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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 23/09/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #68: Especial Jazz Is Dead

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 23/09/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Adrian Younge, Ali Shaheed Muhammad] Jazz is Dead 9 Instrumentals / Jazz Is Dead

[Brian Jackson] Jazz is Dead 8 / Jazz is Dead

[João Donato] Jazz is Dead 7 / Jazz is Dead

Depois de encontros com Gary Bartz, Doug Carn, Azymuth, Marcos Valle e Roy Ayers, eis que Ali Shaheed Muhammad e Adrian Younge convocam ao seu Linear Labs Studio as figuras de Brian Jackson e João Donato. Por esta altura, o propósito da série/selo criada/o pela dupla de artistas e produtores está mais do que delineado: ao contrário do que o nome escolhido para carimbar esta aventura possa sugerir, Ali e Adrian não estão nem a tentar matar, nem a procurar ressuscitar um género – a ideia é tão simplesmente, e como confessava Younge o ano passado em entrevista à Clash, erguer uma comunidade em Los Angeles para “celebrar música de liberdade” (a expressão usada é mesmo “freedom music”, diferente, claro, de “free music”). “E isso”, prosseguia o músico, arranjador e produtor, “é essencialmente jazz. Sempre tive o sonho de ter uma etiqueta de jazz. E quis fazer uma etiqueta em que tudo fosse analógico, portanto isso é basicamente o que isto é”.

De facto, uma nítida linha transversal a toda a série passa pelo rigor sonoro das gravações. O “laboratório linear” que Younge criou em Los Angeles é um espaço que retém a tecnologia e a praxis de uma outra era: como uma garagem recheada de reluzentes jóias sobre rodas ainda capazes de se fazerem à estrada, este estúdio guarda uma colecção de artefactos funcionais – mesa de mistura, gravadores de fita, teclados, guitarras, amplificadores, microfones, diferentes processadores de sinal… – que em tempos ajudaram a definir a aura sónica da música com que esta dupla cresceu: o pós-bop clássico da Blue Note ou Impulse, a música de fusão que expandiu o universo nos anos 70 com gravações de Miles Davis ou Herbie Hancock, a soul e o funk mais livres e exploratórios dos melhores registos de Stevie Wonder ou Gil Scott-Heron, a inventividade tropical presente em clássicos registos de gente como Eumir Deodato, Sérgio Mendes, Flora Purim ou, pois claro, Azymuth, Marcos Valle e João Donato. No fundo, tanto Shaheed Muhammad como Younge estão apenas a fazer discos que gostariam de acrescentar às suas próprias e extremamente bem curadas colecções. E se para tanto, esse rigor analógico das gravações é um decisivo contributo, por outro lado a vincada identidade gráfica que em tempos distinguiu os melhores lançamentos em editoras como as já mencionadas Blue Note e Impulse, mas também CTI ou Black Jazz, funciona igualmente como fonte de inspiração.

Younge e Muhammad têm bagagem, sublinhe-se. O primeiro acumulou já uma considerável discografia em nome próprio, tendo gravado fantasias de blaxploitation, vénias às bandas sonoras dos dramas dos anos 70, scores para aventuras de super-heróis negros, múltiplos encontros com nomes de culto do hip hop e, já este ano, o seu importante contributo para a reflexão em curso sobre o que significa ser-se negro na América contemporânea. Já o último, nome que carrega consigo o considerável atributo de ter sido parte integrante dos lendários A Tribe Called Quest, continua, discretamente, sublinhe-se, a colecionar créditos de produção e autoria em trabalhos de gente como Logic, Groove Armada, Travis Scott, Alicia Keys, The Weeknd ou Bilal, entre muitos outros, sinal de uma generosa amplitude de movimentos que o torna figura de corpo presente até no lado mais visível e agitado desta cultura. E ambos expuseram de diferentes formas nas suas respectivas obras essa honesta paixão pela música que se espraiou pelas coordenadas acima enunciadas, tomando-a como matéria samplável ou assumida fonte de inspiração para as suas criações.

A Jazz Is Dead é, portanto, aquilo que comummente se designa por “labour of love”, uma forma de dar corpo a essa arrebatada paixão por uma era, por um som, por uma determinada forma de estar na música. E se a dupla, que assina também como Midnight Hour (provável referência à Midnight Band, colectivo que acompanhou Gil Scott-Heron e Brian Jackson em The First Minute of a New Day), que não tem laços fraternais, tem um claro modelo, esse é o dos irmãos Larry e Fonce Mizell, célula criativa que na década de 70 assinou excelentes produções para artistas como Donald Byrd, Bobbi Humphrey, Rance Allen, Johnny Hammond ou, entre muitos outros, Gary Bartz (esse trabalho foi muito bem sumariado em antologias como The Mizell Brothers at Blue Noteou Sky High). O modelo de trabalho dos irmãos Mizell inspirou nitidamente a dupla orientadora da Jazz Is Dead: Larry e Fonce escreviam as composições, delineavam os arranjos e conduziam as gravações em estúdio, deixando espaço para os solistas – o trompetista Donald Byrd, o saxofonista Gary Bartz ou a flautista Bobbi Humphrey, por exemplo – deixarem depois a sua marca, justificando assim terem o seu nome na capa de álbuns como Fancy Dancer, Places and Spaces ou Music is My Sanctuary, verdadeiros clássicos da cena jazz-funk dos anos 70. E se, nesse tempo, relegar os nomes de Larry e Fonce para a quase invisível letra miudinha das fichas técnicas traduzia uma feroz atitude comercial imposta por uma indústria que valorizava muito mais o comércio do que a arte, na reclamação de um lugar de destaque nas capas da Jazz is Dead para os nomes de Ali Shaheed Muhammad e Adrian Younge pode ler-se quase uma ética reposição da verdade sobre a real importância do trabalho menos celebrado de quem habitualmente vê as suas identidades serem arredadas dos cartazes, das parangonas e das atenções. Desta forma, Adrian e Ali não apenas assumem o seu real papel nestes trabalhos, como, de certa forma, prestam homenagem às figuras anónimas que deixaram importante marca nos tais discos que os inspiraram: engenheiros e produtores, arranjadores, compositores, músicos de sessão. E aqui, Ali Shaheed Muhammad e Adrian Younge usam todos esses chapéus.

O mais recente trio de lançamentos da Jazz Is Dead acaba por, simbolicamente, representar as três vertentes principais da editora: o registo em que brilha o veterano pianista brasileiro João Donato (78 anos de idade) é mais um capítulo do romance óbvio que Ali e Adrian mantêm com a música brasileira (já gravaram com Marcos Valle e Azymuth), ao passo que o LP com o também pianista Brian Jackson, braço-direito de Gil Scott-Heron em boa parte da sua discografia, se enquadra com o chamamento ao catálogo de nomes como Roy Ayers, Doug Carn e Gary Bartz, nomes-chave no tal turbilhão criativo da década de 70 que integrou a ideia de groove subtraída à soul, ao funk e ao disco nos terrenos do jazz. Por outro lado, devotar o mais recente volume da série a versões instrumentais, e, portanto, despidas das pistas vocais que pontualmente marcaram certas faixas dos volumes de Gary Bartz, Marcos Valle, Roy Ayers e João Donato, ilustra de forma ainda mais evidente a minúcia do trabalho de orquestração e execução que a dupla investe em cada nova adição ao seu catálogo. O trabalho desta Midnight Hour é rigoroso, inteligentemente referencial, imaginativo na forma como adopta macas do jazz-funk e as encaixa com um pensamento afinado com o hip hop numa arquitectura sonora em que a base rítmica acaba sempre por ser evidenciada.

Ali e Adrian serão, certamente, fãs devotos de Quem É Quem, clássico maior de jazz-funk tropical que João Donato lançou em 1973, contando com percussão de Naná Vasconcelos e produção de Marcos Valle. E é esse espírito de leveza melódica e densidade harmónica que se procura replicar nesta sessão em que se escutam a voz etérea de Loren Oden, a assertiva e elegantemente cadenciada bateria de Greg Paul e, pois claro, todo o arsenal comandado por Muhammad e Younge: órgãos e sintetizadores, baixos eléctricos, guitarras, flautas e diferentes saxofones, percussão… Arranjos com subtil marca de água psicadélica, plenos de balanço dançável que tanto se aproxima como deriva do modelo clássico da bossa nova, intrincados jogos cromáticos extraídos dos diferentes instrumentos e espaço para o Rhodes de Donato expor exuberância de cristal, num conjunto de faixas que resultou de uma sessão em que mais do que provavelmente rasgados sorrisos deviam estar estampados em todos os rostos. Uma delícia nos auscultadores em tardes solarengas, diz-nos a experiência.

Chamar ao seio da Jazz Is Dead uma figura como Brian Jackson equivale, certamente, ao cumprir de um sonho: o pianista foi parceiro criativo próximo de Gil Scott-Heron, com quem estudou na universidade de Lincoln (a que ambos se candidataram por ter sido a instituição frequentada por Langston Hughes) e ao lado de quem repartiu créditos em importantes registos como Winter in America, From South Africa to South Carolina e vários outros LPs lançados ao longo da década de 70. Jackson foi senpre peça criativa importante na discografia de Scott-Heron, assumindo não apenas o papel de músico solista, mas também o de co-compositor, arranjador e director musical. Nunca foi, portanto, uma figura menor, acessória ou obscura, mas acabou por ser vítima dos problemas que afastaram Gil Scott-Heron da música, ainda que, esporadicamente, tenha sido chamado a contribuir para sessões de gente como Stevie Wonder ou Earth Wind & Fire. Este é, por isso mesmo, o seu primeiro registo como líder em mais de duas décadas.

Com Jackson a tomar conta de Fender Rhodes, flauta alto, sintetizador, clavinet, Malachi Morehead a sentar-se à bateria e a dupla de produtores e arranjadores a recorrer à sua habitual panóplia de ferramentas sonoras, este é um disco que arranca com uma óbvia jam exploratória, “Under The Bridge”, em que os diferentes elementos buscam o seu lugar, testando múltiplas direcções. “Mars Walk” faz-se dessa mesma matéria algo difusa, sentindo-se o peso da reverência do trio de suporte para com a figura tutelar presente no estúdio, mas quando “Nancy Wilson” entra, dando amplo espaço à flauta de Brian Jackson, percebe-se que o colectivo descobriu a sua sintonia e as peças começam a desenvolver mais profundos aspectos líricos e uma maior coesão harmónica. Jazz-funk para fechar os olhos, muito mais do que para incendiar as pistas, este oitavo volume da série comandada pela dupla Midnight Hour poderia render uma bela e mágica noite num clube, com luz ténue e uma bebida dourada à frente a sublinhar o deleite que peças como “Baba Ibeji” ou “Bain de Nuit” haveriam de proporcionar com a sua lânguida desenvoltura. E na peça que fecha este volume, “Ethiopian Sunshower”, encontra-se uma verdadeira pérola: uma composição de subtil coloração afro-brasileira que Brian Jackson ilumina com a sua flauta e em que o grupo expõe uma lúdica compreensão do momento, perdendo-se em fantasias melódicas de óbvio pendor encantatório.

De facto, Ali Shaheed Muhammad e Adrian Younge não estão a tentar fazer renascer um género, antes a tentar – e conseguir! – provar que não há prazos de validade quando se trata de genuíno talento e de real paixão. Grande música é grande música em qualquer época. E há por aqui, sem a menor sombra de dúvida, grande música a acontecer. Jazz is Love poderia, perfeitamente, ser um nome alternativo para esta aventura editorial.

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