso em prática num futuro próximo. Dentre os discos portugueses que carregam o espírito dos álbuns que estão nos livros, eu citaria Epopeia (Filarmónica Fraude), Blackground (Duo Ouro Negro), ‎Contos da Barbearia (Banda do Casaco), ‎Onde Quando Como Porquê Cantamos Pessoas Vivas (Quarteto 1111), ‎10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte (José Cid), os dois LPs dos Petrus Castrus (Mestre e Ascenção e Queda), Holocausto (Tantra), o compacto contendo “Acid Nightmare” e “Wish Me Luck” (Xarhanga), Privado (Ananga-Ranga), Homo Sapiens (Saga) e muitos outros. Gostaria de agradecer essa oportunidade, querido Rui, agradecer a existência do Rimas e Batidas e também convidar os seus seguidores a acompanhar o meu trabalho pelo poeirazine.com.br, pelas redes sociais e pelo podcast poeiraCast (Spotify, Deezer, iTunes etc.), que está há mais de 10 anos na estrada. Muito obrigado!  ‎


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos