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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 09/02/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #84: Jazz Is Dead

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 09/02/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Vários Artistas] Remixes JID010 / Jazz Is Dead

Se o jazz é, de certa maneira, um acto de invenção – individual ou colectiva – que procura parar o tempo e preservá-lo no âmbar da criatividade, então o trabalho de remistura, quando se debruça sobre um particular instantâneo musical, é gesto que procura confundir a ideia de viagem no tempo com a de exploração de realidades alternativas, um fantasioso “e se?…” que normalmente remete para novos planos ideias há muito enunciadas. Não será bem esse o caso neste trabalho que encerra o primeiro ciclo de edições da norte-americana Jazz Is Dead, editor comandada pelo produtor e multi-instrumentista Adrian Younge e pelo também produtor Ali Shaheed Muhammad, membro dos históricos A Tribe Called Quest.

De certa maneira, e como por aqui tive já oportunidade de explicar, “o propósito da série/selo criada/o pela dupla de artistas e produtores está mais do que delineado: ao contrário do que o nome escolhido para carimbar esta aventura possa sugerir, Ali e Adrian não estão nem a tentar matar, nem a procurar ressuscitar um género – a ideia é tão simplesmente, e como confessava Younge o ano passado em entrevista à Clash, erguer uma comunidade em Los Angeles para ‘celebrar música de liberdade’ (a expressão usada é mesmo ‘freedom music’, diferente, claro, de ‘free music’). ‘E isso’, prosseguia o músico, arranjador e produtor, ‘é essencialmente jazz. Sempre tive o sonho de ter uma etiqueta de jazz. E quis fazer uma etiqueta em que tudo fosse analógico, portanto isso é basicamente o que isto é’”. 

Na verdade, a devoção dos dois cúmplices da Jazz Is Dead pelo passado é sobejamente conhecida: Younge tem expressado essa reverente paixão pela história em produções que o acercaram tanto das clássicas bandas sonoras da blaxploitation, como de alguns pioneiros da electrónica ou ainda, em diferentes momentos, da era dourada do hip hop; por seu lado, Muhammad protagonizou uma cuidada e continuada observação da história através do sampling que sempre pontuou as suas produções, não apenas no seio dos Tribe, mas também em encomendas entregues a gente como Greg Osby, Gil Scott-Heron, D’Angelo ou, para citar apenas mais um exemplo de uma vasta lista, Angie Stone. Depois, e já unindo esforços, Adrian Younge e Ali Shaheed sintetizaram todas essas criativas visões sobre o grande legado da música negra no trabalho que assinaram para a banda sonora de duas temporadas da série da Marvel Luke Cage.

Ora, é possível entender o conceito da Jazz Is Dead à luz dessa devoção pelo passado: os dois produtores cresceram e formaram-se como artistas e como melómanos a escutar muitos dos nomes que convocaram para a primeira série de edições – Roy Ayers e Gary Bartz, Doug Carn e Brian Jackson são marcos históricos de um devir que se estendeu do jazz à soul e ao funk e João Donato, Marcos Valle e os Azymuth são artistas que ultrapassaram as fronteiras do Brasil (e do tempo…) para afirmarem uma visão que combinou a sua tradição tropical com o jazz, sobretudo o que a América produziu da década de 70 em diante. De certa maneira, e como comecei por explicar, os homens do leme da Jazz is Dead procuraram usar o seu apropriadamente nomeado Linear Labs Studio como laboratório (lá está…) para recriarem fórmulas passadas a partir de uma perspectiva presente. Para o encontro com cada um dos nomes citados, Adrian e Ali levaram a certeza de que o tempo consagrou o que eles originalmente criaram, transformando as suas discografias em objectos de culto e em permanente e inesgotável recurso para quem usa o sampling como estratégia criativa.

Agora, com Remixes JID 010, o que Ali Shaheed e Adrian Younge fazem é pegar nas sessões que registaram com cada um dos mestres históricos e entregá-las a uma série de criativos remisturadores, procurando replicar o acto de (re)descoberta enunciado por jovens produtores hip hop à entrada dos anos 90 quando encontravam nas colecções de discos dos seus pais a matéria sampladélica com que inventaram um novo futuro ao mesmo tempo que reclamavam uma forte marca identitária e cultural.

Um tema de Marcos Valle é, assim, revisto por Kaidi Tatham; música de Roy Ayers passa pelas mãos de Pink Siifu; Cut Chemist insufla breaks no jazz de Gary Bartz; Akili realinha as coordenadas de peças de João Donato e dos Azymut; a peça de Brian Jackson merece reconsideração por parte de Shigeto; Natureboy Flako trabalha sobre pistas da sessão de Doug Carn; Georgia Anne Muldrow adiciona o seu cunho a uma peça da Midnight Hour, banda residente de todas as sessões comandada por Younge e Muhammad; Dibiase oferece a sua perspectiva a mais uma peça de João Donato; e, finalmente, DJ Spinna replanta outro tema dos Azymuth no centro da pista de dança.

Percebe-se uma certa reverência de todos os remisturadores não apenas pela matéria que decidiram (re)tratar, mas pela própria ideia clássica de remistura: é que o que muitas vezes passa por “remistura” mais não é do que uma nova produção, muitas vezes descartando totalmente a matéria original em detrimento de elementos de criação própria. Aqui sentem-se as particularidades das músicas que foram sendo dispersas nos primeiros nove volumes da série (o primeiro era expositivo e a uma faixa da já mencionada banda Midnight Hour juntavam-se, em jeito de antecipação, peças de cada um dos sete veteranos convocados; já o o penúltimo apresentava versões instrumentais das canções que foram surgindo nos volumes anteriores), enquadrando essa matéria com respeitoso cuidado, insuflando nos arranjos novas camadas rítmicas e sublinhando, por via da magia repetitiva do loop, o elementar groove que foi usado em cada uma das experiências. Os resultados são ultra-positivos, deslocando os arranjos de pendor mais clássico criados originalmente por Muhammad e Younge – que procuravam sempre alinhar estes discos com os ecos de obras passadas – para territórios mais contemporâneos – escute-se, por exemplo, o trabalho de Shigeto para o tema “Nancy Wilson” de Brian Jackson, com uma interessante deriva percussiva que ajuda o tema a estender-se para lá dos 10 minutos.

E desta maneira atira-se para o futuro, por via das pistas de dança que hão-de receber algum deste material, certamente, esse passado que os responsáveis da Jazz Is Dead quiseram celebrar. É essa a criativa magia da música: vive para sempre nos ouvidos de quem a escuta e nos pés de quem a dança.


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